sábado, 8 de março de 2025

REFLEXÃO PARA O I DOMINGO DA QUARESMA – Lc 4,1-13


 

O evangelho deste primeiro domingo do tempo quaresmal nos narra as tentações de Jesus, ao longo dos quarenta dias que ficou no deserto, após o seu batismo. O termo tentação é correto e não caiu de moda. Mas ainda é preferível o termo “sedução”. Porque a tentação daria a ideia de uma força ou dinâmica que impulsionaria o homem a cometer algo de mal. E veremos, com a narrativa de hoje, que o diabo no deserto não se apresenta como um inimigo propriamente dito, tampouco tenta a Jesus a fazer algo de mal, ou pecar, ou qualquer coisa horrenda que se possa imaginar. Pelo contrário, se apresenta como uma espécie de colaborador (duvidoso, é verdade) que mostra um caminho alternativo ao projeto do Pai, através das seduções que apresenta. Este episódio se encontra  nos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc). O que confirma que a narrativa tem grande importância para as comunidades primitivas. A fonte original deste relato, o Evangelho segundo Marcos, não dá nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das tentações; apenas diz que “Jesus esteve no deserto durante quarenta dias sendo tentado por Satanás” (Mc 1,13). Lucas, a seu modo e interesse comunitário, releu a história que lemos hoje na liturgia e a transmitiu aos seus. Mas para que este texto não seja mal interpretado como sendo uma crônica exata dos fatos, devemos nos ater à simbologia e tipologia teológicas que o relato nos apresenta.

 

As seduções aqui apresentadas pelo evangelista acenam para as convicções e as aspirações do povo em relação ao messias: 1) o messias popular (do pão); 2) o messias do poder (do reino e da riqueza); 3) o messias religioso (a imagem do templo). Mas Jesus recusa estas interpretações durante toda sua vida e ministério públicos. O modo pelo qual ele se decide por viver baseia-se na dinâmica do servo sofredor de YHWH, com uma conotação toda sapiencial e profética.

 

O texto começa dizendo que “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (v.1). A narrativa situa-se após o batismo de Jesus, onde, no Jordão, ele fora reconhecido como Filho Amado pelo Pai e investido com o Espírito (de Deus) para a missão de proclamar o Reino. O evangelista pretende mostrar para a sua comunidade como Jesus viverá esta dinâmica de ser o filho amado de Deus. Com efeito, é interessante que Lucas explicite o fato de Jesus ter ido para o deserto com a força do Espírito. Do início ao fim, a vida e a missão de Jesus serão marcadas pela presença do Espírito Santo.

 

Uma primeira constatação sobre a ida ao deserto. Jesus toma o caminho contrário: das margens do Jordão, ele retrocede para o deserto. Faz, pois, o caminho do povo de Israel, que para tomar posse da terra prometida passou pelo deserto e cruzara o Jordão para adentrar e conquistar aquela promissão de Deus. Lucas pretende ensinar para sua comunidade que o Senhor é a imagem e símbolo do povo de Israel, e enquanto tal, assume e refaz a história de seu povo. Todavia, Ele supera seu povo, porque foi fiel a Deus durante as seduções do diabo, coisa que os israelitas não foram. Uma segunda compreensão acerca do “deserto”. Ele não é somente uma localização geográfica e espacial. Antes, é um lugar teológico. É um lugar de provação, mas também de refazimento da Aliança com Deus; um bom lugar para se relacionar com Ele.

 

Mas no deserto, Jesus recebe a proposta de outro caminho. O texto informa que ele fora tentado/seduzido pelo Diabo durante “quarenta dias”. É um tempo simbólico. O número 40 na teologia bíblica indica a existência de um período necessário. É o tempo da duração de uma geração, ou seja, uma vida inteira tinha a expectativa de durar quarenta anos. Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova. Esta é uma das finalidade do texto bíblico de hoje, mostrar que as tentação não foram um episódio isolado em sua vida, mas que elas o acompanharam no decorrer de sua missão, sempre propondo tomar um caminho alternativo ao do amor, do serviço aos irmãos, e da fidelidade ao Pai e ao Reino. O relato também representa um aviso para a comunidade cristã, para que ela não caia na ilusão de que, tendo assimilado e assumido o projeto de Jesus, estar imune às seduções do anti-reino.

