sábado, 1 de junho de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR - Lc 24,46-53 (ano C)




O tempo pascal encaminha-se para sua conclusão. A liturgia da Igreja celebra neste domingo a solenidade da Ascensão do Senhor. A comunidade eclesial professa a plenitude da ressurreição do Senhor. O Senhor ressuscitado, ao retornar para o âmbito (esfera e mundo) de Deus leva consigo a natureza humana. Ele não volta sozinho para o Pai, mas leva a nossa humanidade com Ele e a orienta para seu fim último e definitivo: a vida de Deus.

A liturgia nos propõe o texto de Lc 24,46-53. Estamos no último capítulo do evangelho segundo Lucas, que iniciou com o relato do anúncio da ressurreição às mulheres, seguido da manifestação do Senhor ressuscitado aos discípulos na estrada de Emaús (Lc 24,12); narrando-se depois a manifestação à Simão e à toda a comunidade (Lc 24,34ss), até chegar à conclusão narrativa que temos diante dos olhos.

No v.46, o evangelista nos informa que Jesus explicou o sentido das escrituras aos discípulos, após comer com eles, recordando que o Cristo deveria sofrer, mas ressuscitar ao terceiro dia. Esta recordação de Jesus corrobora a fala do mensageiro celestial às mulheres logo na introdução do capítulo. Elas deveriam, juntamente com o grupo dos discípulos, recordar o que Jesus havia dito sobre o seu destino. Para se fazer a experiência com o ressuscitado, a comunidade deve fazer a memória atualizadora da vida e da missão de Jesus. Fazer memória significa atualizar sua presença assimilando na vida cotidiana a exemplaridade da vida de Jesus.

Mas Lucas toca no tema do cumprimento das escrituras. É importante que os discípulos, que ainda estavam apreensivos e decepcionados com os últimos acontecimentos, acolham o desfecho final da vida de Jesus como cumprimento das Escrituras. Só assim, poderiam aceitá-lo como o Cristo e proclamá-lo, como fizeram depois (cf. CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Nos vv. 47-48, o Jesus de Lucas toca no tema da missão. A missão da comunidade consiste em oferecer e testemunhar a reconciliação realizada por Jesus à todos os povos. O evangelista trabalha aqui com um tema que lhe é muito caro, a universalidade da salvação: a salvação é para todos, indistintamente. Ninguém fica excluído dela. A missão é testemunhar a misericórdia de Deus através do dom da vida de Jesus. Assim, a comunidade assimila, vive e testemunha a missão de Jesus quando ela mesma assume a exemplaridade da vida dele.

O que Jesus fez deverão fazer seus discípulos. Para que os discípulos e a comunidade vivam profundamente a vida e missão de Jesus, devem ser revestidos da “força do Alto”: o Espírito Santo. Ora, a vida de Jesus foi toda pautada e conduzida pelo Espírito de Deus. No Evangelho de Lucas, tudo o que Ele realiza e vive, o faz segundo o Espírito. No relato do Batismo, é o Espírito que o investe para missão. No deserto, é o Espírito que o conduz. Na Sinagoga de Nazaré, declara-se ungido pelo Espírito. É por este momento que os discípulos deverão esperar, pela vinda da força do Alto. O evangelista usa do termo grego dynamis. A força (dynamis) do Alto é o dinamismo de vida que anima e move a vida dos discípulos e da comunidade para viver a missão, vivendo a vida mesma de Cristo.

O evangelista descreve a cena seguinte (a ascensão, propriamente dita), narrando a atitude de Jesus de “levar para fora” da cidade os discípulos, próximo à Betânia. Dois detalhes devem chamar nossa atenção. Lucas emprega um termo que alude ao tema do Êxodo. No relato da transfiguração (Lc 9), as duas personagens Moisés e Elias conversam com Jesus sobre o êxodo que ele realizaria através do dom de Sua vida, de sua Páscoa. Agora, o evangelista mostra para a sua comunidade a realização deste Êxodo. Outro detalhe é a localização, perto de Betânia. Seguir na direção de Betânia significa tomar o caminho contrário à Jerusalém; aquele caminho da entrada triunfante de Jesus na cidade santa, na ocasião da Páscoa. Se, de Betânia Jesus marcha para sua paixão e morte de cruz, seu êxodo de morte e vida, agora, na direção contrária de Jerusalém ele marcha definitivamente para junto do Pai.

