Nesta noite santa a Igreja celebra o ápice e o centro de sua fé: o memorial da Páscoa do Senhor, de sua ressurreição dentre os mortos e de sua vitória sobre o pecado que afastava a humanidade de Deus. Nesta noite fazemos, ainda, a memória de nossa passagem pelas águas da morte-vida, que nos deram vida nova. É uma festa batismal. Para saborearmos o mistério, a liturgia nos propõe o texto do evangelho de segundo Lucas (Lc 24,1-12), o último capítulo do terceiro evangelho. Por isso, se faz necessário compreender o contexto e as motivações do evangelista ao escrever este relato pascal, cuja a primeira seção (ou primeira parte) somos convidados a meditar.
O último capítulo do evangelho de Lucas, que fala da ressurreição de Jesus, não é só a conclusão de sua trajetória histórica, mas a meta última de sua caminhada idealizada, o cumprimento de todas as promessas e expectativas de salvação. O autor situa os eventos pascais em Jerusalém. Para ele, a cidade tem um papel importante em sua redação. Ela, representante simbólica da antiga história da salvação, é a meta não só geográfica, mas teológica da caminhada de Jesus: em Jerusalém se revela a grande ação salvadora de Deus, a morte e a ressurreição do messias; aqui Jesus, como o “vivente” e glorificado, encontra-se com os seus discípulos para enviá-los a todos os povos. Nesse sentido, os relatos pascais são, acima de tudo, narrativas dos encontros entre os discípulos e Jesus Ressuscitado. Não pretendem narrar aparições, porque o Ressuscitado não é u fantasma ou “alma penada”, mas homem vivo; pessoa humana com uma vida qualitativamente superior, que se encontra com os seus.
Outra nota importante: Lucas organiza o relato em torno de três episódios: 1) as mulheres que vão ao sepulcro; 2) a passagem dos discípulos de Emaús; e, por fim, 3) o encontro com o grupo dos onze. Acontecem num arco de um só dia, o domingo. O que revela um motivo litúrgico.
Para nós, interessa o primeiro relato (Lc 24,1-12). As mulheres vão até o sepulcro onde havia sido posto o corpo de Jesus. Ao chegarem ao lugar, deparam-se com o sepulcro aberto e vazio (cf. v.1-2). Algo aconteceu ali: a pedra foi retirada do túmulo, e este encontra-se vazio. Mas atenção, a tônica do relato não deve ser colocada sobre o sepulcro vazio. Isso ainda é pouco. Diante do sepulcro vazio não nasce a fé, mas a perplexidade, a desconfiança, o medo, a inquietação e, o mais perigoso, a frustração. O acento ou a tônica do texto devem ser direcionados para o que virá a seguir.
O evangelista nos informa que apareceram dois mensageiros celestes. Eles se colocam ao lado das mulheres e lhes interroga, com uma pergunta em tons de afirmação: “Por que estais procurando entre os mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou!” (v.5-6). O mensageiro celestial, que, na teologia bíblica é personagem simbólica para a ação do próprio Deus, faz uma revelação. Em outras palavras, O Pai mesmo se encarrega da revelação. Ora, se faz necessário acolher uma revelação do alto para que nasça a Fé, e olhar para o alto, deixando de contemplar passivamente um sepulcro vazio. É urgente elevar o olhar e deixar de olhar para chão. Devem se colocar atentas ao anúncio de uma Palavra de novidade que Deus as dirige. Escutar o anúncio da Palavra da ressurreição, ali, nas proximidades do túmulo.
A pergunta-revelação traz um conteúdo fundamental: Jesus está vivo. O texto grego nos ajuda a perceber esta afirmação. Ele soa mais ou menos assim: “por que procurais um vivo (vivente) entre os mortos?”. Um vivente. Ora, o evangelista usa de uma pergunta porque, evidentemente espera uma resposta. A revelação divina acerca de Jesus exige sempre uma resposta do ser humano. Esta boa-noticia não é uma palavra que se ouve e basta. Pelo contrário, ela exige um acolhimento na vida do discípulo.
Um detalhe importante. A presença de dois mensageiros, na antiguidade e na cultura do povo de Jesus, serve para dar credito (credibilidade) a um testemunho. Este só seria válido e autorizado pela presença de duas ou três pessoas (cf. Dt 19,15). Eles funcionam, pois, como testemunhas autorizadas da ressurreição, dado que o testemunho de mulheres ou menores de idade não eram validos na época. Eles atestam para as mulheres que Jesus é o Vivente. Não significa que Ele retornou à vida, mas que entrou na vida mesma de Deus. A ressurreição não é um ato tão somente, mas um estado, uma condição permanente!
A afirmação de que Jesus é o vivente está carregada da influência do ambiente bíblico, no qual Deus é chamado de “o vivente” (cf. Js 3,10; Jz 8,19). Na Igreja de Lucas, esta denominação é referida a Jesus ressuscitado (cf. At 1,3; 25,19) e é uma maneira de falar da sua ressurreição em termos compreensíveis, principalmente para gente estranha à cultura bíblica.
Se Jesus é o vivente, não tem mais sentido procurá-lo no lugar onde estão os mortos; Ele não está mais no passado, mas vive no presente e é projetado rumo ao futuro como todo aquele que vive. Então, o sepulcro vazio não diz mais nada sobre a nova realidade; é simplesmente um sinal negativo e equivocado quando olhado isoladamente. Só a palavra de Deus, que se tornou a palavra ou a promessa de Jesus, oferece a chave hermenêutica para compreender a nova experiência salvífica. Por isso, Lucas relata as palavras de Jesus que explicam o sentido de sua morte, através da recordação que as personagens celestiais faze: “Lembrai-vos do que ele vos falou, quando ainda estava na Galileia: O Filho do Homem deve ser entregue nas mãos dos pecadores, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia” (v.6b-7).
Recordar para compreender. A aparição dos anjos e sua mensagem não trazem, a rigor, nada de novo ou de inesperado. Mas tem a função de reavivar, ou acordar, a memória do que já existia naquelas mulheres, enquanto ouvintes das palavras de Jesus. Na perspectiva dos mensageiros celestes elas deverão recordar, fazer memória, para poder compreender. Porque, para abrir-se à ressurreição não basta ver o sepulcro vazio, tampouco bastaria a visão dos anjos: mas fazer memória, o que não é uma simples recordação do passado – e, no caso, os eventos da paixão e morte de Jesus – mas repensar, reler, ressignificar e atualizar (trazer para o momento presente) aquele evento da vida, paixão e morte de Jesus. Ora, é partindo da ressurreição que se poderá lançar luzes e significados para sua vida e morte. Lucas sublinha repetidas vezes que a memória, a capacidade e o dom de reler/ressignificar, é necessária para abrir-se à ressurreição e à sua credibilidade. Sem ela, não se retém os sinais e o sentido da ressurreição.
Em outras palavras, a ressurreição de Jesus não poderá ser compreendida se não for relacionada à toda a Sua trajetória histórica, culminando na morte de cruz. E esta, por sua vez, não tem sentido a não ser no horizonte mais vasto de uma existência histórica de salvação que envolve todos os homens.
A ressurreição de Jesus é a grande afirmação da parte de Deus de que a vida do seu Filho se tornou uma vida salvífica e redentora. Em outras palavras, Sua ressurreição, operada pelo Pai, foi a afirmação, da parte de Deus, à toda a vida (existencialmente vivida) de Jesus de Nazaré (suas atitudes, gestos, palavras, opções). Deus diz uma palavra definitiva sobre a vida de Jesus: ela é indestrutível. Por isso, ele está ressuscitado, em pé (gr. ἠγέρθη / Egherthe).
Dos vv. 8-11 as mulheres retornam para junto do grupo dos discípulos – Lucas nos dá a conhece-las. Elas seguem a ordem dos mensageiros celestiais e passam para a condição de missionárias, anunciadoras daquela boa-notícia. Elas se tornam, a partir de agora, aquelas importantes testemunhas qualificadas que dão fé ao anúncio. O verbo usado por Lucas (gr. ἀπαγγέλλω / aphangello, anunciar) é um verbo missionário, que sempre indica o anúncio de um evento importante e inesperado (os quatro evangelistas fazem uso dele em suas narrativas pascais, Mt 28,8-10; Mc 16,10.13; Lc 24,9 e Jo 20,18).
Mas elas se deparam com a incredulidade do grupo. Para além do que foi dito acerca da credibilidade dos testemunhos das mulheres, a incredulidade dos discípulos para o evangelista é profunda e verdadeira. É um fechamento e endurecimento da parte deles da verdade divina acerca da ressurreição de Jesus e ao convite de fazer memória da vida e obra de Jesus, para poder fazer a experiência da ressurreição. O verbo usado por Lucas, ἀπιστέω (apisteuo), está no imperfeito e sugere uma incredulidade obstinada e contínua. Os onze resistem acreditar e em fazer a memória de Jesus.
Dentre os onze emerge a figura de Pedro. Ele toma a atitude diferente. Ainda que descrita de modo rápido, “levanta-se, corre até o sepulcro, encontra-o aberto, se inclina para olhar para dentro”, ela é importante, porque reforçada pelo verbo ver (gr. βλέπω / blêpo), que se refere a atitude de olhar com atenção. Este espanto e perplexidade são já um passo importante do discípulo. Mas ainda não é a Fé. Pedro percorreu uma lenta caminhada interior, de revisão de suas convicções: da crise e do medo, na negação de Jesus preso e humilhado, à dúvida diante da mensagem das mulheres, à admiração e ao estupor do túmulo vazio, até culminar no encontro com o Senhor que vive.
O relato conclui-se com a constatação da incredulidade: da parte dos discípulos é obstinada e fechada; de Pedro, é abertura e disponibilidade. Mas ainda se faz necessário um encontro e uma experiência pessoal com Jesus Ressuscitado. Todavia, as mulheres são exemplares: delas emerge a certeza e a abertura para fazer a memória da vida, paixão e morte de Jesus, para fazer a experiência da ressurreição. A ressurreição é a vida de Jesus passada a limpo pelo Pai e pelas comunidades dos discípulos de todos os tempos que se propõem a viver a exemplaridade da vida de Jesus em suas vidas, fazendo Dela memória constante. Isso significa viver uma vida ressuscitada.
Feliz e Santa Páscoa do Senhor!
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese
de Botucatu-SP.
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