A liturgia propõe para meditação eclesial deste
domingo a cena da manifestação de Jesus caminhando sobre as águas do mar de Tiberiades,
após o gesto da condivisão dos pães e peixes versículos antes (Mt 14,13-21). Este
capítulo catorze do evangelho mateano encontra-se inserido no bloco narrativo (14
– 17) que sucede o discurso em parábolas (Mt 13). No capítulo treze, o Senhor
ilustrou o acontecimento do Reino dos Céus através de sete parábolas. Na
sequência, o evangelista mostrará como a comunidade do Reino vai se formando
progressivamente através do aprofundamento da Fé, por meio do seguimento à
Jesus, em seus contínuos deslocamentos. Os discípulos serão desafiados a compreender,
na concretude da vida, o ensinamento em parábolas dado pelo Cristo. Ao mesmo
tempo, esta seção narrativa terá a função de preparar o próximo discurso-catequese,
o discurso comunitário, em Mt 18.
Temas como a “compreensão” expressados pelo verbo compreender aparecerão nove vezes. As expressões “pessoas de pouca fé (gr. Oligópistos)”, “fé pequena (gr. oligopistía)”, “falta de fé (gr. apistía)”, “incrédulo (gr. ápistos)”, “grande fé (gr. megále pístis)” e confissões de fé aparecerão nesta seção relacionadas às posturas dos discípulos e da comunidade. Assim, este bloco narrativo mostrará o grande esforço do evangelista Mateus de ajudar a sua comunidade a vencer a crise de fé que a rodeia em face ao programa de vida do Senhor e do projeto do Reino. Este anúncio e o modo de vida vinculado a ele colocará o discípulo e a comunidade (de todos os tempos e lugares) em crise, ou, se preferir, “no mar tempestuoso” da história e da realidade.
Uma advertência assaz importante: o relato proposto pela liturgia de hoje não se trata de uma crônica dos fatos acontecidos, mas de uma catequese. Por se tratar de um gênero como este, a sua linguagem e atmosfera estão repletos de elementos simbólicos retirados do patrimônio religioso da tradição do povo de Israel. Nisto, Mateus se mostra um hábil redator. A preocupação do leitor/ouvinte do texto não deve ser se o fato aconteceu tal e qual o evangelista narra, mas qual a mensagem o texto evangélico tem a intenção de apresentar. Isso posto, se pode tomar o texto e meditá-lo.
O texto litúrgico começa situando o leitor/ouvinte na sucessão dos fatos, “Depois da multiplicação dos pães...” No original não aparece este dado; trata-se de uma contextualização que o liturgista faz. O v.22 apenas informa que “[Depois disso] Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despediria as multidões”. Se faz necessário contextualizar: esta cena ocorre após a multiplicação dos pães, e este gesto de Jesus provoca crise nos discípulos. O mestre compartilha entre o grupo dos doze o que possuem e os impele a fazer o mesmo, sem fazer distinção de pessoas. É para todos o pão que o Senhor oferece. Isso causa no grupo incompreensão e resistência. Eles não aceitam que a Boa Nova (o pão) que Jesus traz e reparte seja para todos. Por isso, que na sequencia da narrativa o Mestre ordena/manda/obriga com que os discípulos entrem na barca.
Atenção à forma como Mateus relata a atitude de Jesus. Ele “mandou”. Literalmente, obrigou que os discípulos entrasse na barca. O verbo “anangkadzo (gr. ἀναγκάζω)” expressa com profundidade o sentido de “obrigar”. Se o discípulo quer ser verdadeiro seguidor e companheiro de Jesus ele precisa obedecer à Sua palavra.
Mas por que os discípulos são obrigados? Aqui aparece a profundidade da crise: o Senhor os manda para a outra margem. No evangelho de Mateus, quando Jesus diz para que se dirijam para a outra margem do mar de Tiberíades, é porque ele pretende ir ao território da Galiléia, e isso os incomoda e desestabiliza, pois lá é terra de gente odiada; lugar dos pagãos; dos excluídos da benção de Deus, conforme pensavam os judeus piedosos de Jerusalém. Na cabeça dos discípulos, a salvação e a benção de Deus pertenciam somente ao povo fiel de Israel. Mas na atuação de Jesus a salvação é para todos, inclusive os que estão na outra margem.