Lucas narra um gesto de Jesus enquanto é levado para o alto. É a primeira vez que o evangelista narra Jesus abençoando e este gesto coincide com sua exaltação à direita de Deus, sua ascensão. A benção bíblica não é um ato mágico, uma vez que a fé de Israel não admitia nenhum aspecto de “mágico”.  A Benção é, primeiramente, uma “bendizência”, ou seja, o ato de bendizer à Deus recordando seus feitos, aquilo que realizou em favor dos seus, para tornarem-se lugar da presença de Deus. Ela assume uma dinâmica performativa, ou seja, realiza aquilo que diz, transmitindo uma força eficaz e irrevogável. A benção bíblica (que a Liturgia eclesial assumiu em seu dinamismo celebrativo-litúrgico) comunica a essência daquele que abençoa nos que são abençoados. Assim, os discípulos, que são abençoados, difundirão a bênção e, através dela, farão novos discípulos.

Depois de abençoar os discípulos, Jesus foi elevado aos Céus. É necessário compreender a cosmologia da época, isto é, a concepção de universo, espaço e tempo do povo da bíblia. O céu é o lugar da habitação de Deus. É âmbito divino e expressa a condição divina. Aplicando essa imagem a Jesus, o evangelista pretende afirmar que Jesus cumpriu plenamente a missão de revelar a face misericordiosa do Pai. Por ter sido fiel a essa missão, isso foi levado em conta pelo Pai, que o enalteceu e o justificou, ao entronizá-lo a sua direita. Ação de elevar o Filho é realizada pelo Pai (“foi levado para os céus” encontra-se na voz passiva, que indica que a ação em relação ao Filho foi realizada por Deus-Pai), assim como a ressurreição.

A sua elevação não é outra coisa que retornar ao âmbito do divino. Aquele homem que havia sido condenado como blasfemo, e morto pelas lideranças religiosas e políticas, agora está à Direita de Deus. Porque Ele mesmo assim o quis. É uma maneira que o evangelista encontra para dizer que o Crucificado pertence a esfera da divindade.

Mas esta elevação-ascensão de Jesus não é uma separação ou um distanciamento do homem. O mistério deste acontecimento pretende mostrar que Ele leva com sigo a nossa humanidade, porque a fez sua, elevando e glorificando a Carne e a Natureza humana. E mais ainda, desde a plenitude de sua divindade colabora com a atividade dos seus.

“Eles o adoraram. Em seguida voltaram para Jerusalém, com grande alegria. E estavam sempre no Templo, bendizendo a Deus” (vv.52-53). Adorar é o gesto característico do reconhecimento do senhorio de Jesus. Sabem que Jesus é realmente o salvador, por isso expressam uma “grande alegria”, sentimento semelhante ao dos pastores com o anúncio do nascimento (cf. Lc 2,10). Essa “grande alegria” é uma característica essencial do discipulado, na perspectiva de Lucas; fora antecipada no início do livro por Maria (cf. 1,47), pelos pastores e pelos anjos (cf. 2,8-20), e agora toma conta dos discípulos e, através deles, se estenderá por todo o mundo (cf. CORNELIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

O Evangelho de Lucas começa e termina no Templo de Jerusalém. De fato, após o prólogo, encontramos Zacarias oficiando no Templo (Lc l,5ss): é o tempo de Israel que, aos poucos, dá lugar ao tempo do Espírito que anima a comunidade cristã, a fim de que ela saiba atuar na mesma perspectiva libertadora de Jesus, segundo o Seu Espírito que inscreve no homem a vida do Senhor.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP

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