A narrativa da paixão no evangelho joanino é diferente das contidas nos sinótcos (Mc, Mt e Lc). O evangelista segue um fio narrativo de Mc (o primeiro evangelho escrito), porém distancia-se e muito na forma de narrar e de apresentar a personagem principal da “opera”, por assim dizer. Trata-se de um relato que vai a fundo ao apresentar e revelar a Glória de Deus em Jesus. O catequista bíblico não economiza ao mostrar a realeza de Jesus. Pode-se dizer com toda a segurança que, ao interno da narrativa da paixão em João, e somente nesta seção narrativa, Jesus é mostrado como soberano; é rei. Devido ao fato da extensão do relato joanino da paixão, opto por apresentar esta reflexão a partir das personagens: quem são, o que fazem e quais finalidades possuem ao interno do relato, a fim de transmitir a mensagem salvífica que o texto contém e que o autor quer entregar para a sua comunidade e para as gerações futuras dos discípulos. Contudo, é importante situar o texto ao interno do contexto litúrgico, isto é, na sequência do texto da quinta-feira santa da ceia do Senhor. Ora, somente o discípulo que segue Jesus até à “bacia, o Jarro e à mesa”, poderá tomar parte da hora da glorificação.
Chegou a Hora de Jesus. Durante toda a primeira parte do evangelho joanino – o livro dos sinais – os gestos simbólicos operados por ele possuem a finalidade de revela-lo como enviado do Pai, Aquele que realizará sua obra, como também aprontar o discípulo para a Hora da Glória (seu enaltecimento/elevação). Um esclarecimento importante: a Glória da qual fala o evangelista João não pode ser entendida como um brilho ou algo resplandecente. No vocabulário do evangelista, que é todo proveniente da tradição bíblica do Antigo Testamento, a palavra “glória” (hbr. Kabod) é traduzida por “presença”. Logo, ao se falar da “Glória de Deus” (Ez 10; Ez 43,1-27), está se referindo à presença (ao peso) de Deus. A glória, portanto, da qual o Jesus joanino fala é a realidade da presença de Deus mesmo no dom da Sua vida, existência e obra. Quando se revela a Glória de Jesus? Na Hora da Cruz. Ela revela a que a vida de Jesus é o [novo] lugar/santuário da presença de Deus na história. Agora podemos tomar o texto a partir das personagens.
No Jardim (Jesus e Judas) – Jo 18,1-12:
O evangelista chama a atenção do
discípulo-leitor para Jesus. Na teologia do Quarto Evangelho, João o apresenta
sempre consciente e onisciente. Na ceia (13,4), o havia relatado ciente de que
havia chegado a sua Hora, e de que tudo o Pai havia posto em suas mãos. Não seria diferente na narrativa da paixão.
Ele não é vitimizado pela situação. Não permite que ninguém, exceto o Pai, tenha
a Sua vida nas mãos. É um homem senhor-de-si.
Por isso, não é surpreendido por Judas e pelas pessoas que vieram
prendê-lo. Note-se que Ele mesmo vai ao encontro do traidor (Jo 18, 4). Típica
ironia joanina, o evangelista nos conta que Judas vem equipado com lanternas e
tochas, que são iluminações artificiais. Recordemos que na ceia Judas já havia
feito sua opção pelas trevas à luz que veio no mundo (3, 19). Ao sair do
convívio com Jesus na ceia já era noite fechada (13, 30). O evangelista quer
mostrar que este discípulo fez a opção contrária à luz; cindiu com ela. E
agora, ele é quem precisa de luz artificial. Esta personagem contrasta com
Jesus na medida em decide-se por agir contra o projeto e o querer de Deus que
se realiza através do Filho. Judas é o modelo que o verdadeiro discípulo deve rejeitar,
ou se distanciar na medida em que vai relacionando-se com Jesus.
Anás, Pedro e o discípulo amado - Jo 18,13-27:
O evangelista apresenta três personagens.
Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote em exercício. O segundo personagem é
Pedro. Notemos um contraste operado pelo evangelista entre Pedro e Jesus:
enquanto este está demonstrando sua inocência naquele interrogatório viciado,
seu mais conhecido seguidor está mostrando fraqueza. Pedro, durante a narrativa
da ceia se mostra todo resistente. Esta personagem serve ao discípulo que lê o
Evangelho de João como símbolo daquele que precisa assimilar verdadeiramente o
sentido da vida de Jesus, para poder fazer a sua opção pró-Jesus. Emerge uma
outra personagem, presumivelmente “o discípulo que Jesus amava”. Não há
fundamento em identificá-lo com João, o autor do Quarto Evangelho (o que seria
demasiado simplista). Mas, fato é, ele está à frente de Pedro e contrasta com
ele. Ele é sempre mais rápido ao ver, ao compreender e em acreditar,
precisamente porque fez a experiência com o amor de Jesus, que é uma marca da
verdadeira condição de discípulo
Jesus diante de Pilatos – Jo 18, 28-42:
O evangelista apresenta uma personagem confusa. Um camaleão. Um amedrontado Pilatos. Soma-se a isso a alternância dos cenários externos e internos. Nesse vai-e-vem, Pilatos vai mudando e assimilando as imagens de seus ambientes. Ao interno do palácio ocorre a alternância entre luz (externo) e trevas (interno). Na maneira como João dispõe a narrativa, o inquérito acontece ao interno do palácio, para revelar esta oposição típica de seu evangelho: luz / trevas. A intenção (ainda que através de sua ironia) é revelar Jesus, mesmo solitário e recluso no palácio, como Luz diante de Pilatos, envolvido em dúvidas e trevas.
O diálogo entre eles revela muito, de acordo com o evangelista. Na intenção dele está para começar o processo de Jesus contra o Mundo, representado pelo Império. João disse no prólogo do evangelho que “O mundo não o conheceu (Jesus), e os seus não O acolheram”. Jesus está diante do procurador romano, que o interroga com base naquilo que ouviu. “Tu és o rei dos judeus?” A resposta de Jesus soa desafiadora: “Estas dizendo isso por ti mesmo, ou outros te disseram isso de mim?” Jesus não responde nem que sim, nem que não. Ele deixa que o próprio Pilatos tome sua decisão e tire suas conclusões. Ao insistir na culpabilidade de Jesus, emerge, pois, uma declaração muito importante acerca de Jesus, de sua vida e obra. Ele responde: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui”. O que o Jesus joanino quer dizer com essa reposta?
Se faz necessário tomar o texto dos originais, em grego, para captar o sentido da resposta de Jesus, que se expressa assim: “o meu reino não vem deste mundo ( gr. Ἡ βασιλεία ἡ ἐμὴ οὐκ ἔστιν ἐκ τοῦ κόσμου τούτου / ek tou kosmou tuotou)”. A realeza de Jesus não provém das realidades mundanas, das estruturas de poder, domínio, opressão. Vem do alto. Jesus declara, pois, que sua realeza depende e está estritamente relacionada à Deus. A autoridade que ele exerce, só a faz porque é da vontade do Pai. As palavras “meu reino não é daqui (= deste mundo)”, portanto, não dão margem para sugerir uma fuga do mundo, da realidade, da história humana, nem justificam qualquer tipo de alienação. Pelo contrário, convocam o discípulo a uma lucidez superior. Aderir ao reino de Jesus é aderir à verdade daquele que, em tudo o que faz, é palavra de Deus e que liberta de toda escravidão, e que restaura o mundo, enquanto realidade criada por Deus.
Mas neste diálogo emerge mais uma novidade muito profunda e marcante. Pensemos. Pela lógica do inquérito, Pilatos faz as vezes do juiz que interroga, questiona e apura os fatos para dar cabo de uma sentença. Entretanto, a partir das respostas eloquentes que Jesus dá aponta para uma revelação importante: o juiz não é Pilatos. No inquérito, quem assume a figura do juiz é Jesus, deixando para Pilatos o papel de investigado. Mais uma vez, a finalidade é mostrar Jesus superior a realidade e a trama que o circundam, porque só quem autoridade sobre sua vida é o Pai. E mesmo assim, é através de sua liberdade enquanto homem que Jesus vive sua fidelidade ao projeto de vida plena, em amor até o fim, ao Deus que chama de Abá-Pai. Porque este Abá não exige do seu Filho qualquer sacrifício de sangue, ou mesmo uma morte expiatória.
A morte (19,28-37):
Após um caminho longo, Jesus chega ao lugar da crucifixão. Depois de tomar o vinho azedo, Jesus exclama: “Tudo está consumado” (mesma expressão do v. 28), inclina a cabeça e “entrega o espírito”. Nestes versículos 28-30 ocorre duas vezes o verbo teléo, “consumar/levar ao fim” (vv. 28 e 30). O dito “Tudo está consumado” acena para a realidade de que toda a vida de Jesus, através de suas obras e Palavra refletem a vontade de Deus. Significa, ainda, que a vida e obra de Jesus atingem a Plenitude. Mas também revela a superação dos sistemas antigos dos sacrifícios levítico-cultuais. João faz coincidir a morte de Jesus no calvário com o exato momento em que se imolavam os cordeiros no templo, por ocasião da festa da pascoa. Jesus supera, com o dom de sua vida em amor, os antigos sacrifícios e se torna, pois, o único mediador entre a humanidade e Deus. Não são mais a observância da Lei, nem das prescrições cultuais os meios necessários para se ter acesso a Deus, mas a humanidade, a vida e a obra de Jesus. Esta vida, Ele a entrega nas mãos do Pai.
O “entregar o espírito” (a existência) acena para aquela onisciência e senhorio de Jesus, de que se falou a pouco. O verbo grego paradidomai (entregar/doar) percorre toda a narrativa da paixão, mas aqui ele revela e, ao mesmo tempo, afirma o domínio de Jesus diante da situação: quem entrega sua vida é ele mesmo, sabendo que tem o poder de retomá-la novamente. Ele livremente a doa, para que o Pai reconheça esta mesma vida como salvífica e redentora, dizendo a última palavra sobre a vida deste seu Filho.
A morte de Jesus, de maneira tão crua, só pode ser entendida à luz de sua vida vivida, através de seu ministério. Ela é a consequência e o resultado da vida, das opções, decisões, vividas à luz do amor fiel ao Pai e aos irmãos, mesmo em face às hostilidades dos chefes do povo. Isso não é fazer uma leitura política da vida de Jesus. Sua vida era conflituosa pelas questões que provocava e pelos interesses que abalava. Isto vê-se no seu modo de viver, na sua práxis escandalosa, não facilmente aceita, principalmente no tocante a Sua opção pelos últimos. Nesse sentido, a pregação de Jesus foi uma inversão de valores. Rompeu com os esquemas estabelecidos. Assim, a condenação de Jesus é uma rejeição a sua pessoa e a tudo o que Ele faz durante sua vida.
O relato de hoje nos deixa diante de duas perguntas: 1) Com quais personagens me identifico? 2) Como tenho vivido minha existência cristã e meu discipulado? A chave e o modo para viver o discipulado é a forma da Paixão. Não existe discipulado que não seja perpassado pela Cruz. Mas Ela não será a última palavra.
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu (Avaré-SP) /
Arquidiocese de Botucatu - SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário