Durante oito dias, desde a noite santa da solene vigília de natal, a Igreja permaneceu ao redor do menino de Belém. Hoje, concluindo esta Oitava do Natal, a liturgia celebra a Solenidade de Maria Mãe de Deus, uma proclamação da fé da Igreja acima de tudo cristológica – relacionada à Fé em Jesus de Nazaré. Sempre válido dizer e relembrar que tudo aquilo que se pode dizer acerca de Maria, Mãe de Jesus, só é possível em virtude do que foi dito acerca de seu filho. Só se pode afirmar que ela é mãe de Deus porque seu filho primogênito é Deus – feito homem.
Na solenidade do santo Natal, a Igreja faz a memória do mistério da Encarnação, ou seja, Deus que se fez carne, armando sua tenda entre nós (Jo 1,14). Com a solenidade de Maria, mãe de Deus, pretende-se visibilizar ainda mais a realidade deste mistério, colocando acento, agora, na humanidade do Filho.
A proclamação de Fé eclesial sobre a maternidade divina de Maria, que já era celebrada pela tradição orante da Igreja, possui seu contexto histórico, e é importante recordá-lo. No século III, o bispo de Antioquia, Nestório, juntamente com seus companheiros acreditavam (de modo equivocado, é claro) que a humanidade e divindade de Jesus eram distintas e separadas. Tal afirmação não era correta. Os primeiros concílios do cristianismo, começando por Nicéia (325 d.C) e culminando em Calcedônia (451 d.C), confessavam e professavam a unidade das naturezas (humana e divina) na pessoa Jesus. Em 431, o Concílio de Éfeso, através de Cirilo de Alexandria, reafirmou esta fé cristológica: em Jesus existe uma comunicação (de idiomas) tão grande entre humanidade e divindade. Assim, Maria é mãe de Jesus Cristo em sua totalidade, e não só de sua humanidade. Dizer que Maria é mãe de Deus, significa confessar que o Logos-Palavra de Deus assumiu concretamente a natureza humana: Jesus é verdadeira e plenamente Deus; verdadeira e plenamente homem.
O grande Ambrósio, bispo de Milão, refletia sobre a realidade da maternidade de Maria, afirmando que ela foi primeiro mãe de Jesus no coração, para ir se tornando mãe de Deus na Carne. E isso, só foi possível mediante sua condição exemplar de discípula. É a segunda lição que o evangelho desta solenidade quer nos transmitir. Por isso, somos convidados a adentrar no seu horizonte.
A liturgia traz para a nossa meditação, a continuidade do texto do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,16-21). Sabemos, que neste evangelho, Maria ocupa o modelo do discípulo do Reino. As características fundamentais residem na escuta, no acolhimento, e no cumprimento da Palavra de Deus na vida, e através dela, na história humana. A Mãe de Jesus apresenta estas características neste mini-evangelho da infância.
Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso não eram habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico. No v.16, eles vão se certificar de que aquela Boa Notícia dada pelo mensageiro celestial era realidade.
Ao chegarem encontram tudo conforme lhes fora dito pelo anjo. O recém-nascido envolvido em faixas e posto numa manjedoura. É oportuna esta informação. Lucas quer enfatizar através da imagem do menino enfaixado a realidade da sua humanidade, a fim de que sua comunidade e seus leitores nunca percam de vista a novidade que este acontecimento traz: Deus que se faz homem. O divino que se deixa envolver pelas faixas da humanidade. Aquela criança, cuidada e protegida, através de sua humanidade e fragilidade traz em si o divino.
O Evangelista nos informa a postura da mãe do Menino. Ela guardava e meditava no seu coração todas aquelas coisas (cf. v.19). Temos aqui o sentido rico e autêntico do verbo guardar (hbr. shemá), que é como no nosso português popular, o verbo curtir: Maria ficou curtindo todas essas coisas no coração. “Guardar no coração” pode aludir a atitude da ruminação, ou mesmo um confronto consigo mesma. Maria rumina aquele alimento da Palavra de Deus, bem como aqueles fatos carregados da força daquela mesma Palavra; rumina, como que num gradativo e necessário processo digestivo, que precisa ser feito sempre e constantemente. A postura de Maria nos encoraja a aceitar os processos da vida e da história, de modo a compreender que nada é ou acontece num piscar de olhos, ou como que num passe de mágica.
No esquema da obra lucana, o discípulo de Jesus é aquele que escuta a palavra de Deus, a acolhe em seu íntimo, ruminando-a, para, enfim, colocá-la em prática, frutificando a Palavra de Deus através da vida e do serviço aos irmãos. Com a informação que Lucas nos dá sobre a mãe do menino, o leitor do evangelho é convidado e enxergar nela o modelo, a exemplaridade do discípulo de Jesus.
O v.21 encerra para nós a narrativa de hoje: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido”. O evangelista revela aos leitores-ouvintes de seu evangelho qual será a vocação do menino. Jesus é a tradução do hebraico Y’eshua, que significa “Deus salva”. Nesse sentido, a salvação não vem do imperador de Roma, que recebia o título de salvador (gr. Sôter), mas do menino envolto em faixas, na manjedoura. Deste menino, do qual Maria, da condição de mãe, é chamada a assumir a condição de discípula. Mas a salvação que este menino/homem trará será uma constante contradição. Será uma salvação que acolhe e reintegra a todos, sem distinções; uma salvação que atingirá a totalidade do ser humano e da história, isto é, que tocará todas as dimensões constitutivas da condição humana, não sendo somente uma salvação do religioso, mas do humano, do social, do ético. Esta vocação salvadora de Jesus emergirá de modo explosivo no capítulo 4 da catequese de Lucas, no episódio de Nazaré. A primeira palavra que sairá da boca de Jesus, na Sinagoga de Nazaré, será a de que seu projeto de vida e sua missão messiânica contemplará o anúncio da Boa Notícia aos pobres, a libertação aos cativos, a recuperação da visão aos cegos, e o ano favorável de YHWH, e, que para esta missão, o Espírito do Senhor estaria sobre ele com a unção (Lc 4,18). Mas esta modalidade de salvação deverá ser acolhida também por sua mãe. Por isso será sempre um exercício constante a atitude de “guardar” no coração e meditar sobre os fatos e acontecimentos que a rodeiam. Por isso, Maria é nossa mãe, modelo e companheira. Ela nos precede no discipulado e na missão.
Quando proclamamos “Maria, mãe de Deus”, estamos dizendo, conforme o dogma, que ela é a mãe do Filho de Deus encarnado. Ela não se tornou uma deusa, nem entrou na Trindade. Por isso, devemos vê-la em relação às pessoas deste Deus Uno e Trino. Eis o terceiro ensinamento para solenidade de hoje.
Em relação ao Pai, Maria é igualmente filha. Ela foi agraciada com ternura pelo Criador, que a moldou com especial carinho. Ao mesmo tempo, Maria concretiza, de forma humana, a eterna geração que o Pai realiza acerca do Filho, no seio da Trindade. Como toda mãe, ela é figura do amor criador de Deus-Pai.
Em relação ao Filho, Maria é mãe, educadora e discípula. O seu relacionamento com Jesus supera os laços de família. Mas sua missão vai mais além. Esteve junto do Filho durante sua vida terrena e, agora, glorificada, continua junto do Ressuscitado, na comunhão dos Santos.
No tocante ao Espírito Santo, Maria é uma pessoa plena Dele. Como perfeita discípula de Jesus, acolheu o Espírito e fez-se transparente a ele. Tornou-se um templo vivo de Deus e se transformou, por Graça, na mãe do Messias.
O dogma da maternidade de Maria é, igualmente, um convite para homens e mulheres recuperarem sua dimensão materna. Ajuda-nos a abrir-nos para o projeto de Deus: escutar (ouvir), acolher e realizar a Palavra de Deus em nossa vida e através dela. Este é o melhor bom propósito para este novo tempo da Graça – Kairós – de Deus, que se inicia.
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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