sábado, 15 de março de 2025

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA QUARESMA – Lc 9,28b-36:

 


O evangelho que meditaremos hoje encontra-se no capítulo nono da catequese lucana. Para compreende-la bem, se faz necessário conhecer seu contexto. A narrativa da transfiguração situa-se entre três importantes momentos: 1) a confissão de fé de Pedro, suscitada pela pergunta de Jesus acerca de sua identidade (Lc 9,18); 2) o primeiro anúncio da paixão (Lc 9,22); e, 3) as exigências quanto ao discipulado (Lc 9,23-27). Depois da profissão de fé dos discípulos que confessava Jesus como Messias, ele trata de mostrar como será o seu messianismo para coibir e evitar qualquer concepção errônea acerca de si. Diante de uma clara explicação, os discípulos ficam decepcionados e amedrontados. Por isso, o Senhor toma a decisão de leva-los consigo para a experiência na montanha.É nesse contexto que se encontra o relato da transfiguração, o qual somos convidados a meditar. Interessante, que ele antecede, também, o segundo anuncio da paixão, ao mesmo tempo que prepara a viagem de subida para Jerusalém (Lc 9,51).

O Evangelista informa que Jesus levou para a montanha três de seus discípulos: Pedro, Tiago e João (os irmãos trovão). Ao interno do grupo dos Doze, os três eram os mais difíceis de se lidar. Pedro, explosivo, impulsivo e cabeça; Tiago e João possuíam um temperamento inflamado, intolerante, e, muitas vezes ambiciosos. Estar com o Senhor na experiência da montanha não indica privilégio, mas uma necessidade: estes eram os que tinham uma necessidade mais profunda no processo do discipulado. Uma transfiguração autêntica, deixando para trás a mentalidade equivocada acerca da vida e da missão do Mestre.

Lucas diz que Jesus subiu para a montanha a fim de orar. A oração é um traço característico seu no Terceiro Evangelho. Ele ora ao Pai antes de cada atitude ou gesto; antes de decidir-se ou ensinar: na escolha dos Doze (Lc 6,12); antes da pergunta relacionada a sua identidade (Lc 9,18); durante o caminho de subida para Jerusalém (Lc 11,1); e antes de sua paixão (Lc 22,39). A montanha, para a teologia bíblica, é o lugar ideal para se fazer a experiência com Deus, bem como o lugar costumeiro de sua manifestação (as teofanias). Não se trata de um mero lugar geográfico, mas, acima de tudo, teológico. Ora, todo a possibilidade e ocasião de encontro com Deus acaba sendo um “subir a montanha”. É preferível não identificar a montanha com o Tabor. Esta identificação surgiu com Origenes (escritor e teólogo) entre os séculos II e III. Este dado não se sustenta com a leitura da bíblia. É melhor manter a montanha anônima, tomando-a somente como a possibilidade e um encontro com Deus.

Em seguida, Lucas nos informa que, enquanto rezava, as roupas de Jesus ficaram brancas e brilhantes, e sua aparência mudou. As roupas brancas e brilhantes são símbolos da realidade divina, do mundo celeste; daquilo que pertence ao âmbito de Deus. Com esta imagem, o evangelista pretende ensinar para a sua comunidade que o Senhor, mesmo sendo homem, pertence ao âmbito divino; transfigura-se: ou seja, o Seu rosto reflete a glória do Pai. Nesse sentido, a transfiguração não é apenas uma antecipação da ressurreição, mas a revelação acerca da identidade de Jesus. Através da transfiguração, o Pai mostra quem é o Filho, e este introduz na realidade divina os discípulos.

O texto nos informa que, junto a Jesus apareceram Moisés e Elias. Primeiramente, ambos são aquelas figuras associadas ao tempo da vinda do Messias, no fim dos tempos. São, também, a síntese de todo o Antigo Testamento, ou seja, a Lei (Moisés) e a Profecia (Elias). Mas, ao mesmo tempo, representam todas as esperanças e expectativas bíblicas em relação ao Messias. Também eles, segundo Lucas, aparecem revestidos de glória. Indicativo de que já participam da esfera divina.

O conteúdo da conversa é o que importa para Lucas, para a comunidade, e para a geração posterior. “e conversavam sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém” (v.31). Na verdade, o original grego não fala de morte, e sim de Êxodo. Ou seja, o caminho (saída) de Jesus, que se consumará em Jerusalém. Ora, Moisés e Elias haviam cumprido suas missões em meio a grandes sofrimentos, perseguições e tribulações. Assim também acontecerá com Jesus.

