sábado, 2 de abril de 2022

REFLEXÃO PARA O V DOMINIGO DA QUARESMA - Jo 8,1-11:

 


O evangelho proposto para o quinto domingo da quaresma é retirado do Quarto Evangelho, Jo 8,1-11, conhecido como episódio da “mulher adúltera”. O texto é rico de significado. Ele é uma página de misericórdia. E, pode-se dizer, uma cena de ressurreição. Mesmo tendo sido rejeitado nos primeiros tempos das comunidades cristãs. E, por isso, se faz necessário contextualiza-lo a fim de o compreender mais e melhor. A primeira e mais urgente desmitificação acerca do texto se dá em relação à protagonista, a mulher adúltera. Ela foi identificada equivocadamente com Maria de Magdala (Madalena), fato que não tem fundamento algum. A mulher não é, em hipótese alguma, Madalena. A personagem da mulher deve ser mantida anônima. As personagens que não recebem nome nas narrativas funcionam como um expediente do autor. Estas se tornam um convite ao leitor-ouvinte do texto para que ele se identifique com a personagem em questão.

Uma segunda e importante constatação a nível de contexto é a seguinte: o texto em questão foi, até o século IV, recusado pelas comunidades cristãs. Motivo: a temática do perdão para um pecado que era considerado gravíssimo tanto na tradição judaica, como para a tradição cristã, o adultério. O episódio narra Jesus perdoando a personagem adúltera. E, muito provavelmente, em decorrência da institucionalização do cristianismo, e pelo fato de suas lideranças serem masculinas, reproduzindo o ambiente machista e patriarcal da sociedade naquele contexto, a narrativa da mulher adúltera foi um texto que circulou avulsamente pelas comunidades cristãs. Quando os escritos já se encontravam consolidados, era prática comum que as comunidades fizessem um intercâmbio entre si dos textos, para um enriquecimento continuo da fé. Seguramente, este episódio pertence à Lucas e não à João. Pois ele narra a ação misericordiosa de Jesus diante de uma mulher, ou seja, dois temas pertencentes à catequese lucana: a misericórdia e a presença e atuação das mulheres; bem como o vocabulário próprio que o texto de Lucas possui. Ora, o tema da misericórdia já foi ilustrado de modo realista através da parábola do Pai misericordioso (Lc 15). Mas onde, precisamente, este texto se encaixa ao interno do evangelho segundo Lucas? Muito seguramente no capítulo vinte e um, após Lc 21,37-38, onde se diz que, “Durante o dia ele ensinava no templo, mas à noite saía e pernoitava no chamado monte das Oliveiras. De manhã cedo, todo o povo ia até ele, no templo, para ouvi-lo”. Porém, como nos foi transmitido no Evangelho de João, é a partir dele que devemos meditá-lo.

Os dois primeiros versículos nos situam na cena: “Jesus foi para o monte das Oliveiras. De madrugada, voltou de novo ao Templo. Todo o povo se reuniu em volta dele. Sentando-se, começou a ensiná-los” (v.1-2). De acordo com a cronologia joanina, Jesus se encontra em Jerusalém em virtude da festa das tendas. Uma festa importante para a fé judaica. Ela era alimentada com a expectativa da revelação do Messias na ocasião desta festa de grande peregrinação do povo até a cidade santa. Dai, o motivo de Jesus estar no monte das oliveiras. O local era usado pelos peregrinos que não encontravam hospedagem na cidade. Se, como dissemos acima, meditamos o texto a partir da ótica joanina, a informação temporal é importante: de madrugada. Ela funciona muito mais do que um dado cronológico. Antes, teológico. A madrugada é a transição da noite para o dia; a noite no Quarto Evangelho representa as trevas que envolvem o mudo e o discípulo. O dia, simboliza a luz. A madrugada significa a ruptura com as trevas, o surgimento de um novo dia; é um aceno à ressurreição, pois é o momento em que as mulheres descobrirão o sepulcro vazio de Jesus (cf. Lc 24,1). O texto quer acenar para alguma situação de ressurreição que acontecerá no decorrer da narrativa.

