sábado, 21 de janeiro de 2023

III DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 4,12-23

 


O evangelho proposto para a leitura e meditação neste terceiro domingo do tempo comum é retirado do quarto capítulo do evangelho de Mateus, o qual a partir do v.12 apresenta o início da missão de Jesus após retornar da experiência do deserto, após a prisão do Batista: “Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia” (v.12).

Duas informações importantes que o evangelista oferece para seus leitores e para os discípulos das gerações seguintes: a missão de Jesus inicia-se após o evento da prisão de João Batista. Por que? O profeta João, por conta de sua fidelidade à missão de preparar a chegada do Reino, encontra-se preso. Herodes o colocou na prisão após sentir-se incomodado com a denúncia feita pelo Batista, no tocante à relação impura com a mulher de seu irmão, Filipe. Com essa informação da prisão de João, o autor do evangelho quer antecipar para os membros de sua comunidade o que acontecerá com Jesus. Por conta de sua fidelidade ao Pai, à missão e ao anúncio do Reino, terá ele o mesmo destino do profeta batizador. Assim como João Batista preparou o caminho para a vinda de Jesus, o Messias, ele também abrirá a estrada para a paixão e a morte, a partir de sua prisão e morte.

A segunda informação importante diz respeito à localização geográfica que Mateus oferece (comum aos outros dois evangelhos sinóticos, Mc e Lc): a Galileia, na cidade de Cafarnaum, território de Zabulon e Neftali, duas tribos do reino de Israel do norte, que já eram dadas por extintas. Quase não se ouviam falar delas. Nazaré, então, nem no mapa daquela época constava. A mentalidade do judeu piedoso, que residia no Sul (Judá – Jerusalém) acerca das pessoas que viviam no Norte era desdém, desprezo, de rechaço, porque aquela região não conservava mais um judaísmo e uma população puros, devido à invasão assíria em 722 a.C, que povoou a Samaria com outros povos. O que causou uma miscigenação naquela região. A pureza da raça não existia mais, e um judaísmo hibrido surgia ali. Assim, aquela terra foi sempre malvista pelos terrivelmente religiosos. Jesus começa lá a sua missão; num lugar em que, um líder que se prezasse, jamais pensaria em estar.

A informação geográfica que o autor oferece não tem a intenção apresentar um ponto turístico, mas um lugar teológico. Para compreendermos o sentido teológico desta localidade é preciso entender porque o evangelista se serve do recurso das citações de cumprimento do Antigo Testamento, precisamente Is 8,23: “Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, região do outro lado do rio Jordão, Galileia dos pagãos! O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz e para os que viviam na região escura da morte brilhou uma luz” (v.15-16). “Galileia dos pagãos”, diz o texto do profeta, do qual o evangelista se serve. Se o leitor permanecer somente no enunciado, não será capaz de assimilar a profundidade da mensagem que o texto traz. O termo “pagãos” deve ser traduzido por “nações” (gr. ἔθνος/etnos) por pagãos. Mateus fala de uma Galileia das nações porque, conforme sua intenção teológica, a Boa Notícia que Jesus vem proclamar é destinada à todas as pessoas, de todos os lugares, sem distinção. O desígnio divino de salvação é destinado a todos!

No v.17, Mateus recupera o conteúdo da missão de Jesus, precedido pelo convite à conversão: “Daí em diante Jesus começou a pregar dizendo: Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”. O convite/chamado à conversão precisa ser compreendido a partir da intenção do evangelista. Na língua grega existem duas formas para o verbo converter: a primeira, relacionada a ação de retorno para Deus, da parte do homem. Esta forma adquire um sentido e significado mais religioso. Porém, a segunda forma, mais utilizada pelo evangelista, se refere à atitude da mudança da mentalidade (gr. μετανοέω/metanoêo). Por que o autor prefere a segunda forma do verbo converter, ligado à mudança da mentalidade, e não a primeira relacionada à atitude da reorientação à Deus? Para Mateus, não há necessidade que o discípulo realize a reorientação da vida à Deus porque em Jesus, Deus se faz conosco. É o Emanuel. Deus que se dirige a cada pessoa humana. Esta é a grande revelação que o evangelista transmite: Jesus é o Deus-Conosco. Ora, se ele é Deus-Conosco, não há mais porque busca-lo. Antes, acolhê-lo. Se Jesus é Deus-Conosco, não necessitará mais com que o homem viva para Deus, mas em Deus e, a partir Dele e com Ele dirigir-se aos outros. É o que ilustra o evangelista com a cena, a seguir.

“Quando Jesus andava à beira do mar da Galileia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Estavam lançando a rede ao mar, pois eram pescadores” (v.18). Jesus, ao iniciar seu ministério na Galileia toma a atitude de constituir um pequeno grupo. Trata-se de um gesto institucional que marca o começo da missão. Ele chama dois pescadores, Simão e André, irmãos; e outros dois irmãos, Tiago e João, consertadores de redes. Evidentemente, os quatro exerciam a atividade da pesca. Estavam envolvidos neste contexto. A ação de Jesus diante destes quatro é ritmada pelo verbo “ver”, que é o mesmo verbo utilizado pelo autor do livro do Gênesis, que, ao narrar a criação, diz que “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31). Igualmente, Jesus vê naqueles quatro homens a característica principal e indispensável para a sua comunidade: a capacidade para a fraternidade, isto é, serem irmãos.

A pesca também era um trabalho que marginalizava as pessoas, e isso, devido a duas razões: a pesca acontecia no lago ou no mar, e este ambiente era considerado impuro, porque o mar recolhia a força simbólica de tudo aquilo que era oposição e antagônico ao projeto de Deus. Por consequência produzia peixes bons e ruins; estes eram considerados impuros. O pescador acabava se contaminando com a impureza destes peixes, no processo da separação dos peixes. Os pescadores eram pessoas que via de regra também carregavam e pagavam o preço da impureza ritual, e, por isso, eram descriminados, conforme a mentalidade religiosa equivocada. Assim, ao chamar os quatro pescadores, Jesus os retira daquela situação de impureza, mas também pretende ensinar que aquela mentalidade era equivocada.

A missão messiânica de Jesus começa nas margens de um lago/mar, entre os que se encontravam nas margens da vida e da história, no intuito de mostrar que desta Boa Notícia de Salvação ninguém fica de fora; e que procura, chama e acolhe aqueles que se encontram nas margens da vida, com seus limites e suas imperfeições, para fazê-los participar de sua vida e missão. Isso precisa ser impactante para os leitores do evangelho de todos os tempos e lugares, porque ele poderia muito bem ter começado sua missão numa sinagoga, numa escola rabínicas da época, ou até mesmo no Templo de Jerusalém; e poderia ter reunido ao seu redor os mais exemplares religiosos da época. Ele escolheu quatro tipos de pessoas que nada tinham para lhe dar, e não os terrivelmente religiosos. Porque Jesus sabe que estas pessoas são totalmente refratárias ao convite à conversão, ao novo e à mudança da atitude; pensam-se superiores aos demais devido ao estilo de vida que levam. Creem-se já salvos e justificados. Outorgam para si a condição de senhores e ídolos dos outros.

“Jesus disse a eles: Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens”. A diferença do costume judaico, em que o discípulo escolhia o mestre, o Jesus de Mateus quebra esse costume, escolhe e chama para segui-lo, a fim de fazê-los pescadores de homens. Ele não convida a estudar a Lei/Torah, mas à uma ação prática que estava perfeitamente dentro do ambiente vital deles. Eram pescadores. Sabiam o que significava pescar o peixe: tirar este animal do seu habitat natural e traze-lo para terra, onde se encontram com a morte. Mas os seres humanos não sobrevivem na água, pelo contrário, correm risco de vida. Por isso, Jesus os chama para fazer o contrário: pescar homens. Ele está transmitindo aos discípulos a missão de salvar as pessoas que se encontram nas situações de morte (simbolizadas pela água, o mar), e transporta-las para a vida. A missão de trazer para a vida os vivos que podem se encontrar submersos nas situações de morte. Os quatro primeiros seguem-no. Deixam suas seguranças (as barcas, as redes e o conforto da casa, simbolizado pela figura do pai, no caso dos irmãos Zebedeu); o evangelista não narra uma só palavra deles a Jesus, não colocam suas condições, não pedem nada. 

O texto se conclui com um breve sumário da atividade do Senhor: “Jesus andava por toda a Galileia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todo tipo de doença e enfermidade do povo” (v.23). Trata-se de uma ação libertadora de Jesus. Pela primeira vez o evangelista utiliza o termo evangelho, isto é, Boa Notícia. Ela é anunciada numa sinagoga, lugar do estudo e da proclamação da Palavra. É uma forma muito sutil de Mateus ensinar que aquele lugar já não correspondia ao projeto de Deus. Ali, Jesus ensina e prega, e nunca será visto rezando ou estudando a Palavra naquele lugar. Mas lá, ao proclamar e ensinar a Boa Notícia, realiza, através de seu ensinamento a libertação das pessoas do peso da lei, e da imagem equivocada de Deus, que as lideranças e a instituição religiosa transmitiam. É interessante perceber a fineza do evangelista nesta polêmica: ele ensina através desta cena que Jesus está eliminando, com sua missão, a enfermidade da visão e da experiência equivocadas a respeito de Deus.

Permitamos que o Senhor passe pelas nossas margens, ressignifique sempre e constantemente nossas vidas, a fim de que possamos recuperar e ressignificar a vida dos que se encontram nas situações contrárias de vida, à margem da história e da realidade.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

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