A liturgia deste quarto domingo do advento, propõe a narrativa do anúncio divino destinado à humanidade toda na pessoa da jovem de Nazaré. A cena é muito densa em toda a sua composição bem como em seu significado. O texto escolhido para a meditação eclesial é Lc 1,26-38, a continuação da narrativa anterior, a qual apresentou-nos o anúncio do nascimento de João. O terceiro evangelista em sua técnica narrativa gosta de trabalhar com o esquema do díptico: narrativas semelhantes com personagens distintos. Se na anterior, apresentou um personagem masculino como protagonista, agora trata de introduzir uma personagem feminina como protagonista da cena.
Antes de lançarmos olhos para a narrativa em si, convém direcionar o olhar para as personagens tanto deste texto proposto pela liturgia para a nossa meditação, quanto da perícope anterior. Eles ajudam a Lucas em seu projeto redacional, ou seja, para a sua catequese comunitária. É importante ter presente que o evangelista trabalha com temas que atravessam todo o seu evangelho. Um dos temas é a misericórdia. Ela apresenta-se do princípio ao fim da catequese evangélica. Na intenção do autor, as personagens Maria, Isabel e Zacarias, já neste mini-evangelho, que convencionamos chamar as narrativas da infância de Jesus, são expressões do agir de Deus na história humana, até manifestar-se plenamente no rosto, na história e na missão de Jesus de Nazaré.
O Deus e Pai de Jesus, na intenção do evangelista, recorda-se (atualiza) de sua Aliança com a humanidade sofredora, mostrando seu agir em favor dos últimos, dos desprezados, dos espoliados da história, dos quais Maria, Isabel e Zacarias são símbolos, através de Sua atuação em favor destas personagens, retirando-as da condição humilhante e desprotegida em que viviam. Isabel era estéril e, juntamente com Zacarias, de idade avançada viviam uma situação que chamamos abraâmica. A jovem Maria de Nazaré representa todos os homens e mulheres que se encontram na situação da indigência e do sofrimento. O que o Deus de Israel faz é, precisamente inverter o sentido da realidade histórica, servindo destes excluídos para serem protagonistas de seu projeto de amor e de salvação. Protagonistas de sua Misericórdia – de seu agir-em-amor em vista da humanidade sofredora.
A cena muda de personagens e de localização. De Jerusalém, Lucas direciona seu leitor-discípulo para a depreciada Nazaré. A expressão inicial “Naqueles dias” (v.1) indica não somente um marco temporal, mas uma afirmação teológica: é o dia pleno. Neste dia, informa-nos o evangelista, que o valente de Deus (hbr. Gehber / Gabriel), foi enviado a uma jovem da Galileia, residente em Nazaré. O anjo na tradição bíblica é símbolo para a ação do próprio Deus. A jovem, estava prometida em casamento a um homem chamado José. A promessa de casamento, segundo tradição religiosa judaica, já configurava casamento. O autor informa-nos o nome da moça: Maria.
O autor usa o gênero literário de anúncio, seguindo o esquema: apresentação do mensageiro, a mensagem, a confusão da personagem, e a conclusão. A cena se desenvolve em três momentos progressivos, em que a mensagem é retomada e aprofundada. Primeiro, uma saudação rica de significado. Anjo a saúda: “Alegra-te, tu que recebeste Graça (gr. κεχαριτωμένη / agraciada)”. O convite à alegria messiânica é, agora, plenamente justificado. Maria, com efeito, é eleita pelo amor misericordioso e benévolo de Deus; escolhida pela Graça, para uma missão excepcional que os profetas antigos prenunciavam. “O senhor está contigo”, mais do que um desejo do anjo, é uma garantia Divina para o novo compromisso salvífico. O texto lucano mostra (v.29) que ela também fica com um certo temor. O anjo a tranquiliza, exortando-a para não ter medo, pois encontrou ela Graça diante de Deus (mais uma vez aparece a palavra Graça-misericordia).
A expressão “Encontrar graça” servia para traduzir a situação de um servo diante de seu senhor ou de uma serva diante de sua senhora (Ex 33,12-17; 34,9; 2Sm 15,25). Na maioria das vezes, o servo ou a serva permaneciam inquestionavelmente no seu lugar e na sua função, sem qualquer direito, mudança de situação. Por isso, quando uma pessoa nesta condição encontrava graça, era porque o coração de seus senhores se fazia complacente e favorável. A graça nunca é um pedido ou mérito, mas é graça porque é de graça. Em Maria, Deus demonstrou graça à humanidade, de graça e não por mérito.
