A noite santa na qual a Igreja faz a
memória atualizadora da completude do mistério da Encarnação, da primeira vinda
do Senhor, é iluminada por esse riquíssimo texto evangélico de Lucas, Lc
2,1-15. O catequista, mais do que transmitir uma crônica de um acontecimento
real, ele faz uma interpretação do acontecido à luz da fé Cristã – uma teologia
da história.
O evangelista nos informa a respeito de um
recenseamento de todo o mundo habitado (gr. Oikumênen) ordenado por Cesar
Otaviano Augusto. Um levantamento do povo, por volta do ano 5 a.C, quando
Quirino era governador da Síria, que incluía a Palestina (v.2). O evangelista
possui uma visão ecumênica, ou melhor, inclusiva (universal, se preferir) na
transmissão de seu relato. Otaviano foi o primeiro imperador que outorgou a si o
título de “Augustus”, isto é, “aquele que é digno de veneração; o poderoso; o
divino”. O censo ordenado pelo imperador tinha, na verdade, a seguinte
intenção: saber se a população havia aumentado para arrecadar mais impostos.
Uma nota importante: sempre que os reis de Israel tomavam essa iniciativa, Deus
os censurava através dos profetas, porque Ele era o único senhor do povo, e não
o rei. Nesse sentido, o rei acabava usurpando o lugar de Deus na vida do povo.
Do mesmo modo, a atitude do imperador anotada por Lucas indica a sua pretensão
de ser senhor de tudo e estar acima de tudo. Esta visão o autor quer logo corrigir:
se Cesar Otaviano “Augusto” quer elevar-se, Deus em seu mistério de amor
subverte esta logica e se põe no mesmo nível da humanidade. Ele faz o movimento
inverso, descendo até a humanidade marcada pela injustiça, pela dominação, pela
morte. Diferentemente do imperador, que toma a vida e é sinal das estruturas de
morte, Deus comunica um Evangelho de vida. É o que o evangelista tratará de
transmitir no decorrer da narrativa.
Lucas nos informa
os versículos seguinte (v.4-6) alguns dados importantes: José, de Nazaré foi à
Belém (v.4), sua cidade, juntamente com Maria, desposada com ele. Talvez essa
palavra “desposada” já não cabe mais, pois no primeiro capitulo, Maria estava
prometida em casamento a José, então casada com ele. Muito se conjectura sobre
essa situação do casal, pois o casamento hebraico se dava em duas etapas: o
desposamento, e a noite de núpcias. Nesse sentido, se o casal ainda estivesse na
condição de desposados, então, não seriam um casal em situação regular diante
da Lei de Israel. Outra contextualização importante, para não cairmos em narrativas
ou interpretações romantizadas acerca do fato: José e Maria já se encontravam na
cidade de Davi, ao contrário do que muito se pensa, que ao chegar em Belém, a
mãe teria dado à luz. Isso é impossível pois uma viagem de Nazaré à Belém era
feita a pé, algo impensável para uma mulher no último mês de gestação. Na
cidade de Belém ela dá à luz ao filho primogênito. Interessante, segundo a
tradição Judaica, a cidade de Davi era Jerusalém, pois foi ali que ele, enquanto
rei fixou sua residência. Lucas não concorda. Ele estabelece Belém como a
cidade de Davi, porque ela remete ao seu passado de simples pastor. Uma vez
mais o catequista pretende transmitir uma mensagem, que é a de mostrar para seus
leitores e para a geração seguinte, “o que virá a ser o menino que nasce em
Belém”, isto é, qual o sentido que sua vida e missão tomarão, quais serão os
destinatários de sua ação salvadora. O v. 6 nos informa que Maria dá à luz ao
seu primogênito (hbr. Ya’hid/meu único), o filho por excelência, ao qual são
reservados todos os direitos jurídicos, e aquele que, na tradição religiosa
judaica, deveria ser consagrado ao Senhor.
No v.7, o relato
diz que o recém-nascido foi envolvido em faixas e posto numa manjedoura. Aqui
temos um detalhe interessante: Lucas recorre ao Livro da Sabedoria: “Envolto em
faixas fui criado no meio de assíduos cuidados; "porque nenhum rei teve
outro início na existência; "para todos a entrada na vida é a mesma e a
partida semelhante” (Sb 7,4-6). O evangelista pretende assinalar a humanidade
de Jesus, uma vez que foi um homem no sentido pleno de sua liberdade.
O menino encontra-se na manjedoura porque
não havia lugar para eles na sala da hospedaria. Imaginemos o contexto social da
época. As hospedarias eram espécies de grutas escavadas nas rochas. Dentro
delas havia galerias onde era possível arrumar um cantinho para ficar, enquanto
que os animais ficavam próximos às manjedouras (nos cochos), na estrebaria. Mas
nem um lugar nessas galerias havia para a família de Nazaré. Então, muito
provavelmente, tenham ficado numa estrebaria, ou numa gruta destinada aos
pastores da região, como o resto da narrativa sugere. Lucas que mostrar que
Jesus está entre os excluídos. O autor resgata, para isso, a profecia de Isaias:
“O boi reconhece o seu dono; o burro o estabulo (cocho) do seu dono. Mas Israel
não reconhece; meu povo não compreende” (cf. Is 1,3). Jesus está entre os não acolhidos
da história. Um tema que aparecerá, novamente no Prólogo do Quarto Evangelho: “Ele
veio para os seus, mas os seus não o acolheram” (Jo 1,11). Ora, se faz
necessário recordar que quando a mulher paria, segundo a Lei de Israel, ela ficava impura (por conta do contato com o sangue que saia dela) e, por isso, deveria ser
afastada do convívio social até o momento de sua purificação no templo, quarenta dias
depois. Nesse sentido, se pode entender o motivo do casal não encontrar lugar
na hospedaria e serem realocados para o lugar dos animais, e, portanto, da
impureza. No recém-nascido de Belém, Deus faz seu repouso entre os impuros. E
será para estes que dirigirá sua mensagem de Salvação.
