O evangelho proposto para a solenidade da Epifania do Senhor é retirado da catequese mateana, Mt 2,1-12. O texto bíblico situa-se ao interno das narrativas da infância de Jesus. Os textos referentes à infância de Jesus não possuem a finalidade de ser uma crônica exata dos acontecimentos e dos fatos. Portanto, são teologias (cristologias, soteriologia) acerca de Jesus. Isso posto, torna-se seguro afirmar que a narrativa proposta para a liturgia de hoje é uma teologia narrativa muito bem elaborada por Mateus. O autor, através dos versículos de hoje, pretende responder para a comunidade quem é esse Jesus, a fim de iluminar lhes o sentido da fé e da vida.
Mateus, ao escrever o seu Evangelho, serve-se de todo o patrimônio religioso e histórico do povo de Israel. Adotando as técnicas rabínicas de escrita e de explicação, opera uma releitura das tradições religiosas e históricas do povo. Este método recebe o nome de midrash (a reinterpretação dos textos legislativos e narrativos da Torah). Para o evangelista, Jesus assume e revive, através de sua vida, ensinamento e missão, toda a história e toda a tradição de seu povo. O catequista Mateus faz incidir sobre a sua personagem principal, Jesus, todas as personagens, as tradições e as história de Israel na intenção de fazer crescer em sua comunidade a convicção de Ele é o Messias enviado por Deus.
O texto proposto para hoje enquadra-se naquele estilo dito acima e nas intenções do evangelista. A narrativa apresenta a visita de certos viajantes inusitados, os quais, conforme o pensamento religioso da época, não eram bem vistos: magos. Sábios estrangeiros, provenientes do Oriente pagão.
Mateus, para construir esta narrativa, se serve de um texto do Antigo Testamento, a visita da rainha de Sabá ao sábio rei Salomão, o descendente de Davi, em 1Rs 10 (// 2Cr 9). Ela se dirige à Judá para colocar a prova a sabedoria de Salomão. A sabedoria de Deus, da qual Salomão compartilhava, atraia até mesmo os estrangeiros. Com estes textos do AT, seus autores querem reforçar a ideia de a Sabedoria do Deus de Israel não conhecia limites. Não haveria fronteiras para ela. Mas, em sua narrativa evangélica, o evangelista opera uma superação em relação aos textos de 1Rs 10 e 2Cr 9): na visita dos estrangeiros do Oriente, são eles que se deixam interpelar e se render pela sabedoria de Deus revelada naquele pequeno recém-nascido. Isto posto, podemos contemplar narrativa bíblica.
“Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo’” (v. 1-2). Os dois primeiros versículos introduzem a narrativa no tempo e no espaço. Mateus bebe da mesma tradição de Lucas e confirma o nascimento de Jesus, em Belém, no período de Herodes Antípas (rei asmoneu; um usurpador). Mas o que deve chamar a nossa atenção é a chegada de três estrangeiros de profissão duvidosa, o que já surpreenderia os leitores do evangelho, provocando certa inquietação, por ser a comunidade mateana composta de judeus-cristãos. O evangelista usa o termo “mago” (gr. μάγος). Pessoas relacionadas com esse “mundo” e estas “práticas” não eram bem vistos segundo a Lei de Israel. A magia e quem a praticava eram reprovadas ao interno do povo. Deveriam ser banidos da vida social quem a praticasse, de acordo com a prescrição de Lv 19, e no Talmud ainda se lê, “aquele que aprende qualquer coisa relacionado à magia deverá morrer”.
Os primeiros a receberem a boa notícia do nascimento de Jesus Messias são os estrangeiros, pagãos e de profissão duvidosa. Há aqui uma mensagem importante a ser retida do texto. A salvação, que representa todo o projeto de vida e bênçãos que Deus oferece em primeiro lugar ao povo de Israel, não é um privilégio exclusivo a este, mas inclusivo, e destinado a todos, sem distinção.
