O segundo domingo do tempo comum, apresenta para a leitura e meditação eclesial o primeiro capítulo do evangelho segundo João. Há poucos dias, a Igreja celebrava o Batismo do Senhor, e as personagens do Batista e de Jesus retornam, mas sob a perspectiva do Quarto Evangelho.
A narrativa de Jo 1,29-34, encontra-se no Livro dos Sinais – a primeira sessão do Quarto Evangelho – e corresponde à semana inaugural do ministério de Jesus. O autor se põe a narrar os acontecimentos do segundo dia da missão do Senhor, a partir do testemunho do profeta João Batista. O tema do testemunho é muito importante nos escritos joaninos. Testemunhar (gr. μαρτυρέω/Martirêo) significa atestar, dar fé sobre algo ou alguém. Todavia, só pode dar testemunho, e ser considerada uma testemunha qualificada, aquele que fez uma experiência de vida com Jesus, de acordo com o evangelista. Qual o conteúdo do testemunho de João, o Batista? O v.29 responde: Jesus como o Cordeiro que tira o pecado do mundo. Esta afirmação revela duas dimensões da identidade de Jesus: cordeiro e Filho de Deus, porque batiza com o Espírito de Deus.
O evangelista se apropria do ambiente levítico-cultual dos sacrifícios de expiação dos pecados, realizados no templo de Jerusalém. Os judeus costumavam oferecer, diariamente, no Templo, bois, cordeiros, touros para expiar os pecados. As vítimas oferecidas em sacrifícios tinham função expiatória e finalidade reconciliadora. Esta era a mentalidade religiosa do judaísmo vivido por Jesus. O autor do Quarto Evangelho, ao transmitir sua catequese para sua comunidade, se serve do texto de Is 53,4-12, no qual o profeta fala da ação do Servo Sofredor de YHWH, que carrega sobre si os pecados do povo. Tentando entrar no horizonte de sentido que o autor deseja transmitir, uma pessoa que fosse capaz de reconciliar as pessoas com Deus poderia ser comparada ao cordeiro do sacrifício. Mas a imagem do cordeiro pode lembrar também o cordeiro pascal (cf. “Cristo, nossa páscoa”, i. é, cordeiro pascal, em 1Cor 5,7; Jo 19,14.33.37), para as comunidades cristãs nascentes. Não se pode perder os dois horizontes de leitura e de interpretação do texto: o tempo narrado e o tempo da comunidade.
As duas imagens – Servo sofredor e cordeiro do sacrifício – serviram de base para que o evangelista, através do testemunho do profeta Batista, dissesse para sua comunidade e para as gerações seguintes algo acerca da identidade do Cristo. Ele eliminou o pecado do mundo. Mais ainda, para o evangelista João, Jesus é o Salvador não somente por tirar o pecado da realidade do mundo, mas por torna-se solidário com aqueles sobre os quais pesa o pecado. Ele mesmo sofre debaixo desse peso, não como culpado, pecador ou castigado em lugar da humanidade, mas como pessoa que, por sua fidelidade ao Pai, ainda que passando pela morte, abre um novo modo de existir.
O pecado para João é a atitude de rejeição a Jesus a ao projeto de Deus, enquanto resposta definitiva ao Seu amor. Desse “pecado fundamental” é que nascem os demais pecados, que são frutos da rejeição de Jesus e sua prática libertadora enquanto cordeiro e servo. Quem não o reconhece está no pecado e nas trevas (cf. 1,10). Por isso, o “pecado” que o Cordeiro-Jesus retira não deve ser entendido no sentido individualista e moralista (os pecados da listinha). É o pecado “do mundo”. Mundo entendido, aqui, enquanto realidade contrária ao querer de Deus; tudo aquilo que possa indicar um projeto oposto ao amor de Deus, que gera sempre uma realidade pecaminosa (ruptura) que parece dominar a convivência humana e a relação com Deus; um projeto destrutivo, que desde a origem da humanidade é obra do “príncipe deste mundo” — o qual, porém, é vencido por Jesus (cf. 14,30; 16,11.33). A vitória do Senhor se prolonga na sua comunidade a partir da Páscoa, quando é dado o Espírito para tirar o pecado do mundo (20,19-23).
O evangelista e o Batista querem ensinar, com isso, que, Jesus é o substituto e a superação de todo um sistema religioso-ritual do judaísmo antigo. Será Ele, através do dom de sua vida e obra, o encarregado de levar para fora do mundo, isto é, a realidade criada e a existência humana (o sonho original que Deus tem para seus filhos), toda a logica da ruptura, da descomunhão; aquilo que pode separar a pessoa humana de uma autêntica e profunda relação com Deus. Jesus, na perspectiva do autor do evangelho e do profeta João, será definitivamente aquele que retirará da história tudo aquilo que pode separar o ser humano e Deus, em suas relações. Mas isso só pode acontecer porque este Jesus age através do Espirito de Deus, e é seu portador.
O Batista declara, testemunhando, “Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele” (v.32). A descida do Espírito sobre ele representa sua unção como Messias. O simbolismo da pomba que desce e permanece em Jesus tem este significado: Jesus é a morada do Espírito, seu lugar natural e querido.
O testemunho de João é mais profundo ainda. O Espírito de Deus “permanece” sobre Jesus. Ou seja, não se trata de um dom passageiro. O verbo permanecer (gr. μένω/mêno) é outro termo forte do vocabulário do Quarto Evangelho, porque ele abre espaço para o tema da habitação de Deus em Jesus, e, como consequência, a Sua “in-habitação” – mediante o Espírito – em cada pessoa humana, que se abre ao dom de Deus. Jesus, na condição de cordeiro, carrega o pecado para fora do mundo, para depois poder levar consigo toda pessoa à condição de filho de Deus.
A intenção do evangelista, ao colocar este testemunho nos lábios de João, o Batista é a de ensinar à sua comunidade às gerações futuras que não são mais os ritos do sistema da antiga lei capazes de levar o homem à uma experiencia autêntica com Deus, mas, agora, a vida de Jesus de Nazaré, que através de sua existência e práxis histórica, libertadora e salvífica religa a humanidade com o projeto de Deus.
Que Jesus temos testemunhado? Corresponde,
Ele, com o mesmo testemunho de João? Ou temos testemunhado um Jesus dissonante
do Evangelho e da fé das primeiras comunidades? Minha vida tem sido o lugar por
sobre o qual o Espírito de Deus e de Jesus paira e permanece, assim como
aconteceu com o Senhor? Tenho permitido com que ele carregue para fora de mim
tudo aquilo que pode ser obstáculo para que o amor e o querer de Deus em mim
tenha espaço? Tenho cooperado com Ele na missão de retirar o pecado da realidade e da história humana, das
relações?
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré /Arquidiocese de Botucatu-SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário