sábado, 20 de julho de 2019

HOMILIA PARA O XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 10,38-42:



A Igreja continua a leitura do capítulo décimo do Evangelho de Lucas. A moldura da narrativa é a mesma: a subida de Jesus para Jerusalém, meta final de sua viagem. Ao logo desta subida alternam-se as situações de acolhimento e hospitalidade e rejeição (por exemplo em 9,53, os samaritanos não recebem a Jesus). Mas na pericope meditada pela liturgia de hoje, as mulheres Marta e Maria acolhem a Jesus em casa (Lc10,38-42). Este texto pertence somente à tradição de Lucas, e, como sendo de seu perfil, o evangelista trata imediatamente de mostrar Jesus quebrando paradigmas da época.

“Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa” (v. 38). O evangelista não cita o nome da aldeia (mas situa os personagens aos poucos): é aceitável que Lucas e sua comunidade conheçam a tradição sobre Lázaro, Marta e Maria, e a tenha colhido do Quarto Evangelho. Talvez por isso, não lhe seja necessário situar com precisão, no nível da narrativa (cf. FÁBRIS, R. p.127).

No tempo da sociedade de Jesus, somente o homem podia receber um convidado em sua casa, uma vez que a mulher não tinha esta autonomia. Marta vai aos afazeres domésticos, conforme os costumes da época. Na verdade, ela faz aquilo que era próprio da mulher dentro de seu contexto social: ser a dona de casa (a doméstica). Sua atitude já era de ser esperada naquela situação social: exclusão dos meios masculinos e a submissão. Ao acolher Jesus, ela rompeu barreiras. Jesus, de sua parte também inova: uma vez que no seu tempo não parecia bem a um homem aceitar a acolhida de mulheres. O evangelista visa ensinar que, ao interno da comunidade e da vida do Reino, homem e mulher são iguais em dignidade e em direitos.  

Em contraste a ela, vemos a sua irmã, Maria. Ela senta-se aos pés de Jesus. “Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra” (v. 39). Ora, a mulher não podia ser admitida nos círculos de ensino da Lei, nas escolas rabínicas. Objetivamente, ela não poderia estar ali. Na Catequese de Lucas, Maria inaugura um novo papel para as mulheres: o da discípula. O gesto de sentar aos pés não quer dizer adoração nem devoção, como muitas interpretações afirmavam. Muito comum no ambiente rabínico e sinanogal, o “sentar aos pés” indica a postura ideal para a escuta. Ou seja, ser discípulo ou discípula; também é aceitar o outro como mestre. O Jesus de Lucas abre espaço para o protagonismo das mulheres, restaurando a dignidade delas (por ex. Lc 7,11-17.36-50; 8,1-3).

Temos aqui, novamente, uma dupla transgressão: a de Maria, que exerce um papel inconcebível para uma mulher da sua época, e a de Jesus que, ao aceitar mulheres no seu discipulado, põe cada vez mais em xeque a sua condição de mestre. Inclusive, na época circulava o seguinte ditado: “é melhor queimar a Torá do que colocá-la nas mãos de uma mulher”. Com isso, Jesus rompe com todos os padrões de mestre da sua época. Rabino algum do seu tempo aceitava mulheres no discipulado (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Agora entramos no núcleo da narrativa. Recapitulemos que a viagem de subida para Jerusalém revela-se, também, caminho de instrução para os discípulos. A partir desta constatação podemos captar o ensinamento de Jesus a respeito do autêntico discipulado-missionário: só pode ser autêntico discípulo dele, a partir da experiência da escuta de sua palavra! Este é um dos temas importantes da catequese lucana. E o diálogo nos ajuda a perceber isso. A Escuta de Maria não é uma escuta ociosa (para fugir do serviço doméstico), ou passa-tempo; tampouco é uma obrigação. Mas é uma escuta que a coloca na dinâmica do “pôr em prática” aquela Palavra.