Jesus, durante seu ensinamento é bruscamente interrompido pelos escribas e fariseus, que trazem uma mulher, pega em flagrante adultério (cf. v.3). Este grupo era opositor a Jesus. Tratava-se da elite e liderança religiosa do judaísmo. Os peritos na lei (escribas) e os mestres da época (fariseus). Eles entabulam um diálogo com Jesus: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?”  (vv. 4-5). São irônicos; chamam a Jesus de Mestre, mas sem, de fato, reconhece-lo. E, pretendendo dele uma solução para um caso da lei, tentam enredá-lo numa armadilha. O autor do texto usa o termo peirâzo (gr. πειράζω), que significa tentação, provação. E essa atitude está sempre ligada ao inimigo e opositor de Deus. Nesse sentido, as autoridade religiosas do tempo de Jesus estão agindo como colaboradoras do tentador. Agem diabolicamente para tirar de Jesus alguma resposta que o possa desmoralizar e desacreditar. Dependendo da resposta, Ele poderia perder toda a sua credibilidade como pregador e homem da misericórdia de Deus; se ele der uma resposta que contrarie a lei, poderia correr o risco de imediatamente ser preso, pois estava dentro do templo e não poderia ali ensinar doutrinas equivocadas ou contrárias.

Aqui, se faz necessária uma terceira constatação. E essa, ajudará a compreender na totalidade e profundidade o gesto e o ensinamento de Jesus. A dinâmica do casamento e o adultério no costume da época. O casamento judaico acontecia em duas partes. A primeira, a promessa. Durante essa etapa – que durava um ano – o rapaz, com dezoito anos, desposava a menina (isso mesmo, menina) de doze anos, ficando ela prometida em casamento. E durante um ano preparavam-se para a segunda parte do casamento, as núpcias. A festa onde a família da noiva (da menina, agora com treze anos) levava-a para a casa do noivo. Em caso de adultério, o Talmude (livro que contém as interpretações da lei de Moisés) orientava dois procedimentos: 1º) em caso de adultério ocorrido na primeira etapa do casamento, a promissão, o adúltero e adúltera deveriam ser levados diante do tribunal (cf. Dt 22,23-24), com mais duas testemunhas, e serem ambos sentenciados à lapidação, que se realizava da seguinte forma: colocava-se a pessoa deitada num buraco escavado com dois metros de profundidade; em seguida, as duas testemunhas tomariam uma pedra de mais ou menos cinquenta quilos e deixavam cair sobre a pessoa fosso a dentro. Caso ela ainda sobrevivesse, então a plateia lançava sua pedra sobre dentro daquele buraco. 2º) Se o adultério acontecesse após a segunda etapa, a das núpcias, a mulher seria estrangulada.

Por que sublinhar isso? Justamente para quebrar aquela imagem, muitas vezes romantizada pelas tradições populares, de que esta mulher fosse mais velha. Não. Os lideres do povo falam de apedrejamento. E, tal execução, em caso de adultério, só era previsto para a primeira fase. Logo, a personagem é apenas uma menina; uma jovem entre seus doze ou treze anos. E a dúvida que não quer calar: onde está o homem que adulterou com ela? Que, no mínimo, deve tê-la forçado. O fato de somente a mulher ser acusada e exposta revela o machismo enraizado na sociedade e na religião da época. O homem, provavelmente considerado um “bom religioso”, não é mencionado.

Qual a atitude de Jesus, sabedor de tudo isso, frente aos chefes religiosos do povo (peritos da lei)? Com uma refinada ironia, Jesus se inclina e simula escrever no chão do templo. Em primeira análise está indiferente a eles. Mas, na verdade, ele está discernindo que resposta dar. O gesto de escrever no chão remete ao profeta Jeremias, capítulo dezessete, no qual o profeta diz que os pecados de Judá estão gravados na pedra e nas tábuas, porque se esqueceram do Senhor. Jesus, com esse gesto profético, denuncia a dureza do coração deles. Por seu zelo fundamentalista tornaram-se insensíveis e, em nome de uma falsa imagem e concepção acerca de Deus, escancaravam e descarregavam seus ódios e forças de morte contra as pessoas, principalmente os transgressores da lei. Jesus está a dizer que eles se tornaram semelhantes às pedras do chão do templo.

