quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS - Lc 2,16-21:

 


A oitava do natal se completou. Por oito dias, desde a noite santa da solene vigília de natal, a Igreja permaneceu ao redor do menino e de seus pais no estábulo de Belém. Hoje, a liturgia da Igreja celebra a Solenidade de Maria Mãe de Deus, uma proclamação da fé da Igreja acima de tudo cristológica – relacionada à Fé em Jesus de Nazaré. Tudo o que se pode dizer acerca de Maria, Mãe de Jesus, só é possível em virtude do que é e do que sempre foi dito de seu filho.

Qual o sentido deste dogma na conclusão da oitava do Natal? A liturgia sempre quis visibilizar e introduzir o fiel no mistério da salvação que a Igreja celebra de modo sacramental e sensível na vida do ser humano e na história. Na solenidade do santo Natal, a Igreja fez a memória do mistério da Encarnação, ou seja, Deus que se fez carne, armando sua tenda entre nós (Jo 1,14). Com a solenidade de Maria, mãe de Deus, pretende-se visibilizar ainda mais o mistério da Encarnação, colocando acento, agora, na humanidade do Filho. Dizer que Maria é mãe de Deus, significa confessar que o Logos-Palavra de Deus assumiu concretamente a natureza humana: Jesus é verdadeiro e plenamente Deus; verdadeiro e plenamente homem.

A proclamação dogmática acerca da maternidade divina de Maria se dá, portanto, em chave cristológica, ou seja, em virtude da Pessoa de Jesus. O bispo de Antioquia, Nestório e seus companheiros acreditavam (de modo equivocado) que a humanidade e divindade de Jesus eram distintas e separadas. O que, desde as primeiras profissões da fé Cristológica, a começar por Niceia e culminando em Calcedônia, em 450, a unidade das naturezas na pessoa de Cristo foi sempre confessada e professada. Em 431, o Concílio de Éfeso, através de Cirilo de Alexandria, reafirmou a fé cristológica de que em Jesus existe uma comunicação tão grande entre humanidade e divindade. Assim, Maria é mãe de Jesus Cristo, e não só de sua humanidade.

Quando proclamamos “Maria, mãe de Deus”, estamos dizendo, conforme o dogma, que ela é a mãe do Filho de Deus encarnado. Maria não se tornou uma deusa, nem entrou na Trindade. Por isso, devemos vê-la em relação às pessoas deste Deus Uno e Trino.

A proclamação de Fé sobre a maternidade de Maria deve ser lida em chave teológica, e, portanto, à luz da Santíssima Trindade. Em relação ao Pai, Maria é uma filha predileta. Ela foi agraciada com ternura pelo Criador, que a moldou com especial carinho. Ao mesmo tempo, Maria concretiza, de forma humana, a eterna geração que o Pai realiza com o Filho, no seio da Trindade. Como toda mãe ou pai, ela é figura do amor criador de Deus-Pai. Em relação ao Filho, Maria é mãe, educadora e discípula. O seu relacionamento com Jesus supera os laços de família. Maria é mãe, mas sua missão vai mais além. Esteve junto de Jesus durante sua vida terrena e, agora, glorificada, continua junto do Filho ressuscitado, na comunhão dos Santos. No tocante ao Espírito Santo, Maria é uma pessoa plena Dele. Como perfeita discípula de Jesus, acolheu o Espírito e fez-se transparente a ele. Tornou-se um templo vivo de Deus e se transformou, por Graça, na mãe do Messias.

A liturgia traz para a nossa meditação, a continuidade do texto do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,16-21). Sabemos, que neste evangelho, Maria ocupa o modelo do discípulo do Reino. As características fundamentais residem na escuta, no acolhimento, e no cumprimento da Palavra de Deus na vida, e através dela, na história humana. A Mãe de Jesus apresenta estas características neste mini-evangelho da infância.  E delineia, durante todo o evangelho, as atitudes esperadas para os que querem se tornar discípulos do Reino e de Jesus.

Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso não eram habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico. No v.16, eles vão se certificar do evangelho que lhes fora dito pelo mensageiro celestial. O terceiro evangelho é caracterizado pelo tema da pobreza. A primeira palavra que sai da boca de Jesus, na Sinagoga de Nazaré, é que seu projeto de vida contempla o anúncio aos pobres, e que o Espírito do Senhor estaria sobre ele, e o ungira para esta missão (Lc 4,18). Ora, entre as muitas faces do terceiro evangelho, está o aspecto da salvação para os pobres, os últimos, a inversão escatológica, onde os primeiros se tornam últimos, e os últimos se tornam os primeiros. Ora, o Evangelho de Lucas é o mais social dos escritos do NT. Lucas é plenamente o evangelista dos pobres; aqueles aos quais os anjos anunciam um evangelho de Alegria.

O Evangelista nos informa a postura da mãe do Menino. Ela guardava e meditava no seu coração todas aquelas coisas. Temos aqui o sentido rico e autêntico do verbo guardar (hbr. shemá), que é como no nosso português popular, o verbo curtir: Maria ficou curtindo todas essas coisas no coração. Por mais que a imagem da ruminação seja aplicada ao evangelho de João, podemos entender essa atitude de Maria de “guardar no coração”, como sendo uma ruminação, ou mesmo um confronto consigo mesma. É a postura do discípulo do Reino.

No esquema da obra Lucana, o discípulo de Jesus é aquele que escuta a palavra de Deus, a acolhe em seu intimo, ruminando-a, para, enfim, coloca-la em prática, frutificando a Palavra de Deus através da vida e do serviço aos irmãos. Com a informação que Lucas nos dá sobre a mãe do menino, o leitor do evangelho é convidado e enxergar nela o exemplo do discípulo de Jesus.

O v.21 encerra para nós a narrativa de hoje: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido”. O evangelista revela aos leitores-ouvintes de seu evangelho qual será a vocação do menino. Jesus é a tradução do hebraico Y’eshua, que significa “Deus salva”. Nesse sentido, a salvação não vem do imperador de Roma, que recebia o título de salvador (gr. Sôter), mas do menino envolto em faixas, na manjedoura. Deste menino, do qual Maria, da condição de mãe, é chamada a assumir a condição de discípula. 

O dogma da maternidade de Maria é, igualmente, um convite para homens e mulheres recuperarem sua dimensão materna. Santo Ambrósio, no século IV, dizia que cada cristão é mãe como Maria, pois gera Cristo no seu coração. A declaração de fé toca a vocação de cada discípulo e discípula do Reino, pertencente à comunidade eclesial, por serem, através do Batismo, Igreja. Maria é imagem da Igreja em sua dimensão glorificada. Por isso, a Igreja é mãe. E à luz da maternidade de Maria, ela gera, alimenta, dá vida e cuida dos filhos de Deus nascidos no Batismo, através da Fé que transmite, da Palavra de Deus e dos Sacramentos de Seu Filho Jesus. A Maternidade de Maria ajuda-nos a abrir-nos para o projeto de Deus: escutar (ouvir), acolher e realizar a Palavra de Deus em nossa vida e através dela. Este é o melhor bom propósito para este novo tempo da Graça – Kairós – de Deus, que se inicia.

 

Pe. João Paulo Sillio.  

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.

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