“O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas” (v. 41). O diálogo, e fundamentalmente, a resposta de Jesus sobre a atitude de Maria serve para colocar em destaque a condição para se tornar autêntico discípulo, e ao mesmo tempo manter-se na atitude missionária: a escuta da Palavra do mestre. Não se trata de uma reprimenda ou censura. Jesus vê que a agitação e o ativismo de Marta a impede de fazer experiência da Palavra que ele transmite. Faz-se necessária a escuta da palavra do Mestre para que o serviço realizado pelo discípulo não se torne agitação vazia e estéril. De nada adianta o muito fazer, se antes não existir um encontro experiencial com a Palavra do mestre. Por isso, Jesus dá uma oportunidade a ela ao chamá-la duas vezes pelo nome. Na teologia bíblica, quando Deus chama uma personagem pelo nome duas vezes (Marta, Marta; Samuel, Samuel (1Sm 3,10); Moisés, Moisés (Ex 3,4); Saulo, Saulo (At 9,4)), é porque Ele está fazendo um chamado vocacional. Jesus está chamando, portanto, Marta a mesma condição de sua irmã, Maria: à vocação ao discipulado.

 O leitor-ouvinte do evangelho segundo Lucas encontra em Marta e Maria a experiência da escuta atenta (da Palavra de Deus), que as torna discípulas e que ordena e harmoniza o Serviço aos irmãos. Só pode servir o próximo quem, primeiro, faz a experiência da escuta da Palavra Deus. Da escuta, se move à Práxis, que é critério de verificação da escuta desta mesma Palavra. Do contrário, fica-se imerso na agitação, no muito fazer e desconectados da escuta da Palavra de Jesus.

Esta é, na perspectiva de Jesus (e do evangelista) a melhor parte. uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (v. 42). Embora a tradução litúrgica use a expressão “a melhor parte”, o correto é “a parte boa” (em grego: τήν άγαθήν μερίδα), pois é a única que realmente importa, e é incomparável. Essa “parte boa” é o Evangelho, o conjunto do ensinamento de Jesus e a sua própria pessoa. É escolhendo a “parte boa” que o ser humano encontra vida em plenitude e, por isso, se torna uma pessoa livre (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

No entanto, outra característica emerge deste texto bíblico. A escuta atenta da Palavra de Jesus, que torna homens e mulheres discípulos e discípulas de Jesus e do Reino deve encaminhar outra atitude importante, a acolhida-hospitalidade.

A hospitalidade é para o homem bíblico – e deve ser para todo o cristão, discípulo e discípula de Jesus – outro momento privilegiado para se fazer a experiência com o Deus-falante e interpelador. Deus quer ser hospede na casa da existência humana. O é de uma vez por todas, pelo mistério da Encarnação em Cristo Jesus. E quer ser, na medida e ao interno das relações estabelecidas entre os irmãos. Não é possível fazer a experiência da hospitalidade para com Deus, através de sua Palavra, se não há hospitalidade e acolhida para com irmão! Se os homens e as mulheres de hoje não se detêm para escutar aquilo que o outro têm a dizer, em suas dores, fadigas, revezes, lições e testemunhos de vida, não haverá espaço para hospitalidade para com Deus em sua Palavra, tampouco serviço autêntico e sincero a Ele nos irmãos.

Quantas vezes nossas comunidades ditas cristãs se distanciaram da Palavra de Jesus? Temos nos colocado aos pés de Jesus para acolher e escutar sua Palavra, e, consequentemente, tornarmos discípulos dele? Temos cooperado na promoção dos irmãos e das irmãs, de modo que eles também se tornem discípulos? Ao redor de Jesus todos, indistintamente, são chamados a encontrar seus lugares. Só poderemos subir à Jerusalém com Jesus, se estivermos dispostos a fazer a experiência da hospitalidade de sua Palavra, acolhendo e servindo os irmãos. Só poderemos ser autênticos discípulos, se nos dispusermos a ficar aos pés de Jesus juntamente com eles.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP

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