A Igreja celebra a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. Com esta celebração, encerra-se o ciclo litúrgico C, dedicado à leitura e meditação da catequese evangélica de Lucas. Por isso, nos é apresentada para a meditação eclesial o texto do “proprium” lucano das narrativas acerca da Paixão e Morte de Jesus segundo Lucas. Nesta solenidade, a sabedoria eclesial selecionou textos extraídos das narrativas da Paixão do Senhor, os quais revelam a realeza de Jesus às avessas.
A pergunta que possivelmente poderia pairar seria, “como é possível um celebrar a realeza de uma pessoa a partir do fracasso?”, ou “Por que não mostrar a realeza de Jesus com outros textos que falam do seu retorno glorioso, ao invés destes textos que o mostram crucificado?” É bem verdade que a leitura do ciclo litúrgico A, apresenta para esta solenidade o discurso escatológico de Mt 25, através do qual o evangelista pretende mostrar como será o reinado definitivo de Deus. Os outros dois anos litúrgicos poderiam se servir de textos menos trágicos, mas optam por apresentar as narrativas concernentes à morte de Jesus na cruz, isto é, correspondem às horas finais de sua vida. Há um motivo, evidentemente.
A intenção de Lucas é a de mostrar que tipo de reinado Deus exerce em seu Cristo, e, consequentemente que rei seria Ele. Em sua narrativa da paixão-morte de Jesus, o evangelista recupera os temas que foram percorrendo e costurando sua catequese evangélica desde o início: a salvação universal, que abraça a todos, indistintamente, a qual é proclamada, a começar por Jerusalém, chegando aos confins da terra; a inclusão dos pobres e pecadores, excluídos e marginalizados; os temas da misericórdia e da graça de Deus, dos quais Jesus se torna rosto e voz da parte do Pai. Assim como as narrativas da infância anteciparam os temas da misericórdia, da salvação universal, da inclusão dos pobres no projeto do Reino de Deus, as narrativas da paixão/morte ao apresentarem novamente estas temáticas no decurso deste bloco literário, as encerram, levando-as à plenitude, formando como que uma grande moldura que sustenta a pintura em tela do quadro do evangelho de Lucas. Isso posto, podemos meditar o texto de Lc 23,35-43.
O texto litúrgico começa a partir do v.35, situando-nos no contexto imediato, isto é, o calvário e a crucifixão. Os julgamentos diante do sinédrio (processo judaico) e o inquérito diante da autoridade romana, o procurador Pôncio Pilatos, se encarregaram de levar Jesus para ser torturado e sentenciado à pena de morte dos prisioneiros políticos, arruaceiros, subversores e revolucionários; aqueles que pudessem representar algum perigo para o Império, a crucifixão. Aos pés da cruz encontram-se os chefes religioso do povo, os soldados responsáveis pela manutenção da ordem de execução, e outras duas companhias, os malfeitores, crucificados juntos com Jesus. É importante ler os versículos seguintes em unidade.
“os chefes zombavam de Jesus dizendo: A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido! Os soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, e diziam: Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo! Acima dele havia um letreiro: Este é o Rei dos Judeus. Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!” (v.v35-39).
Os insultos que Jesus que recebe na cruz são um eco das tentações sofridas no deserto, no início de seu ministério. Por isso, estes insultos só podem ser entendidos a partir de Lc 4,1-13. As tentações foram seduções oferecidas pelo Diabo, com o propósito de fazer com que Jesus se desviasse do projeto do Pai, lhe fosse infiel, e usasse seu messianismo para benefício próprio; elas tinham a intenção de causar a divisão, a cisão, a ruptura entre Jesus e o Pai. O caminho mais fácil; a lógica do ser e do ter, do domínio, da submissão e do prestígio. Quando o tentador percebe que nada afastará Jesus da fidelidade ao Pai, em 4,13, o autor narra: “Tendo acabado toda a tentação, o diabo o deixou até o tempo oportuno”.
Lucas coloca o calvário e a cruz como o tempo oportuno para a última tentação de Cristo. Nesse sentido, os chefes religiosos, os soldados e o malfeitor com suas zombarias e troças, personificam a figura do tentador, nos momentos finais da vida de Jesus. Assim, a Sua última tentação se dá no calvário e na cruz. Os insultos, são, na verdade, a tentação para que o Senhor se sirva de um messianismo fácil, sedutor, poderoso, espetacular; diametralmente oposto ao caminho do Messias encarnado por ele enquanto justo (Sl 22; 33; 69) e servo sofredor (Is 49 – 55). Diante da tentação de salva-se a si mesmo, Jesus oferece-se ao Pai, não respondendo através do caminho mais fácil. Torna-se, pois, rei de si mesmo e de suas vontades. De fato, é Jesus os justo fiel e servo sofredor, que escolhe o caminho da doação da própria vida, ainda que lhe venha a custar caro, até o sangue!
No meio daquele vozerio, alguém fala com consciência: um malfeitor, que provavelmente, para estar ali, deveria ter cometido um delito muito sério, que lhe custava também a vida. Ao censurar a fala do outro bandido, reconhece em Jesus o Justo, aquele que realizou durante toda a sua vida a vontade e o querer de Deus; que, ali, naquele injusto sofrimento, padece com confiança total na silenciosa presença de Deus. O Justo, na sagrada escritura é aquela pessoa que cumpre o querer de Deus; que padece sofrimentos por conta de sua fidelidade, e, mesmo assim, ainda permanece fiel à Deus. Assim é reconhecido Jesus pelo malfeitor: “Mas o outro o repreendeu, dizendo: Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal. E acrescentou: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado” (v.v. 40-42).
Jesus lhe responde com a absoluta certeza de quem confia plenamente no Deus do Reino que ele anunciou durante toda a sua vida: “Jesus lhe respondeu: Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (v.43). Só neste versículo, dois temas se entrelaçam, se correspondem e se tornam plenos: a salvação universal que Deus oferece indistintamente. O reinado de Deus em Jesus é este: o agir amoroso e misericordioso de Deus através de Jesus, sempre inclusivo e acolhedor, humanizador e gerador de novas e plenas possibilidades de vida; e, nunca poderá ser aquele outro da exclusão, da indiferença, da violência, da divisão, da lógica do “salve-se quem puder”, ou do “bandido bom é bandido morto”. Igualmente importante é o tema do Hoje salvífico de Deus: esta salvação, dom e graça, oferecida a todos, sem distinções, acontece sempre no hoje da história pessoal do indivíduo. Por isso, a vida de todo aquele se abre para acolher a vida e a história de Jesus de Nazaré, do Reino anunciado por Ele, transforma-se num encontro salvífico constante com o Deus e Pai de Jesus.
Assim é o reinado de Deus em Jesus: amor,
misericórdia, salvação universal, acolhimento. Assim é Jesus Rei, que,
paradoxalmente, não reina de um trono ou de um palácio, envolvido pelas
ideologias imperiais e monárquicas; não reina a partir do poder, do prestígio,
da fama, da glória e da vaidade; reina desde a cruz, a expressão máxima da
doação da própria vida, expressão de que o seu reinado, seu agir em nome do
Deus que chama de Pai, foge dos esquemas e da lógica mundana. O discípulo que quiser
tomar parte deste reinado deverá estar disposto a assimilar e assumir esta
mesma lógica e dinâmica de vida de Jesus.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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