Ora, Mateus identifica os visitantes como forasteiros, estrangeiros. Estes, no tempo e na sociedade de Jesus, e na qual encontra-se inserida a comunidade de Mateus, não eram bem vistos. Eram pessoas a serem temidas. Todavia, ao interno dos Evangelhos, os estrangeiros não são vistos sob perspectivas negativas, antes, positiva pois são destinatários do projeto salvífico de Deus. Eles não devem ser vistos como aproveitadores e usufruidores, que só retiram e tomam dos outros, como nossa sociedade atual pensa e teme, mas como pessoas que podem oferecer algo. E o que estas três personagens oferecem é o testemunho de uma boa noticia de salvação, que se estende a todos. Esta é a luz salvadora de Deus, que os atrai, ilumina seus caminhos e os envolve. Estão iluminados por esta luz salvadora e dela se fazem testemunhas!
Mas, diante de tal notícia, Herodes, o rei posto, se perturba. “O rei Herodes ficou perturbado, assim como toda Jerusalém” (v.3) Mateus acrescenta que também Jerusalém compartilha do mesmo estado de ânimo. O tetrarca e a cidade santa são símbolos do poder, da dominação, da tirania. Se perturbam porque sentem-se ameaçados em sua zona de conforto. Pressentiam o surgimento de um novo tempo, que novas formas de relações estavam sendo gestadas, uma sociedade alternativa estava nascendo, enfim, o Reino de Deus estava começando e, portanto, todos os reinos humanos deveriam desaparecer.
Acontece que esta salvação não reside em Jerusalém, centro do poder religioso e político do povo. Consultando as elites religiosas, os peritos nas Escrituras Sagradas, obtém-se a informação sobre o lugar do nascimento do novo rei: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá um chefe que vai ser o pastor de Israel, o meu povo” (v.6). Mateus se serve da profecia antiga de Miqueias, a qual situa em Belém o acontecimento. Fora de Jerusalém, portanto. Chama-nos a atenção o fato de que o medo e a perturbação foram tantas para Herodes e seus cortesãos, que eles precisam consultar as escrituras, como se nada soubessem a esse respeito. Na verdade, preferem ignorar. Deixam-se envolver pela sombra do poder a qualquer preço e inescrupuloso. Por isso, encontram-se na escuridão. Ali a estrela não brilha; não encontram o novo rei e sua luz. Só encontram a falsidade, a tirania, o poder e as trevas. Interessante. Mateus não informa que a luz que havia guiado os visitantes pagãos continuava brilhando sobre a cidade santa. Ao contrário, somente quando eles se afastam de Jerusalém e da influência de Herodes é que podem novamente contemplar a luz que lhes havia atraído. Seguiram, então, o caminho.
Ao retomarem a viagem, a estrala/luz volta a brilhar e a atraí-los. A alegria os assalta novamente (v.9-10). Somente afastando de toda a estrutura de um poder viciado pela dominação, pelas forças de morte e de trevas, e, colocando-se distantes das realidades que exalam uma experiência equivocada de Deus, perpassada pela escuridão, conseguem, pois, contemplar novamente aquela luz que os atraia e chegam ao lugar indicado. O evangelista descreve a atitude dos visitantes: “Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele, e o adoraram. Depois abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra” (v.11). O autor utiliza o verbo “adorar” (gr. προσκυνέω / proskinêo), aplicado somente para a atitude do homem em relação à Deus. Ele quer ensinar para a sua comunidade que os magos, estudiosos e estrangeiros pagãos reconheceram no menino a presença de Deus. Fizeram, ali, uma nova experiência com o divino. Contemplaram naquela criança uma sabedoria que não se apaga com o tempo. Experimentaram uma nova forma e um novo lugar de relacionamento com o divino: a humanidade. Viram, sentiram e experimentaram algo de totalmente novo naquela cena, que nunca haviam experimentado antes.