Moisés foi o líder do primeiro êxodo. Elias, em contexto de perseguição defendeu a fé no Deus libertador do Êxodo. O evangelista quer ensinar que Jesus é o novo Moisés, e que com Ele começa um novo êxodo através de sua morte e ressurreição. Nesse sentido, o Senhor supera em tudo as grandes personagens das Escrituras, porque Ele não vai para Jerusalém apenas para morrer, mas para abrir e fazer um caminho e um processo de libertação – que, sim, é perpassado pelo sofrimento e pela morte – coroado com a ressurreição.

Os discípulos que acompanhavam a Jesus caem no sono. Dormem e não participam da conversa entre Jesus e aquelas duas personagens. Na verdade, o evangelista está denunciando duas atitudes incompatíveis com o discipulado:  o sono simboliza a indisponibilidade, a resistência diante da proposta e do projeto de Deus; mas também a falta de perseverança na oração por parte da comunidade, a partir da distração dos discípulos. A resistência, a indisponibilidade e a distração impedem a experiência com Jesus.

Mais ainda, isso mostra que ela não compreendeu o projeto de Jesus, quando Pedro revela a intenção de armar ali três tendas: para Jesus, Moisés e Elias. Construir tendas revela a tentação do comodismo; a manutenção dos esquemas e dos modelos antigos e descomprometidos com a novidade que Jesus apresenta. O desejo de permanecer na montanha – sob o verniz da oração – pode revelar, também, o desejo da fuga da realidade ou mesmo o descomprometimento para com ela. É preciso, sim, subir a montanha para reabastecer-se de Deus, para poder descer à realidade concreta.

Todavia, o mais grave da fala de Pedro revela-se no seguinte: colocar Moisés ao centro, entre Jesus e Elias. Isso revela que Jesus ainda não é o centro da vida deles, muito menos da comunidade dos discípulos. Eles ainda continuam dando preferência e importância a Moisés e para o que ele representa, a lei de Moisés. Onde o Evangelho não é o centro, não há Graça; onde o evangelho de Jesus não ocupa o centro da vida não há salvação; quando Jesus não ocupa a centralidade da vida da pessoa, não há discipulado nem missão, muito menos Igreja.

O Pai, então, intervém, falando de uma nuvem, símbolo da presença divina (assim como no Batismo). Ele dá um testemunho favorável acerca de seu Filho diante das resistências oferecidas pelos discípulos: “Este é o meu filho, o Escolhido (o eleito). Escutai o que Ele diz” (v.35). Lucas modifica a versão de Mt e Mc, quem mantém o adjetivo “amado”. Na concepção da salvação universal, muito apreciada pela obra lucana, a humanidade toda é amada por Deus. Mas o adjetivo “o escolhido” tem maior profundidade: aponta para a unicidade da missão de Jesus, o autorizado pleno da parte do Pai para anunciar a Palavra da salvação, digna de toda a atenção. Por isso, a ordem: “escutai o que Ele diz”. Diante disso já não são necessárias as presenças de Moisés e Elias; eles se retiram porque não tem mais nenhuma novidade a dizer. Agora será somente o Evangelho de Jesus (Ele mesmo) o parâmetro para a vida e o agir da comunidade. Será a este Evangelho que os discípulos deverão escutar para terem suas vidas transfiguradas.

O Evangelho que meditamos cumpre sua finalidade quando propõe à comunidade de todos os tempos “escutar o Filho escolhido”. Nesta perspectiva, algumas perguntas se fazem necessárias: 1) tenho, de fato, me exercitado na escuta da Palavra do Filho Escolhido, Jesus? 2) Ou venho escutando outras vozes e palavras, permitindo-me instalar nos comodismos dos esquemas e projetos já fixos e endurecidos, ou mesmo fazendo destes uma rota de fuga da realidade concreta? 3) O Senhor tem ocupado a centralidade e a referência em minha vida, ou outras coisas, situações, ou pessoas tomaram-lhe o lugar?

Que o evangelho deste II Domingo da Quaresma nos ajude a transfigurarmos através da escuta da Palavra do Filho escolhido e a descer da montanha para transfigurar os irmãos e as realidades ainda enrijecidas pelo comodismo e pelos esquemas de morte.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco de São Judas Tadeu, Avaré; Arquidiocese de Botucatu-SP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário