sábado, 5 de dezembro de 2020

HOMILIA PARA O II DOMINGO DO ADVENTO (Ano B) - Mc 1,1-8:



 A liturgia do segundo domingo do advento, apresenta o início do primeiro Evangelho da comunidade cristã, o evangelho segundo Marcos. Situamo-nos na introdução da catequese do evangelista, a qual apresenta, desde o começo algumas notas que serão norteadoras para a leitura e meditação da primeira catequese comunitária.

O texto começa da seguinte maneira: “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (v.1). Só esta primeira linha introdutória é repleta de significados que merecem ser saboreados. Este título traz consigo, segundo o interesse de Marcos, uma série de referências acerca de Jesus e de um certo “evangelho”.

Em primeiro lugar, o termo “evangelho” (gr. εὐαγγέλιον / euanghelion), literalmente significa “boa notícia”. Uma alegre notícia, que no contexto do mundo bíblico é, primeiro, um anúncio importante provindo da corte do rei (p.e. nascimento de um membro da família real), ou mesmo anúncio de vitória sobre os inimigos. No campo religioso, o termo estava sempre relacionado ao agir libertador de Deus, sua intervenção sempre salvífica em favor do povo. No mundo extra-bíblico, no contexto do império romano, um evangelho continha sempre o anúncio feliz da ascensão de um novo imperador, o nascimento de um novo príncipe, ou mesmo a vitória de Roma sobre alguma potência estrangeira na época. Mas, para os autores do Novo Testamento, ou seja, os primeiros catequistas da comunidade, esta “Boa Notícia” estava relacionada à narrativa da vida, missão e obra de Jesus, em seu mistério de paixão, morte e ressurreição, bem como acerca da própria pessoa de Jesus. Em simples palavras, o evangelista, através deste termo, “evangelho”, quer fazer crescer sua comunidade e as gerações seguintes na consciência de que a Boa Noticia é uma pessoa, Jesus de Nazaré, e o sentido histórico salvífico que sua vida atinge.

Em segundo lugar, os complementos nominais que se seguem só nesta primeira linha do v.1, “Cristo” (sem o artigo definido), e “Filho de Deus”, funcionam como genitivos restritivos. Eles tem a função de acenar para a identidade deste Jesus, evangelho por excelência, mas que precisa ser amadurecida. Cristo é a tradução grega da palavra hebraica “messias”. Note-se, aqui, mais uma vez, que ela não vem acompanhada do artigo definido. Marcos não quer identificar a Jesus com “o Messias” davidico, aquele esperado pelo povo e pelas elites como sendo o valente guerreiro político e revolucionário que deveria libertar o povo de Israel da opressão dos dominadores e restaurar a realeza davídica. O evangelista concebe o messianismo de Jesus de outra forma, a qual se desenrolará no decorrer da narrativa evangélica. Filho de Deus é outro genitivo restritivo que precisa ser compreendido bem, mas que só o será na medida em que o leitor-discípulo vai avançando na compreensão e no conhecimento de Jesus. Ele só será revelado como Filho de Deus através da proclamação do oficial romano, aos pés da cruz. Marcos aplica esse adjetivo a Jesus para comunicar uma mensagem à sua comunidade: o messias, o ungido, e Filho de Deus não é o Cesar de Roma (ideológica e falsamente reconhecido como divino), mas este Jesus de Nazaré.

A boa notícia que vem através da vida, missão e obra de Jesus é a nova realidade de um modo totalmente novo e diferente de relação entre o homem e Deus. Relacionamento este que não se dará mais por intermédio da Lei (termo que não aparecerá mais no evangelho marcano), mas através da acolhida e da assimilação de Seu amor, através da vida de Jesus.

No v.2, Marcos se serve de uma passagem contida no Segundo Isaias, Is 40, que, começa com um convite de ânimo e de consolação para o povo sofrido e exilado em Babilônia. O texto do qual o evangelista usa é daquele período. E faz, portanto, sua releitura daquele “consolai o meu povo! Consolai!”, pois “O vosso Deus chega com poder”. Mas para que ela venha, se faz necessária atitude próprias. Ouvir a voz que grita no deserto, e acolher o convite à segunda atitude, “preparar os caminhos do Senhor”. Na perspectiva do evangelho é João.

O evangelista apresenta o primeiro personagem de seu evangelho. Um tal João, cujo nome hebraico significa “Deus é Misericórdia (Deus é Graça)”, que batiza no deserto. Em João, o povo simples reconhece a vinda do profeta verdadeiro, esperado por quatro séculos. Por quatrocentos anos o povo viveu sem profetas, uma vez que as autoridades do templo haviam proibido o exercício da profecia em Israel, no pós-exílio, o que se pode verificar na profecia de Zacarias 13. O templo pretendeu abafar a profecia porque não a suportava. O evangelista apresenta esse homem vestido com pele de camelo, que se alimenta de gafanhotos e mel silvestre. É retratado como figura e símbolo do grande profeta do povo, Elias.