Lucas, após o
parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao
mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais
passam a fazer parte da temática da exclusão. Segundo o Talmud, nenhuma
condição social poderia ser mais desprezada que a dessas pessoas. Os pastores
eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, viviam muitas
vezes de pequenos furtos para sobreviverem, pagãos e, por isso,
não estavam habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do
culto judaico, bem como observar as prescrições da pureza farisaica; para os
fariseus e judeus de bem, os pastores não eram gente! Eles tornam-se
símbolos para todos aqueles que se encontram na exclusão.
Os pastores recebem então uma manifestação divina. São envolvidos por uma luz, e isso lembra, logicamente, outras manifestações de Deus ao longo do AT. O “anjo do Senhor” aparece pela terceira vez neste bloco literário do evangelho da infância de Jesus: a primeira, no templo, comunicando a vida João à Zacarias; depois, o mesmo mensageiro, comunica a vida de Jesus à Maria. Agora, o anjo do Senhor (que, de acordo com a tradição judaica vem sempre com a espada nas mãos para exercer a justiça e castigar os pecadores e maus) aparece aos pastores – símbolos dos pecadores. Não para julgar e castigar, mas para comunicar um evangelho de vida. Lucas quer ensinar para sua comunidade que o projeto de Deus que se inaugura em Jesus envolve a todos; não exclui a ninguém; não condena os pecadores, mas os abraça. Os envolve. Por isso, o evangelista declara que a Glória (hbr. Kabod) do Senhor os envolveu. A Glória não é o brilho, o esplendor. Mas a presença real de Deus. A Presença (A Glória) de Deus (o Senhor) abraçou (envolveu) a todos, sem distinção.
Isso é muito interessante: o anjo lhes
exorta, primeiramente, a não ter medo, porque o temor para com Deus não deve
ser uma barreira. Em segundo lugar, lhes dá um motivo: um evangelho de alegria
para todo o povo: nasceu para vós o Salvador, Cristo, o Senhor! A palavra
Salvador (gr. Sôter) é, primeiramente a tradução do hebraico Yeshua – Jesus. Mas, ao mesmo tempo, era o título empregado ao imperador romano. Lucas quer assinalar que não é este o salvador. A salvação repousa no menino de Belém.
Cristo é tradução grega do hebraico messias, que significa o “ungido”: é o delegado,
o enviado, o portador e executor do senhorio e da vontade de Deus. Tudo isso acontece na Cidade de Davi.
O mensageiro
celestial (Deus mesmo) lhes dá um sinal para encontrar o menino: deitado numa
manjedoura, envolto em faixas! É encontrar, portanto, a criança colocada no lugar da exclusão! O sinal que anjo dá aos pastores no campo não é um sinal
grandioso. Não poderá ser encontrado na opulência do palácio de Herodes ou de
Otaviano. Nem no esplendor do templo de Jerusalém. Tampouco entre os
poderosos. Mas colocado em meio a paus trançados – a manjedoura. Porque não
havia lugar para eles (Lc 2,7). Na estrabaria encontra-se a
Glória e a misericórdia de Deus feitas Carne. Deus fez-se encontrar entre os
pequenos e excluídos optando e empoderando-os.
Na manjedoura de
paus trançados, prefigura-se o mistério da Cruz. Porque ela torna-se,
na verdade, o questionamento decisivo que o Deus de Jesus faz a cada pessoa, de
todos os tempos e lugares: se desejais ver e buscar um Deus forte, potente, esplendoroso,
glorioso, deveis procurar outro; este “não sou eu”. Na cidade de Belém já se
vislumbra o que virá ser esse menino. Belém (do hebr. Beth-lehem) significa Casa
do Pão. O menino será Pão para humanidade. Servirá de sustento, e será doador
de Vida. Pão repartido, moído, despedaçado na Cruz. O sinal do menino envolto
em faixas é sinal da inversão escatológica: Deus que inverte a lógica dos
poderosos em favor dos pequenos.
Na narrativa,
imediatamente após o sinal dado pelo Herói de Deus (Gabriel – Gebehr), aparece
uma multidão da corte celeste para proclamar que a Glória (presença) de Deus, desde
o mais alto dos Céus, agora se faz presente na terra, na história humana para
inaugurar o Shalom, a paz. Lucas faz memória também do Sl 84. A realização plena
(plenitude) – Shalom da vida e do querer de Deus, comunicada e destinada a
todos! Não somente aos de boa-vontade (tradução equivocada do texto, que dá a
entender que só pode ser salvo quem tem a boa-vontade de fazer a vontade de
Deus). Mas uma salvação que atinge e abraça a todos.
Que a festa do Natal do Senhor possa abrir
as portas de nossos corações para a hospitalidade para com o irmão e a irmã que
não encontram lugar em nosso meio. Se quisermos ver o menino,
deveremos lançar o olhar para a estrebaria e para a manjedoura. Ele está ali,
com os últimos e excluídos.
Possamos nós estarmos entre os pastores
que recebem este evangelho: Deus põe seu Agrado em nós, através de Jesus, seu
Filho. Possamos estar onde o menino está; no lugar da opção feita por Deus. Eis
o Mistério desta noite Santa.
Bom Natal!
Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese
de Botucatu-SP.
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