 

No v.3, o diabo (lit, divisor e opositor) empreende sua primeira sedução/tentação. “Se tu és Filho de Deus...” Como está traduzido aqui, dá-se a entender que o tentador duvida da identidade e Jesus. Isso é falso. O texto grego é melhor traduzido quando se coloca a frase no afirmativo “Já que és o Filho de Deus”. O diabo quer propor a Jesus que, uma vez sendo Filho do Altíssimo, use todas as suas capacidades e prerrogativas em benefício próprio! Esta primeira tentação/sedução que se apresenta sob a imagem da necessidade e da fome física, diz respeito a maneira de relacionar-se com as coisas. Ela tenta mostrar o perigo de se conceber a missão de Jesus (e da comunidade) a partir da lógica do messias milagreiro, ao que ele se opõe radicalmente, porque não veio ao mundo para resolver os problemas de maneira fácil e, ao mesmo tempo, conforme à lógica do mundo: apoiar-se e reconhecer-se seguro nos bens deste mundo. A vida pede muito mais que pão. Transformar a pedra em pão é uma sedução que revela a mentalidade utilitarista e descartável para com as coisas. Usar as coisas como meio para se atingir uma finalidade. Por isso, a Palavra de Deus será ponto de referência e critério de discernimento para Jesus viver sua missão. Estará ele totalmente alicerçado na Palavra do Pai e a ela será fiel.

 

No v.5, o diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo, e lhe disse: ‘Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser. Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo será teu’. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (v. 5-8). Uma constatação importante: o evangelista não quer descrever o diabo como dono do mundo; mas está denunciando que o poder é diabólico quando exercido na exploração, quando promotor de injustiça e opressão. Lógica esta a qual o Evangelho e o Reino de Deus se contrapõem pelo amor, pelo serviço, a justiça e a fraternidade. Jesus, de sua parte rejeita o poder. Aquele que detém e retém poder e riqueza é porque o recebeu do diabo. Deus não dá poder a ninguém; dá seu Amor, que se faz serviço. Por isso, nesta sedução, o Cristo é tentado em sua relação com o próximo, isto é, como criar e estabelecer relações com os irmãos. Será pela relação de serviço que Jesus pautará sua vida no trato com os irmãos. Nunca pelo poder.

 

A terceira tentação/sedução acontece em Jerusalém. No v.9, o diabo leva Jesus até o alto do templo. Havia uma tradição popular que o messias, desconhecido de todos, subitamente apareceria no alto do Templo de Jerusalém. O evangelista usa o termo Jerusalém para identificar toda o judaísmo – a instituição religiosa – do tempo de Jesus. Nessa perspectiva, a terceira tentação/sedução de Jesus se dá na ordem de sua relação com Deus: tomar o lugar do Pai, utilizando também das estruturas religiosas que legitimam uma falsa imagem acerca de Deus. “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!' E mais ainda: 'Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra” (v.9-11). Esta tentação/sedução entende-se na ordem do “faça o que o povo quer ver”, ou, “dê o que eles querem”. “Faça um gesto espetacular ou qualquer coisa de extraordinária”. “Já que és Filho de Deus, você não precisa dele. Podes fazer o que bem entender”. Mas Jesus não irá ao encontro das expectativas das pessoas, mas as tornará livres destas. Por isso, a sua resposta desarticula o tentador: “Jesus, porém, respondeu: "A Escritura diz: 'Não tentarás o Senhor teu Deus” (v.12). O senhor possui uma grande fidelidade ao Deus que chama de pai, sem qualquer necessidade de requerer para si ou exigir Dele gestos extraordinários. É, também, uma forma muito clara de se mostrar que Ele rompe com qualquer tipo de inconsequência em relação à condição de homem verdadeiro e de Filho de Deus em sua missão. Este princípio vale igualmente para o discípulo do Reino: este, na missão, não poderá ser um inconsequente, porque a obra não é sua, mas de Deus. Há que se saber tirar e medir as consequências da missão, do agir e do querer de Deus em Jesus. Para Jesus e para seus discípulos não vale a lógica do “Deus nos acuda”.

 

As seduções acabam com uma afirmação enigmática de Lucas: “Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (v.13). O momento oportuno é aquele momento em que Ele estará suspenso na cruz. Ali, as tentações/seduções voltam novamente através da multidão e dos lideres religiosos, dos soldados e do malfeitor, que, insultando a Jesus crucificado provocam-no a agir em benefício próprio (“Já que sois o Cristo, salva-te; desça da cruz (Lc 23)”. Na cruz, última tentação de sua missão recusará uma vez mais as seduções e mostrará a sua fidelidade ao projeto de seu Pai e do Reino que anunciou.

 

Que estejamos dispostos a percorrer com Jesus as dinâmicas e caminhos percorridos por Ele. Como Ele, também nós não nos encontramos imunes. Como Ele, também somos convidados a deixar-nos conduzir pelo Espírito de Deus, a Força, condição e dinâmica de Amor servidor. A partir dele, somos chamados a reorientar nossas relações com as coisas, com os outros (também na ordem do bem comum), e a nossa relação com Deus.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco de São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


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