sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

REFLEXÃO PARA A NOITE SANTA DO NATAL - Lc 2,1-15:

 


A noite santa na qual a Igreja faz a memória atualizadora da completude do mistério da Encarnação, da primeira vinda do Senhor, é iluminada por esse riquíssimo texto evangélico de Lucas, Lc 2,1-15. O catequista, mais do que transmitir uma crônica de um acontecimento real, ele faz uma interpretação do acontecido à luz da fé Cristã – uma teologia da história.  

O evangelista nos informa a respeito de um recenseamento de todo o mundo habitado (gr. Oikumênen) ordenado por Cesar Otaviano Augusto. Um levantamento do povo, por volta do ano 5 a.C, quando Quirino era governador da Síria, que incluía a Palestina (v.2). O evangelista possui uma visão ecumênica, ou melhor, inclusiva (universal, se preferir) na transmissão de seu relato. Otaviano foi o primeiro imperador que outorgou a si o título de “Augustus”, isto é, “aquele que é digno de veneração; o poderoso; o divino”. O censo ordenado pelo imperador tinha, na verdade, a seguinte intenção: saber se a população havia aumentado para arrecadar mais impostos. Uma nota importante: sempre que os reis de Israel tomavam essa iniciativa, Deus os censurava através dos profetas, porque Ele era o único senhor do povo, e não o rei. Nesse sentido, o rei acabava usurpando o lugar de Deus na vida do povo. Do mesmo modo, a atitude do imperador anotada por Lucas indica a sua pretensão de ser senhor de tudo e estar acima de tudo. Esta visão o autor quer logo corrigir: se Cesar Otaviano “Augusto” quer elevar-se, Deus em seu mistério de amor subverte esta logica e se põe no mesmo nível da humanidade. Ele faz o movimento inverso, descendo até a humanidade marcada pela injustiça, pela dominação, pela morte. Diferentemente do imperador, que toma a vida e é sinal das estruturas de morte, Deus comunica um Evangelho de vida. É o que o evangelista tratará de transmitir no decorrer da narrativa.

Lucas nos informa os versículos seguinte (v.4-6) alguns dados importantes: José, de Nazaré foi à Belém (v.4), sua cidade, juntamente com Maria, desposada com ele. Talvez essa palavra “desposada” já não cabe mais, pois no primeiro capitulo, Maria estava prometida em casamento a José, então casada com ele. Muito se conjectura sobre essa situação do casal, pois o casamento hebraico se dava em duas etapas: o desposamento, e a noite de núpcias. Nesse sentido, se o casal ainda estivesse na condição de desposados, então, não seriam um casal em situação regular diante da Lei de Israel. Outra contextualização importante, para não cairmos em narrativas ou interpretações romantizadas acerca do fato: José e Maria já se encontravam na cidade de Davi, ao contrário do que muito se pensa, que ao chegar em Belém, a mãe teria dado à luz. Isso é impossível pois uma viagem de Nazaré à Belém era feita a pé, algo impensável para uma mulher no último mês de gestação. Na cidade de Belém ela dá à luz ao filho primogênito. Interessante, segundo a tradição Judaica, a cidade de Davi era Jerusalém, pois foi ali que ele, enquanto rei fixou sua residência. Lucas não concorda. Ele estabelece Belém como a cidade de Davi, porque ela remete ao seu passado de simples pastor. Uma vez mais o catequista pretende transmitir uma mensagem, que é a de mostrar para seus leitores e para a geração seguinte, “o que virá a ser o menino que nasce em Belém”, isto é, qual o sentido que sua vida e missão tomarão, quais serão os destinatários de sua ação salvadora. O v. 6 nos informa que Maria dá à luz ao seu primogênito (hbr. Ya’hid/meu único), o filho por excelência, ao qual são reservados todos os direitos jurídicos, e aquele que, na tradição religiosa judaica, deveria ser consagrado ao Senhor.

No v.7, o relato diz que o recém-nascido foi envolvido em faixas e posto numa manjedoura. Aqui temos um detalhe interessante: Lucas recorre ao Livro da Sabedoria: “Envolto em faixas fui criado no meio de assíduos cuidados; "porque nenhum rei teve outro início na existência; "para todos a entrada na vida é a mesma e a partida semelhante” (Sb 7,4-6). O evangelista pretende assinalar a humanidade de Jesus, uma vez que foi um homem no sentido pleno de sua liberdade.

O menino encontra-se na manjedoura porque não havia lugar para eles na sala da hospedaria. Imaginemos o contexto social da época. As hospedarias eram espécies de grutas escavadas nas rochas. Dentro delas havia galerias onde era possível arrumar um cantinho para ficar, enquanto que os animais ficavam próximos às manjedouras (nos cochos), na estrebaria. Mas nem um lugar nessas galerias havia para a família de Nazaré. Então, muito provavelmente, tenham ficado numa estrebaria, ou numa gruta destinada aos pastores da região, como o resto da narrativa sugere. Lucas que mostrar que Jesus está entre os excluídos. O autor resgata, para isso, a profecia de Isaias: “O boi reconhece o seu dono; o burro o estabulo (cocho) do seu dono. Mas Israel não reconhece; meu povo não compreende” (cf. Is 1,3). Jesus está entre os não acolhidos da história. Um tema que aparecerá, novamente no Prólogo do Quarto Evangelho: “Ele veio para os seus, mas os seus não o acolheram” (Jo 1,11). Ora, se faz necessário recordar que quando a mulher paria, segundo a Lei de Israel, ela ficava impura (por conta do contato com o sangue que saia dela) e, por isso, deveria ser afastada do convívio social até o momento de sua purificação no templo, quarenta dias depois. Nesse sentido, se pode entender o motivo do casal não encontrar lugar na hospedaria e serem realocados para o lugar dos animais, e, portanto, da impureza. No recém-nascido de Belém, Deus faz seu repouso entre os impuros. E será para estes que dirigirá sua mensagem de Salvação.

Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Segundo o Talmud, nenhuma condição social poderia ser mais desprezada que a dessas pessoas. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, viviam muitas vezes de pequenos furtos para sobreviverem, pagãos e, por isso, não estavam habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico, bem como observar as prescrições da pureza farisaica; para os fariseus e judeus de bem, os pastores não eram gente! Eles tornam-se símbolos para todos aqueles que se encontram na exclusão.

Os pastores recebem então uma manifestação divina. São envolvidos por uma luz, e isso lembra, logicamente, outras manifestações de Deus ao longo do AT. O “anjo do Senhor” aparece pela terceira vez neste bloco literário do evangelho da infância de Jesus: a primeira, no templo, comunicando a vida João à Zacarias; depois, o mesmo mensageiro, comunica a vida de Jesus à Maria. Agora, o anjo do Senhor (que, de acordo com a tradição judaica vem sempre com a espada nas mãos para exercer a justiça e castigar os pecadores e maus) aparece aos pastores – símbolos dos pecadores. Não para julgar e castigar, mas para comunicar um evangelho de vida. Lucas quer ensinar para sua comunidade que o projeto de Deus que se inaugura em Jesus envolve a todos; não exclui a ninguém; não condena os pecadores, mas os abraça. Os envolve. Por isso, o evangelista declara que a Glória (hbr. Kabod) do Senhor os envolveu. A Glória não é o brilho, o esplendor. Mas a presença real de Deus. A Presença (A Glória) de Deus (o Senhor) abraçou (envolveu) a todos, sem distinção. 

Isso é muito interessante: o anjo lhes exorta, primeiramente, a não ter medo, porque o temor para com Deus não deve ser uma barreira. Em segundo lugar, lhes dá um motivo: um evangelho de alegria para todo o povo: nasceu para vós o Salvador, Cristo, o Senhor! A palavra Salvador (gr. Sôter) é, primeiramente a tradução do hebraico Yeshua – Jesus. Mas, ao mesmo tempo, era o título empregado ao imperador romano. Lucas quer assinalar que não é este o salvador. A salvação repousa no menino de Belém. Cristo é tradução grega do hebraico messias, que significa o “ungido”: é o delegado, o enviado, o portador e executor do senhorio e da vontade de Deus. Tudo isso acontece na Cidade de Davi.

O mensageiro celestial (Deus mesmo) lhes dá um sinal para encontrar o menino: deitado numa manjedoura, envolto em faixas! É encontrar, portanto, a criança colocada no lugar da exclusão! O sinal que anjo dá aos pastores no campo não é um sinal grandioso. Não poderá ser encontrado na opulência do palácio de Herodes ou de Otaviano. Nem no esplendor do templo de Jerusalém. Tampouco entre os poderosos. Mas colocado em meio a paus trançados – a manjedoura. Porque não havia lugar para eles (Lc 2,7). Na estrabaria encontra-se a Glória e a misericórdia de Deus feitas Carne. Deus fez-se encontrar entre os pequenos e excluídos optando e empoderando-os.

Na manjedoura de paus trançados, prefigura-se o mistério da Cruz. Porque ela torna-se, na verdade, o questionamento decisivo que o Deus de Jesus faz a cada pessoa, de todos os tempos e lugares: se desejais ver e buscar um Deus forte, potente, esplendoroso, glorioso, deveis procurar outro; este “não sou eu”. Na cidade de Belém já se vislumbra o que virá ser esse menino. Belém (do hebr. Beth-lehem) significa Casa do Pão. O menino será Pão para humanidade. Servirá de sustento, e será doador de Vida. Pão repartido, moído, despedaçado na Cruz. O sinal do menino envolto em faixas é sinal da inversão escatológica: Deus que inverte a lógica dos poderosos em favor dos pequenos.

Na narrativa, imediatamente após o sinal dado pelo Herói de Deus (Gabriel – Gebehr), aparece uma multidão da corte celeste para proclamar que a Glória (presença) de Deus, desde o mais alto dos Céus, agora se faz presente na terra, na história humana para inaugurar o Shalom, a paz. Lucas faz memória também do Sl 84. A realização plena (plenitude) – Shalom da vida e do querer de Deus, comunicada e destinada a todos! Não somente aos de boa-vontade (tradução equivocada do texto, que dá a entender que só pode ser salvo quem tem a boa-vontade de fazer a vontade de Deus). Mas uma salvação que atinge e abraça a todos.

Que a festa do Natal do Senhor possa abrir as portas de nossos corações para a hospitalidade para com o irmão e a irmã que não encontram lugar em nosso meio.  Se quisermos ver o menino, deveremos lançar o olhar para a estrebaria e para a manjedoura. Ele está ali, com os últimos e excluídos.

Possamos nós estarmos entre os pastores que recebem este evangelho: Deus põe seu Agrado em nós, através de Jesus, seu Filho. Possamos estar onde o menino está; no lugar da opção feita por Deus. Eis o Mistério desta noite Santa.

Bom Natal!

 Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

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