sábado, 21 de novembro de 2020

SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO - Mt 25,31-46:

 


Ha três domingos, o Senhor falava dos mistérios do Reino. A partir de três parábolas refletíamos sobre a ausência de alguém: o dono da casa, que havia saído; o noivo, que tardava em chegar; o patrão viaja e deixa seus bens em forma de talentos. E agora, na conclusão deste discurso escatológico segundo Mateus, o mesmo evangelista nos desafia e nos diz: aquele que pensávamos ausente, sempre esteve presente. O Filho do Homem sempre esteve presente em nosso meio, mais ainda tínhamos dificuldades em reconhecê-lo. Não conseguíamos ver a sua gloria porque ele se deixava ver através dos últimos, dos pequenos, dos desprezados e marginalizados; naqueles que tinham fome, sede; não tinham roupa nem terra; inclusive naqueles que estavam presos. Ele sempre esteve presente, mas, ao invés de vermos sua glória, enxergávamos tão somente sua pobreza.

A solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, apresenta a conclusão do discurso escatológico de Mateus (Mt 24 – 25), a última catequese que o evangelista reuniu a partir do ensinamento de Jesus, que antecede, por assim dizer, os momentos finais da missão pública do mestre, os julgamentos religioso e político e sua morte. É provocativo meditar o evangelho desta solenidade a partir do simbólico contido na parábola que mostra os critérios pelos quais se pautam o Filho do Homem glorificado. A realeza, se é que alguma vez Jesus tenha pretendido essa condição para si – o que vemos em sua vida e em seu agir é diametralmente contrário a esta ideologia régia – se pauta, acima de tudo, no serviço, na entrega e na doação de si para aqueles que se encontram na marginalização. O fio condutor, que será como que um baixo contínuo a ressoar será o dito “todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!”. O texto proposto para a liturgia deste último domingo do ano litúrgico é longo. Por isso deteremos nossa leitura sobre alguns versículos para podermos beber e saborear a mensagem contida neste texto.

Jesus continua seu ensinamento, ao interno do discurso escatológico, recorrendo a uma imagem muito presente na tradição de Israel contida no Talmud. Ali se lê “Na outra vida, o Santo, que bendito seja, tomará um rolo da Torá, o repousará sobre os joelhos e dirá, ‘os que estiverem trabalhando, venham, pois receberão a sua recompensa’”. Como mestre autorizado, Jesus muda o conteúdo deste pano de fundo da tradição de Israel para mostrar o seguinte aos seus discípulos: aquilo que determinará a vida do individuo não será a relação que estabeleceu com a Lei, mas a relação que ele estabeleceu com o seu irmão, porque, conforme dissera Mateus no início do seu evangelho, Jesus é Deus-conosco – Emanuel. Assim, com Ele, a relação da humanidade não se dirige unicamente à Deus, mas com Deus e como Deus ao homem. De modo que não existe relação com Deus que não passe pelas relações humanas. O Deus de Jesus não pedirá contas ao homem se este honrou-O com sua fé, mas se foi capaz de amar como Ele.

O Jesus de Mateus apresenta-se como o “Filho do Homem” glorificado. Esta personagem bíblica, aparece desde a literatura apocalíptica de Daniel, em Dn 7. É uma figura misteriosa, simbólica, que pode, por um lado aludir à condição humana da personagem em questão. De outra parte, representa aquele que foi escolhido e investido por Deus para a tarefa de executar o agir, o senhorio, o querer (justiça) de Deus mesmo na história. É dessa personagem que Jesus se serve também para conceber sua ação e seu ministério. Qual a atitude desta figura escatológica?

“Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos” (v.32). Reunirá todos os povos da terra, separará as ovelhas dos cabritos. Interessante que Mateus se serve da expressão literal “todas as nações pagãs” (πάντα τὰ ἔθνη – panta tá Ethne), para indicar que a imagem do juízo não será aplicado a Israel, mas a todas as nações pagãs, isto é, que não fazem parte do povo israelita. Na perspectiva de Mateus, o povo já recebeu seu juízo ao recusar a ação de Deus em Jesus. A ação deste Filho do Homem será a saber separar, como um pastor, as ovelhas dos cabritos (lit. bodes). Sabe separar porque conhece bem aqueles que empenharam sua vida para o bem, daqueles que não assumiram este caminho. As ovelhas são símbolos para os que deram o passo ao discipulado. É importante notar que o julgamento se dá ao interno do rebanho.

