A Igreja inicia com a quarta-feira de
cinzas a Quaresma, tempo de graça, reconciliação e preparação para o ápice da
vida cristã que é a celebração da Páscoa do Senhor. Com este período litúrgico favorável,
a comunidade dos fieis é chamada a viver em plenitude este tempo necessário de
conversão, de mudança de mentalidade e de atitude. Eis o sentido do simbolismo do
qual é revestido o número quarenta. Na tradição do Antigo Testamento este número
já aparece com força metafórica: alude ao tempo da duração de uma geração, ou
seja, de uma vida. As vezes pensamos que os números que aparecem nas Sagradas
Escrituras são sinônimos de verdade cronológica. É importante, porém, acolher a
dinamicidade simbólica que eles trazem consigo: ao dizer que a quaresma, assumindo
a dinâmica da duração de uma vida, a Igreja deseja enfatizar que a quaresma assume
os contornos da vida humana. A vida humana e histórica é uma quaresma
preparatória para a nossa páscoa definitiva. É um constante chamado para que o
ser humano possa vestir-se da conversão constante, mirando a sua estatura da
Graça que é a estatura de Cristo, o Ressuscitado.
A quaresma não pode ser vista e
compreendida como tortura ou “autoflagelo” do coração e da alma. Ela é, sim,
sinal de mortificação para aquilo que é morte em nós e nos tira a condição de
filhos de Deus. As cinzas que são colocadas sobre nossas cabeças possuem um
duplo significado: morte e vida. Morte no sentido de recordar a condição finita
do ser humano como pó. Mas de vida também. Na vida rural, em tempos antigos, as
cinzas eram utilizadas como fertilizante durante o inverno para ajudar a manter
o solo rico, a fim de que a plantação pudesse florecer. Assim, ao receber as
cinzas sobre a cabeça, o fiel se abre ao convite para bem preparar a sua
caminhada, recordando que é do pó da terra, da adamah performada por Deus; como
também é um solo a ser cultivado para
que nele floresça a força da vida nova através da Páscoa da Ressurreição do
Senhor. Para bem iniciar esta quaresma, a liturgia nos propõe constantemente um
apelo contido em Mt 6,1-6.16-18. Texto que propõe um caminho seguro para conduzir
a vida neste exercício quaresmal, a fim de frutifica-la em vida plena: a
relação com Deus (oração), com outro (caridade), e, por fim, consigo mesmo
(jejum).
O texto de Mt 6,1-6.16-18 situa-se no
sermão da montanha – discurso inaugural de Jesus na catequese mateana. Neste
primeiro discurso/catequese, o evangelista mostra o Cristo como verdadeiro interprete
da Palavra de Deus, qual novo Moisés, e, portanto, Messias através da Palavra.
Neste bloco, que se estende até o capítulo sétimo, o Senhor ressignificará
todas as tradições religiosas de Israel e transmitirá uma interpretação autêntica
da Palavra de YHWH. As três práticas da piedade judaica – oração, caridade, jejum
– também serão dadas um sentido verdadeiro através do ensinamento do Mestre. Feita
uma breve contextualização, já se pode mergulhar no horizonte do texto.
“Ficai atentos para não praticar a vossa
justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles. Caso contrário,
não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus” (v.1). Este
versículo funciona como uma lente através da qual se pode ver corretamente o significado
das orientações feitas por Jesus nos versículos seguintes no que tange as práticas
da piedade judaica. Ele adverte os discípulos e a multidão a serem atentos em
não praticar a justiça diante dos outros. O que seria esta justiça? Não é
aquela do tribunal, pertencente ao sistema jurídico. Por justiça, ao interno do
panorama bíblico, se entende como sendo o agir de Deus. O Senhor está chamando
a atenção do discípulo – e de todos aqueles que escutam ou leem seu evangelho)
para que suas ações, seu agir, sejam conformes ao agir de Deus, para poder ter
em si a vida mesma do Pai. O agir deles não pode ser pautado pela recompensa dos
homens, ou seja, ser visto e elogiado por eles. Se assim o fizer, não receberão
a recompensa do Pai do céu. Entenda-se muito bem o que Jesus quer dizer com o termo
recompensa. Na verdade, ele aparece de duas maneiras: pagamento (gr, μισθός/mistos)
e restituição (gr. ἀποδίδωμι/apodidomi). Aplicado aos discípulos, para se falar
de recompensa o evangelista utiliza o termo apodidomi, ou seja, restituição. A
restituição é a devolução. Jesus está ensinado aos discípulo que se o agir
deles (justiça) for semelhante ao do Pai, Este restituirá/devolverá à pessoa a
sua condição de filho de Deus. Aquele que agir como o Pai age, será sempre restituído
à sua condição original: filho de Deus. Esta primeira orientação servirá de fio
condutor para as outras três a seguir.
No v.2, Jesus chamou a atenção dos discípulos
e da multidão para o cuidado com a prática da esmola. Um dos pilares da
espiritualidade judaica. Não realizar esta prática como fazem os hipócritas, só
para serem notados ou elogiados publicamente na sinagoga. Ele está se referindo
a uma prática muito constante de seu tempo. Sempre alguém, dentro ou fora do
ambiente de culto cumprisse este gesto era chamado pelo rabino diante de toda a
assembleia, elogiado pela sua atitude publicamente e convidado a se sentar num
dos lugares de honra e destaque. Recebendo, assim, seu salário, o seu “mistos”.
Com muita frequência o Cristo deve ter visto uma cena como esta. Mas para Ele, esta
prática não pode assumir uma imagem teatral ou de aparência. Deve ser uma
prática constante de empenho pelo bem do outro que necessita. E não uma ação isolada.
Por isso ele orienta: “Ao contrário, quando deres esmola, que a tua mão
esquerda não saiba o que faz a tua mão direita, de modo que a tua esmola fique
oculta. E o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa” (v.3-4). A
esmola/caridade deve ficar no segredo. A mão esquerda, que é aquela que não faz
o bem, não pode saber o que a direita, responsável pela ação boa está fazendo.
A prática da caridade/esmola é a ação que possibilita sair de si para colocar-se
em relação com o outro, com suas necessidades. Sem alarde. Porque este é o agir
do Pai celeste: ele é o primeiro a sair de si, em direção da humanidade. É ele
o primeiro a doar-se, sem esperar recompensas. Quando o discípulo age da mesma
forma que Deus, ele é restituído em sua condição de filho de Deus. “E o teu
Pai, que vê o que está oculto, te restituirá a Sua imagem”.
“Ao contrário, quando tu orares, entra no
teu quarto, fecha a porta, e reza ao teu Pai que está oculto. E o teu Pai, que
vê o que está escondido, te dará a recompensa” (v.6). Depois de Jesus chamar a
atenção sobre um segundo pilar da piedade judaica, a oração, que não deve ser
feita como mero teatro, como os hipócritas (atores da fé) fazem, ele orienta a,
literalmente, entrar na despensa (gr. ταμεῖον). A despensa das casas do tempo
de Jesus eram lugares fechados, escuros, sem janelas, e, portanto, silenciosos.
É um sinônimo para um lugar tranquilo, sem distrações. Sem oportunidades de ser
visto. Mas, ao mesmo tempo, representa um lugar da simplicidade do lar ou da
vida. É possível entrar em oração no metrô, no carro, na praça inclusive, desde
que se silencie tudo aquilo que possa perturbar, e, numa atitude de
interiorização estabelecer relação com o Pai e com Jesus. O que Ele não quer é
que esta relação chamada oração seja ocasião de espetáculo, de exibição pública.
A oração precisa ser muito bem compreendida.
Muitas vezes se pensa ou se cresce com uma mentalidade equivocada acerca desta
prática. Por exemplo, a mais comum, a de pensar que ela pode, por conta da
insistência “perseverante”, mudar a vontade de Deus. A partir das muitas palavras
que se usa, da atitude as vezes arrogante, ou mesmo com a mentalidade da troca –
faço isso para receber aquilo – tentar comprar ou dobrar a Deus, a fim de que
ele realize nossos caprichos. Não é assim. A verdadeira oração é, acima de
tudo, uma atitude de verdadeira relação pessoal com o Pai e com Jesus. O tempo ou
momento do cultivo da relação com ele. Podendo, sim, apresentar a vida, a história,
a angustia, os problemas. Mas sem pensar que Ele os resolverá num passe de mágica
ou sem nossa cooperação. A oração é apresentar a nossa vida e história diante do
Seu olhar, contemplando o olhar Dele e percebendo para onde este olhar está
apontando, de modo que consigamos direcionar a vida para onde ele aponta! A eficácia
da nossa oração consiste em olhar para a direção em que está o olhar de Deus e
discernir para qual direção ele aponta em relação à nossa vida. Quando o discípulo
olha para a mesma direção em que o Pai olha, através da oração que se dá no silêncio,
ele é restituído em sua condição de filho de Deus. “E o teu Pai, que vê o que
está oculto, te restituirá a Sua imagem”.
“Tu, porém, quando jejuares, perfuma a
cabeça e lava o rosto, para que os homens não vejam que tu estás jejuando, mas
somente teu Pai, que está oculto. E o teu Pai, que vê o que está escondido, te
dará a recompensa” (v.18). Jesus encerra sua interpretação tocando na prática
do Jejum. Para ele, não há razão de se fazer esta prática com espírito e atitudes
fúnebres, pois o noivo (que é ele mesmo) está no meio da festa. O que se precisa
é mudar a mentalidade. O jejum que o Senhor deseja propor é aquele que socorre
o irmão. Quando se vai ao encontro da necessidade do outro, tendo a autonomia e
a liberdade de se abrir mão ou renunciar mesmo àquilo que lhe pertence em favor
daquele, então o jejum não será causa de tristeza, e sim de alegria, porque foi
gerado vida naquele que não a possuía. É a capacidade de saber ler em si os
sinais de que tal coisa (alimento, vestimenta, recurso, oportunidade) não fará
falta e poder renunciar aquilo para que o outro tenha. Não é o que está
sobrando, mas é o que não fará falta, e que pode estar fazendo falta para o outro,
por isso, posso abrir mão. Equilibrar-se, através do Jejum, para poder nutrir
ao outro naquilo que lhe falta e, que, portanto, está a gerar desequilíbrio na vida
dele. Assim age o Pai do Céu com seus filhos. Quando o discípulo age da mesma
forma que Deus, ele é restituído em sua condição de filho de Deus. “E o teu
Pai, que vê o que está oculto, te restituirá a Sua imagem”.
Para viver um pleno itinerário quaresmal
se faz necessário assimilar o agir do Pai celeste. Só assim será possível florecer
em ressurreição e vida.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Pároco de São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese
de Botucatu-SP.
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