“Como persistiam em interrogá-lo, Jesus ergueu-se e disse: ‘Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra” (v. 7). Jesus não toma lado na discussão. Não problematiza a acusação. Ao dizer para atirar a pedra, ele está jogando na cara dos chefes que eles sabem o que deve ser feito; como devem começar o processo. Jesus devolve para eles a responsabilidade quanto a interpretação daquela lei. É como que se ele dissesse, “comecem vocês mesmos o processo da lapidação”. Porém, com uma condição previa e importantíssima, que constitui a reviravolta que o texto dá: a de examinarem-se antes de tudo, que se traduz pela condição “Quem dentre vós estiver sem pecado...” Jesus os chama, primeiramente, a um exame de consciência, faz a eles um apelo para a mudança daquela mentalidade, em outras palavras, convite à conversão. convida cada um a olhar para si próprio, apelando para o tribunal da consciência. Com essa resposta, Jesus desarticula os acusadores da mulher, os falsos moralistas daquele e de todos os tempos. E acima de tudo, salva uma vida.

Dos vv.8-9, o autor mostra a atitude dos escribas e fariseus. Desconcertados e, com certeza, furiosos, deixam o recinto e a mulher no meio da multidão com Jesus, começando pelos mais velhos, literalmente, os presbíteros (πρεσβύτερος), ou seja, os líderes do sinédrio, órgão máximo da religião judaica. Logo, os mais velhos aqui, não significa a idade, mas a posição social que ocupam, tratam-se dos chefes religiosos do povo.

No local, Jesus e a jovem ficam sozinhos. E, com um tom solene, Ele se levanta e começa o diálogo com a jovem, tratando-a com uma forma de tratamento muito significativa: “Mulher” (v.10). Na sociedade e no tempo de Jesus, isso é um tratamento de honra para com a mulher. Ao passo que as autoridades do povo se dirigiram a ela diante dele com total desprezo (Pegamos essa mulher). Ao contrário, o Senhor devolve-lhe a dignidade; refaz-lhe a vida, ressuscita a sua dignidade e sua feminilidade. Pela primeira vez ela tem voz, e responde que ninguém a havia condenado.

Então, o relato é coroado pela fala de Jesus: “Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais” (v.11). Como entender este dito de Jesus? Não se trata de uma advertência. Mas de um incentivo diante da vida recuperada e nova que essa jovem readquire a partir da misericórdia que Jesus exerce para com ela. Diante da vida devolvida e recuperada, Ele a encoraja a viver. Diante do fato de ter sido a primeira vez que ela teve voz e teve restabelecido seu horizonte de vida, com certeza ela abraçou esta possibilidade de vida e de conversão.

O texto de hoje, apresenta questões importantes para a nossa vida cotidiana e de fé. Nos coloquemos na cena, imaginemos ser aquelas pessoas que se encontram ao redor de Jesus e presenciam o desenrolar da cena e nos questionemos. Em que Deus nós cremos, no deus legalista, punitivo, vingativo, violento, cobrador? Ou num Deus que, de fato, é amor, misericórdia, doador de vida e refazedor das possibilidades históricas? A imagem transmitida falsamente pelos escribas e fariseus acerca de Deus nos motivam, ou imagem verdadeira de Deus, que Jesus apresenta? A forma e o modo como cremos e nos relacionamos com Deus determinam nossa forma e modo de relação com o irmão. Com Jesus, devemos estar dispostos a recuperar a vida dos irmãos e encoraja-los a viver esta vida ressuscitada; ao invés de lançar a pedra para derrubar, estender a mão para levantar e ressuscitar.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP

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