Neste ponto, o evangelista começa a utilizar os elementos simbólicos, que exigirão do leitor/ouvinte atenção. O narrador informa que Jesus fica sozinho. Sem os discípulos; sem a multidão, “Depois de despedi-las, Jesus subiu ao monte, para orar a sós. A noite chegou, e Jesus continuava ali, sozinho (v.23)”. A montanha uma vez mais aparece como oportunidade de se fazer experiência com Deus. Mateus quer recordar à comunidade a montanha do Sinai/Horeb, onde Deus se manifesta à Moisés; também faz eco àquela montanha das bem-aventuranças. O Senhor é mostrado em oração, sozinho, durante a noite. A oração do Mestre é necessária para que ele possa discernir o querer do Pai. Somente nestes espaços de solidão e oração é que Ele pode sintonizar sua vida e obra à vontade de Deus. Interessante notar que após as orações pessoais, Jesus realiza algo. Para mostrar, que aquilo que ele fez, foi antes partilhado, discernido e sentido junto com o Pai. Mensagem importante que esta cena quer apresentar é a de que todas as coisas que o discípulo realizar, primeiramente devem ser rezadas diante do Pai e de Jesus, para que, através deste momento que a oração proporciona, se possa discernir se corresponde ao querer e ao projeto de Deus.
No v.24, o foco da cena é deslocado para os discípulos, na noite escura, dentro da barca, que é agitada pelas ondas do mar. Três elementos que merecem a atenção e compreensão do leitor/ouvinte: 1) a barca, ela simboliza a comunidade cristã; 2) a noite indica a escuridão/trevas, que revela o estado de ânimo dos discípulos, isto é, a incompreensão, a resistência e oposição que os discípulos alimentam diante do projeto de Jesus; 3) o mar, que na tradição bíblica simboliza o caos, a desordem, e as forças contrárias à Deus; a realidade desta história que, muitas vezes se opõe ao Reino de Deus.
Ora, Mateus relata a situação da sua comunidade através desta imagem do grupo dos doze na barca. A missão de anunciar o Reino, o projeto de Deus, destina-se à todos; a comunidade dos discípulos simbolizada pela barca, deve ter consciência disto; ela acontece nesta realidade histórica e concreta (o mar) que muitas vezes faz oposição e rejeita a Boa Nova. Deve se crescer na consciência de que as perseguições, oposições, rejeições, simbolizadas pelo vento contrário, estão no caminho da missão. Enquanto o discípulo alimentar a incompreensão e a resistência ao projeto de Jesus (alimentar noite e vento contrário), ele só deixará crescer em si e ao seu redor, o medo e a resistência. Este é o pior vento contrário que atinge a barca: a resistência, a oposição e a incompreensão para com Jesus. É o que eles estão vivenciando dentro da barca agitada pelo vento. Mas é o que a comunidade de todos os tempos também pode experimentar. Para superar este obstáculo, Mateus narra os acontecimentos seguintes.
Dos vv.25-30, o narrador apresenta o clímax da cena. Jesus vai ao encontro dos discípulos, pelas três da manhã, caminhando sobre as águas. O horário é um elemento simbólico que merece atenção. Corresponde ao tempo da quarta vigília, período entre três e seis da manhã, ou seja, período em que já está se gestando o dia novo, a luz que vem iluminar a nova jornada. O Senhor se manifesta aos discípulos como luz em meio a escuridão. Ele vem caminhando sobre o mar. Só Deus tem esse poder. As primeiras forças contrárias que Deus domina (com muita facilidade, inclusive com simples palavras) no AT são as forças das águas; no Êxodo, para libertar seu povo da escravidão, YHWH domina e separa as águas do mar, para que pudessem passar. Mateus quer ensinar para a sua comunidade que este Jesus, que caminha sobre as águas é Deus, vem da parte Dele, executa sua vontade, e, que, portanto, os discípulos não podem oferecer resistências a Ele. Se assuntam diante da visão e o Senhor lhes encoraja com palavras já conhecidas, convidando-os a não alimentarem o medo, que é contrário à fé.
Pedro aparece como símbolo dos Doze e revela que o grupo ainda está na superficialidade da relação com Jesus. Apresentam dificuldades. “Então Pedro lhe disse: Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água". E Jesus respondeu: "Vem!" Pedro desceu da barca e começou a andar sobre a água, em direção a Jesus” (v.28-29). O discípulo desafia o Mestre, que não rechaça-o, mas permite que ele também caminhe sobre as águas revoltas. Andar sobre as águas não é poder só de Jesus, mas pode ser uma experiência concedida e vivenciada por todos os discípulos. Ou seja, o Senhor comunica a todos os que O escutam e aderem ao sentido de Sua vida a plenitude divina da qual ele é portador. A capacidade de andar por sobre as realidades contrárias à vida e à missão que a comunidade e que cada um tem para viver. Estar na barca de Jesus, isto é, sua comunidade não é garantia de ausência de ventos contrários, mas garantia de que eles serão superados quando o discípulo e a comunidade terem a certeza de que o Senhor está com eles enfrentando a realidade.
Todavia, é preciso estar com os olhos fixos em Jesus. “Mas, quando sentiu o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: Senhor, salva-me! Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro, e lhe disse: Homem fraco na fé, por que duvidaste?” (v.30-31). Mateus retrata através desta cena o que acontece o discípulo e a comunidade perdem do horizonte de visão a Jesus: começa afundar; o mar da realidade contrária ao projeto de Deus submerge o discípulo. Este só perecerá quando desviar o olhar da meta que o Cristo. Pedro afunda não porque tem medo do mar. Ora, ele era pescador! Quantas noites e dias inteiros enfrentando aquele cenário? Não seriam aquelas águas que o matariam. Ele afunda porque tem medo do sentido para o qual a vida e a missão de Jesus apontam: viver a mesma existência do Senhor. Esta é a dificuldade e a razão do medo do discípulo, e que podem afundá-lo. Por isso o relato é uma catequese e não uma crônica jornalística dos fatos.
Após ser salvo por Jesus, Pedro é corrigido por Ele através da censura sobre a fé enfraquecida (v.31). O evangelista está constatando a superficialidade da fé dos discípulos. A dinamicidade da fé deve sempre ser entendida como relação, após uma opção e adesão fundamental que o discípulo faz pela vida do Mestre. A fé não é um sentimento de estima ou de qualquer outra conotação afetiva, mas uma relação interpessoal com Deus. Jesus pretende dizer a Pedro que o nível da sua relação com ele não atingiu a adesão plena de vida, a constância e a maturidade de reconhece-lo como Senhor e único absoluto de sua vida. O discípulo e a comunidade que mantiverem os olhares fixos e centrados em Jesus, ou seja, estabelecerem uma relação íntima e profunda com Ele serão conscientes das dificuldades e obstáculos, mas serão também possuidores da certeza de poderem caminhar sobre isto, sem que sejam submergidos pelo mar revolto ou abalados pelos ventos contrários. O discípulo só enfraquecerá sua fé quando não cultivar a relação com o Senhor.
O vento cessa assim que sobem na barca. Os discípulos, em forma de adoração e reconhecimento da presença divina diante deles, como todos os personagens bíblicos, se prostram. Mas também fazem uma confissão de fé no messianismo de Jesus: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!” (v.33). O mesmo acontecerá aos pés da cruz, quando o oficial e a soldadesca romana exclamarão, “Realmente, ele era o Filho de Deus” (Mt 27,54). Nesse sentido, a mensagem catequética é a seguinte: as duas tempestades, a do mar e a provocada pela cruz do Senhor possuem a força de gerar profissões de fé autênticas. As tribulações da vida, pelas quais passam o discípulo e a comunidade do Reino podem ser ocasiões oportunas e profundas para o crescimento na relação com Jesus, ou seja, o crescimento da fé, na medida em que se reconhece ter consigo, na barca da vida ou da comunidade, o Emanuel Jesus. Reflitamos.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu,
Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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