A Igreja celebra neste final de semana a
Solenidade da Assunção de Maria, Mãe do Senhor, aos céus. Um dogma de fé
relacionado, numa primeira análise à pessoa de Maria. Todavia, ao lançarmos um
olhar para o fundamento do dogma – da verdade de fé proclamada e celebrada,
acima de tudo – os dogmas marianos estão radicalmente ligados e fundamentados
na fé cristológica. Dito de outra maneira, só se pode dizer alguma coisa a
respeito de Maria, porque, antes, e, primeiramente, foi dito sobre a pessoa de
Jesus. Aqui urge corrigir a expressão cunhada pela mariologia antiga, “Sobre
Maria nunca se poderá falar suficientemente (De Maria Nunquam Satis)”. Ao
contrário, só se pode dizer algo de suficiente sobre ela porque algo foi
afirmado primeiro e suficientemente acerca de Jesus. O dogma mariano da
assunção reafirma a índole escatológica da Igreja peregrina, da qual Maria é
imagem – ícone. Ou seja, ao declarar e professar que Maria foi acolhida na
Glória de Deus, a Igreja confessa sua fé na ressurreição. A fé na eternidade
junto de Deus
A proclamação de fé acerca da assunção de Maria aos céus reafirma e reflete o futuro e fim escatológico que está reservado para todo o crente: a vida definitiva e plena em Deus. Dizer que Maria foi assunta aos céus significa dizer que sua vida e história foram assumidas por Deus, em seu projeto salvador e redentor. Mas só é possível dizer que Deus assumiu a vida inteira de Maria porque ela assumiu viver segundo o projeto de Deus, enquanto verdadeira discípula do Reino. Ela participa daqueles que, conforme linguagem paulina (1Cor 15,20-27), pertencem a Cristo. Por isso, para a meditação desta Solenidade propomos o texto da segunda leitura, o texto extraído da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios, justamente por esse escrito tão precioso tratar na sua essência da vida da comunidade cristã, chamada a ser corpo histórico e real do Senhor. Uma vez que Maria assumida (assunta) pela glória da Trindade é ícone/imagem final da Igreja de Cristo (typus ecclesiae).
Como princípio e regra de uma interpretação coerente e saudável do texto bíblico, sempre se é oportuno contextualizá-lo. Em se tratando de uma carta, o que ainda não fizemos neste espaço, situar o escrito paulino que a liturgia propõe tomará um pouco da atenção. Assim, tentaremos em forma de síntese reter o que mais é importante: data da redação, lugar (ambiente vital) da comunidade de Corinto e tema da carta (os quais refletem os problemas da comunidade) que o apóstolo trabalhará. Cronologicamente, as duas Cartas aos Corintios foram redigidas entre 52 e 53 d.C, em Éfeso. O apóstolo Paulo está ali fundando e cuidando daquela comunidade quando recebe informações da família de Cloé, muito amiga dele, acerca das condutas equivocadas que a comunidade vem nutrindo ao seu interno, as divisões e comportamentos contrários ao Evangelho que ele pregou para eles. As cartas serão, portanto, bilhetes intencionais que Paulo enviará de modo a preparar a sua visita. Elas tratarão de colocar as coisas em seus devidos lugares.
Corinto era uma comunidade difícil para Paulo. Ela foi uma das mais belas cidades gregas da Antiguidade Clássica, tendo sido autônoma e soberana durante o Período Arcaico da história da Grécia. Experimentara um notável desenvolvimento comercial devido à sua localização. Possuía dois importantes portos que movimentavam sua economia: um ficava no golfo de Corinto, outro se localizava ao sul, no mar Egeu. Havia ali dois grandes templos: um dedicado a Afrodite (deusa do amor), e outro a Apolo (deus da música, canto, poesia e da beleza masculina). A comunidade de Corinto, fundada por Paulo, era composta por Judeus cristãos e gentios. Dentro do grupo dos judeus-cristãos, encontram-se os que viviam segundo a orientação de Paulo (conformes ao Evangelho de Cristo), outros, segundo Cefas-Pedro (considerados judaizantes; um pé em Cristo e outro na lei judáica), e os gentios (oriundos do paganismo), que identificavam-se mais com a pessoa do pregador Apolo (eram cristãos entusiastas e carismáticos). O tema/eixo da Primeira Carta é o da unidade da comunidade cristã. Pode-se dizer que este escrito possui uma preocupação eclesial: todas as vezes em que a unidade e a comunhão da comunidade estiver ou for ameaçada, se poderá gerar feridas no Corpo de Cristo. A Primeira Corintios é um escrito cujo tema central é a Igreja.
A liturgia nos propõe o penúltimo capítulo da carta – mas não menos importante – para a meditação nesta solenidade mariana, 1Cor 15,20-22. Oportunamente ele apresenta a última indagação que Paulo trata de responder à sua comunidade. O tema da ressurreição dos mortos. Ora, se o apóstolo toca neste tema é porque a comunidade, de alguma forma, apresenta dificuldades e questionamentos, ou noções equivocadas que precisam ser corrigidas. É importante compreender que este problema constitui o núcleo fundador da fé cristã.
Nos primeiros anos das comunidades cristãs, a primeira geração dos discípulos esperava a manifestação definitiva de Jesus, a sua segunda vinda (gr. Parusia; retorno/vinda encontro). Pensavam que o retorno do Senhor estava próximo (parusia iminente), o que gerava um comportamento rigorista, com a ruptura da realidade. Acontece, que, na medida em que esta vinda demorava e as perseguições e dificuldades aumentavam na vivência da fé, crescia também o desânimo, com a postura do acomodar-se diante da vivência do Evangelho (Parusia adiada). Rigorismos e laxismo eram duas atitudes diante da expectativa da vinda do Senhor. Este cenário atingiu igualmente as comunidades fundadas pelo Apóstolo. Só que em Corinto a situação agravou-se muito. Os membros da comunidade apresentavam distorções e visões equivocadas acerca da fé na Ressurreição.
Influenciados pelo ambiente que os cercava, as religiões mistéricas (gregas, pagãs), pela corrente filosófica do gnosticismo, que ensinava que a libertação da alma estaria na aquisição do conhecimento, e que, portanto, o homem estaria livre da perturbação quando buscava o conhecimento, os cristãos de Corinto pensavam que uma vez alcançado o conhecimento acerca de Cristo, e tendo passado pelo Batismo, já teriam alcançado a ressurreição, e não haveria mais nada a fazer, a não ser, cruzar os braços. Com isso, desconectavam da realidade, preocupando-se somente com o presente, e esquecendo-se de projetar a vida para o futuro de Deus. Com isso, eliminavam do horizonte de visão a virtude da esperança. Para o pregador das nações, ela é a meta do cristão, discípulo e discípula do Senhor, porque a esperança é a concretização do encontro com Jesus. Ao se preocupar somente com o presente, esqueciam-se de preparar-se para o encontro com o Cristo, que virá novamente. Paulo fará uma séria advertência a este comportamento através do capítulo quinze (ver também 1Cor 7, o tema da ética do discipulado em face da segunda vinda, que para o Apóstolo aconteceria num horizonte próximo). Agora podemos meditar o texto, tendo oferecido a contextualização.
“Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (v.20), afirma Paulo. Não é qualquer coisa que ele diz. O apóstolo toca no cerne da fé cristã: a ressurreição do Senhor. Este é o núcleo e evento fundador da vida e da fé da comunidade. É o polo orientador da vida e da fé do discípulo e da comunidade. Trata-se de uma chamada de atenção, no intuito de transmitir um ensinamento importante: para ele, Cristo Jesus é o Primeiro dentre os que já morreram a ressuscitar. Paulo utiliza e aplica o termo “primícia” ao Senhor. Este termo recorda os primeiros dons (frutos, sementes, animais) que a tradição judaica oferecia em sacrifícios à Deus, no templo. Eles deveriam ser puros e perfeitos; ou seja, deveriam ser o melhor exemplar. O modelo perfeito de tudo o que se ofertava. A melhor oferta a ser apresentada.
Paulo pretende ensinar a comunidade de Corinto que Cristo Jesus é a primícia, o primeiro e perfeito dom que o Pai oferece para que se ter a vida divina. Jesus Ressuscitado é o homem perfeito e pleno que doa da Sua vida para que o homem possa participar de sua vida. No Senhor, a Trindade revela o modelo do ser humano redimido, e, portanto, assumidos por Ela: uma humanidade assunta!
“Com efeito, por um homem veio a morte e é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos. Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão (v.21-22)”. Paulo faz uso do gênero retórico demonstrativo, por meio do qual se utiliza a comparação (Sincresi) entre personagens como ocorre neste versículo (cf. também em Rm 5: Cristo x Adão; Fl 2,6-11). A comparação que o apóstolo faz não é para mostrar a igualdade, mas a superioridade de Cristo Jesus, homem pleno, em relação à Adão. O ser humano, para Paulo, não morre mais por causa de Adão. Mas morre para o sentido da vida de Adão na morte de Cristo, e ressuscita/revive na ressurreição do Senhor.
Paulo é muito didático, e, para não deixar dúvidas na comunidade estabelece uma ordem dos acontecimentos. Atenção! O apóstolo não está descrevendo o acontecimento como se ele tivesse tido uma visão ou revelação de como acontecerá, mas colocando em ordem as coisas: “Porém, cada qual segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda” (v.23). O apóstolo não tem interesse ou preocupação acerca de quando ou o quê, mas com o “como”, isto é, com a forma: a ressurreição é pertencer à Cristo. Por isso, não há com quê e porquê se preocupar ou descuidar, pois a segunda vinda só acontecerá quando todos pertencerem a Cristo. Enquanto isso não acontecer, o discípulo e a comunidade terão a tarefa e a missão de continuar a obra do Senhor, até que ele venha. Certo é o evento, ou seja, ele retornará; incerto é o quando, o tempo. Por isso, ao discípulo e a discípula caberá viver a vida do Senhor, isto é, “pertencer a Cristo”. Até que o último inimigo esteja sob os pés, a morte. Mas se pode pensar em todas as realidades geradoras e portadoras de morte. O discípulo está implicado, ao pertencer a Cristo, a colaborar com Ele a colocar toda a realidade contrária ao querer de Deus sob os pés do Filho. Por isso, o discípulo não pode se acomodar, esmorecer ou desanimais diante da “demora” de Jesus, mas empenhar a vida pelo Evangelho, de modo a pertencer a Ele.
O apóstolo quer ensinar para os cristãos de sua comunidade, e para os de todos os tempos e lugares que quem morreu unido à Jesus não está morto. Mas vive num estado glorificado do grande corpo eclesial do Senhor. Assim, no Corpo de Cristo não existem mortos, estando todos vivos. Cada um, participando de uma dimensão deste corpo eclesial. Nele não existe distinção entre mortos e vivos. Nele não existe morte! Morto está quem se apartou de Jesus e de Seu Corpo. Aquele que não quis pertencer a Cristo.
Neste preciso sentido é que Maria ocupa o lugar do pertencimento a Cristo, e, portanto, assumida pelo Pai e pelo Filho. Assim, ela se torna modelo para todos os que desejarem ser discípulo e discípulas, pois desde o sim dado procurou assumir para si o querer gerador de vida de Deus, partilhando esta vida com os outros através da vida doada ao serviço aos irmãos (como o evangelho dominical narra, em Lc 1,39-56) e sendo firme e perseverante na fé, como a mulher do Apocalipse (imagem da Igreja, Apo 12,1.3-6a.10ab) perseguida pelas forças contrárias do Anti-Reino (o dragão, metáfora para o Império Romano).
Mulher da escuta da Palavra de Deus, que se coloca na missão aos mais necessitados, sem perder a esperança, a meta, que é Cristo. Neste sentido, Maria pertence a Cristo, e, portanto assumida por ele e pelo Pai na vida ressuscitada. Modelo para todo aquele e aquela que deseja ser discípulo de Jesus.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu - SP.
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