Os visitantes apresentam seus dons àquela família: ouro, incenso e mirra. Uma correta interpretação se faz necessária. Muitas vezes se romantizou demais a oferta dos magos, aludindo aos sofrimentos inerentes a vida de Jesus, ou mesmo sua divindade ou realeza. Os presentes não querem aludir ao destino de Jesus. Eles simbolizam a vocação que Israel não consegui responder, de acordo com Mateus. O ouro está ligado à realeza de Deus, e, na tradição de Israel, o povo é vocacionado a se tornar um “povo de reis”. O incenso, é a oferta que os sacerdotes oferecem no templo; as Escrituras afirmam que Israel é convocado por YHWH a ser um “povo sacerdotal”. A mirra é um perfume utilizado nas núpcias do casal; segundo a tradição profética, Israel é a figura da esposa desposada por Deus, o marido. De acordo com o evangelista, este projeto de “povo de reis, sacerdotal, e esponsal”, não pertence mais tão somente à Israel, mas, nos magos que trazem estas ofertas, encontra-se aberto a todas as nações. É uma vocação dirigida a toda a humanidade através da manifestação que Deus realiza em Jesus. É a missão e história que Jesus assumirá através da exemplaridade de sua vida. Ele será o pleno realizador da missão que o Israel antigo não conseguiu cumprir.
“Avisados em sonho para nãos voltarem a Herodes, os magos retornaram para sua terra seguindo outro caminho” (v. 12). Os visitantes são avisados em sonho, um lugar privilegiado para sentir o que Deus quer comunicar, é o âmbito da revelação do querer do projeto de Deus, conforme ensina a tradição bíblica. Seguir outro caminho é a primeira atitude de quem faz um encontro autêntico com Jesus. Desse encontro, surge uma nova maneira de relacionar-se com Deus e com o próximo. Para viver bem a nova relação com Deus é necessário desviar-se das antigas rotas e estruturas. Os viajantes não retornam pelo caminho de Herodes, isto é, não compactuam com sua mentalidade apegada, idolátrica em relação ao poder e as estruturas de dominação e de morte. A luz e a presença da Sabedoria de Deus com que tiveram contato através daquele menino, os fez ver que a sabedoria de Herodes não leva a lugar nenhum. O caminho da sabedoria divina, que é um novo modo de ser, de existir e de se relacionar com Deus e com os irmãos, este sim, leva para um outro caminho, ou seja, para a constante conversão. Este é o “outro caminho” para o qual o evangelista acena através da atitude dos magos, a retomarem a viagem.
O texto se aplica à vida do discípulo e da comunidade. Por isso, ao celebrar a epifania, o mistério de Deus que se revela e a sua salvação, para todos, sem exclusão, devem o discípulo e a comunidade crescerem na consciência de que esta salvação e este amor misericordioso de Deus através de Jesus, deve ser manifestado, agora, através da vida de cada discípulo e de cada comunidade. A vida do discípulo e da Igreja devem ser o espaço da epifania do amor e da misericórdia de Deus para todos. A comunidade não é apenas chamada a ser uma igreja para todos, mas uma Igreja que não exclua ninguém de seu meio. O discípulo não pode se contentar em revelar o amor Deus através de Jesus somente aos seus iguais, ao seu restrito círculo intelectual ou ideológico, ao clubinho. Não pode haver espaço no coração e na mentalidade do discípulo para a mentalidade/caminho de Herodes, que vê o outro como ameaça; que somente seu espaço ou zona de domínio, influência e poder (a qualquer custo) é o que vale e o que garante segurança. O caminho deste é a autossuficiência, a arrogância, a prepotência, a intolerância e, por fim, exclusão, a opressão, a morte (quer seja de um ou de todos). Há que se trilhar outro caminho.
Dentre os ensinamentos
que o evangelho da solenidade da Epifania oferece, chamo a atenção para três:
1) A salvação não é um privilégio exclusivo de poucos, mas inclusivo para
todos. 2) É possível aprender sobre Deus – realizar uma experiência com Ele –
também com os que são de fora; com os que pensam e vivem de modo diverso ao
meu, ou que concebo ser “correto”. O outro que pensa e vive diferente não é um
inimigo a ser vencido, um oponente a ser derrotado, um adversário ou “herege” a
ser combatido. O outro é um irmão. E, comigo, chamado igualmente a participar
deste projeto de vida plena revelado integralmente a todos. Indistintamente. E,
como irmãos, tomarem sempre um outro e novo caminho. Por fim, 3) sempre há o
convite para percorrer a caminhada por outro caminho, o Deus em Jesus, e não o
de Herodes.
Pe. João Paulo
Sillio.
Santuário São
Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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