O que significa este batismo? Sem recorrer ao significado litúrgico propriamente, “batizar” significa imergir/mergulhar. Era um rito conhecido já do povo, com o qual se indicava uma nova realidade na pessoa. Por exemplo, um escravo, para indicar sua liberdade passava pelas águas para representar sua liberdade, ao sair da água. Nesse sentido, o batismo era uma forma de morte para o passado a fim de se iniciar uma vida nova. Na perspectiva de João, o batismo que pregava e realizava era destinado à conversão.

Na língua grega existem duas maneiras de indicar a conversão. A primeira, indica o retorno (hbr. Shub(v)) à religião, à Deus, ao rito, à oração. Pois bem, o evangelista não fala deste tipo de conversão, porque com Jesus não há que se retornar à Deus, mas acolhe-Lo e com ele e através Dele voltar-se para os outros. Marcos usa outro termo que indica um profundo movimento de mudança interior que comporta uma mudança de comportamento.

O efeito da conversão é o perdão dos pecados. Na mentalidade do judeu piedoso, o perdão para os pecados se dava mediante o seu comparecimento no Templo, no cumprimento dos sacrifícios e dos holocaustos previstos pela Lei e pelo culto levítico. O batizador João, através deste rito, está dando as costas para o sistema religioso, inutilizando-o, por assim dizer. E se coloca no deserto. Qual a respostas das pessoas que ouviam falar desta iniciativa do profeta batizador? Iam para o deserto, nas margens do Jordão, e passavam pelo batismo de João.

O evangelista sublinha o lugar geográfico do rio Jordão. Ele não é só uma localização espacial, mas um lugar teológico também. Na tradição do Pentatêuco, o Jordão era tido como o último lugar de travessia por onde o povo teria que passar para entrar, conquistar e possuir a terra prometida, saindo da vida da escravidão e passando para uma vida de liberdade e totalmente nova. Interessante que os que acorrem à João, no deserto, a fim de serem batizados, não são somente os da região da Judeia, mas todos os habitantes de Jerusalém. Outro aspecto para o qual Marcos nos chama a atenção é o caminho contrário que os habitantes de Jerusalém assumem. Eles vão na direção oposta à capital, que, na tradição religiosa é o lugar sagrado, a terra prometida. É uma forma de se dizer que aquela terra de promessa havia se transformado numa terra de escravidão, da qual se deve sair. No ato de sair de Jerusalém, se reconhece que a conversão e o perdão para os pecados não podem estar encerrados nos sacrifícios, nas prescrições da Lei, mas no profundo e sincero movimento interior de mudança de vida, e, por isso, acorrem à João.

Mas, de verdade, o que faz João; ou, de outro modo, o que não faz? O que ele faz é explicitado no v.8a: “Eu vos batizei com água”. Ou seja, o batizador é um instrumento para a mudança de vida e de mentalidade. O que ele não pode fazer é outra coisa: batizar com o Espírito Santo. Ou seja, João não pode comunicar o dinamismo de vida de Deus que é capaz de fazer com que o ser humano viva esta nova realidade iniciada pela conversão e pelo perdão dos pecados. Este é, portanto, o anúncio da vida de Jesus, que é aquele que batizará com o Espírito Santo, aquele que insere o homem e a mulher no horizonte da vida mesma de Deus, e esta será a atividade e a missão de Jesus.

O evangelho deste segundo domingo do advento nos dá três lições-atitudes que devemos procurar assimilar. Escutar a voz: ela orienta, segundo o texto de hoje, a acabar com todas as dificuldades, a deixar um caminho livre e aberto, para que Ele possa chegar. Chegará na estrada que cada homem e mulher se propõe a preparar. Na verdade, Ele vem ao encontro nesta estrada. No caminho que deixamos prontos para encontrarmos com Ele, ou seja, a atitude do “aplainar/preparar os caminhos”. A fim de se acolher o convite à conversão, que é atitude interior da mudança de mentalidade e de vida. Só assim se pode participar da vida e da missão Daquele que batiza com o Espírito Santo, o qual nos insere na vida e no horizonte todo de Deus.

Nossos ouvidos estão atentos a este apelo? Que caminho/estrada temos preparado para o Senhor que vem; e que via podemos a ele apresentar como lugar de encontro entre ele e nós?

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família/Arquidiocese de Botucatu-SP. 

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