Qual caminho é este? Jesus elenca seis atitudes. Estas atitudes não estão voltadas para o campo da religiosidade, da observância ritual. Mas no horizonte das relações humanas. Estas seis atitudes estão voltadas para as necessidades e pelas situações de sofrimento humano. Na perspectiva de Jesus, o que salva o homem não é um comportamento religioso. E sim um comportamento humano.

Dar de comer e de beber significa restituir as necessidades básicas e vitais aos empobrecidos. É recuperar a dignidade humana e o direito de cada um, já assegurado no decálogo, no código da Aliança em Ex 19 – 24. A Lei de Israel já previa também o auxílio ao estrangeiro, uma vez que o próprio povo fora estrangeiro no Egito. Receber o estrangeiro, era, ainda, uma forma de se fazer experiência com Deus; a hospitalidade para com o estrangeiro era a oportunidade de acolher o próprio Deus que visitava seu povo. Basta recordar a experiência de Abraão, junto do Carvalho de Mambré (Gn 18,1-15).

Nos chama a atenção, duas categorias que o narrador da parábola enfoca: os enfermos e os encarcerados. Os enfermos eram, no tempo da sociedade de Jesus excluídos da vida social e religiosa, uma vez que a enfermidade era concebida como castigo, como consequência de algum pecado que a pessoa tivesse cometido ou, como equivocadamente se pensava, alguém de sua família o tivesse feito. A visita ao enfermo, nesse sentido, se torna um gesto de ruptura com aquela mentalidade. Significa recuperar a dignidade da pessoa através do cuidado para com ela, O prisioneiro era, no tempo e na cultura de Jesus, alguém que não suscitava compaixão ou piedade dos outros. Suscitava desprezo. Ir visitar um prisioneiro exigia também alimentá-lo, uma vez que os carcereiros não executavam essa tarefa. Via de regra, os encarcerados eram aqueles que o Império rotulava como subversivo, perigoso, revolucionário. Mas, todas as vezes em que se menciona a situação do cárcere no NT, este se deve ao Evangelho. Nesse sentido, visitar os prisioneiros seria, da parte dos discípulos do Reino, uma tomada de posição e de atitude. Significava voltar-se contra a ideologia imperial e optar pelo Evangelho.   

Depois destas atitudes descritas pelo Filho do Homem – no caso, o próprio Jesus que narra a parábola –, segue-se o questionamento daqueles que foram contados e separados como justos: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?” Segue-se a resposta da personagem apocalíptica: “Em verdade eu vos digo, que todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (v.40). O menor, ao interno da parábola, é aquele é colocado como o último, o desprezado, marginalizado e excluído. São todos aqueles que, no tempo de Jesus, não eram contados como pessoas.

O outro lado da moeda também é descrito pelo narrador-personagem da parábola. “Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos” (v.41-46). O adjetivo “maldito” não pode ser entendido como uma sentença de Deus dada ao homem. Deus não amaldiçoa o ser humano. Este dito contido na parábola recorda o fratricídio de Abel, por Caim. Assim, Jesus é muito severo: não oferecer ajuda, não responder às necessidades mais elementares do ser humano, não socorrer o irmão em seus sofrimentos, equivale cometer a mesma falta de Caim. É o mesmo que um homicídio. São considerados malditos não da parte de Deus, mas devido ao seu egoísmo, ao fechamento diante das necessidades dos irmãos, se tornam malditos. A estas pessoas, Jesus não reprova por terem feito algo mal, mas por não terem empenhado a vida pelo bem do irmão, tornando-se instrumento de morte para o próximo.

Diante deste belíssimo texto, possamos fazer a revisão de nossa vida e de nossa missão.

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família/Arquidiocese de Botucatu-SP.

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