Dirá o anjo que ela conceberá um filho, que será chamado de Jesus (hbr. Ieshua / Deus Salva - salvador). Nele se realiza a promessa feita a Davi em 2Sm 7,15, no tempo dos antigos. Neste menino se cumprirá todas as promessas de Deus; mais uma maneira de se dizer que esta boa nova ultrapassava de longe as expectativas judaicas. Uma realização do referido texto de 2Rs, acima. Realiza-se, em certo sentido, a profecia de Isaías (Is 11,1-9): da raiz de Jessé, pai de Davi, Deus suscitaria um rebento para governar o mundo, não pela espada, mas pelo Espírito. Ele estará cheio do Espírito de YHWH e não julgará pelas aparências, nem pelo ouvir dizer, mas julgará os fracos com justiça e pronunciará uma sentença em favor dos pobres da terra. O nascituro terá um nome significativo: “O Senhor salva”, Jesus: ele será grande, será Filho do Altíssimo e reconhecido como tal. Estes dois vocativos convidam o leitor-discípulo a reconhecer no filho de Maria, uma personalidade que assume as feições próprias de Deus. Na linguagem tradicional da Bíblia, o vocábulo “Grande”, em sentido absoluto, refere-se unicamente à Deus.
Maria pede alguma coisa para ter certeza, assim como Zacarias. E no seu caso isso não é considerado uma afronta ou descrença, pois ela não conhece a José no sentido sexual. Lucas já apresentou Maria numa atitude atenta, reflexiva e pronta para entender o sentido e as consequências da Palavra de Deus. Ora, sua objeção revela a mesma atitude espiritual. O Anjo dirá – introduzindo a segunda parte do anúncio acerca da identidade do filho de Maria – que o Ruah YHWH (Espírito de Deus = dinamismo de vida do próprio Deus) realizará isso. Uma expressão poética, mas que na verdade que dizer muito: uma maneira de se ilustrar a relação íntima do casal. Aplicado à Maria, pretende dizer que a concepção e geração de seu filho será uma atitude de Deus. Ele resolverá o problema. Por isso, aquele que nascer será Filho de Deus e não de José.
Desde suas origens humanas, Jesus é Filho de Deus. Isso não é questão biológica, mas de pertença e autoridade divina. Mesmo se Jesus tivesse sido suscitado fisicamente por José, ele não o pertenceria, mas a Deus somente: ele é totalmente Filho de Deus. E o sinal de que Deus é capaz de muita coisa, é aquilo que acontece com Elisabeth, que concebeu um filho na velhice: pura graça de Deus.
Então dirá Maria o seu “faça-se” (gr. γένοιτό μοι κατὰ τὸ ῥῆμά σου / genoitô moí katá tô rêmá soú)”. Ela dá através desse sim o seu assentimento à Palavra transformadora e performativa; e se torna a servidora desta Palavra já assumida. Só então tem sentido o que virá a seguir: partir para junto de sua prima para servi-la. Ao se tornar serva da Palavra encarnada, ela se torna serva dos mais debilitados. Serva dos excluídos. Encarna em disposições concretas o serviço a Deus, prestando sua ajuda à sua prima. Dirigindo-se apressadamente para socorrer sua parente Elisabeth, idosa, frágil e gestante. E então parte para Ayim Karin.
No evangelho segundo Lucas, o modelo para o discípulo do Reino é Maria, porque ela conserva em si as virtudes características do discipulado: Ouvir a Palavra de Deus; acolher esta Palavra de vida e Salvação; e realizar (cumprir / frutificar) a Palavra de Deus através da vida colocada em doação e serviço aos homens e mulheres de todos os tempos, lugares e condições. Maria, como modelo do discípulo que assumiu a Palavra de Deus como seu projeto de vida, colocou-se ao lado dos marginalizados da história. Ao escutar, acolher (ruminar/confrontar) e realizar a Palavra de Deus, Maria vai tecendo em seu ser Jesus-Palavra.
Neste tempo do advento, qual vem sendo a atitude diante da Palavra que Deus dirige também a nós, como fez à Maria? Também a nós Deus dirige seu favor, chamando-nos de agraciados. Qual vem sendo nossa resposta? Nossa vida e missão tem sido um frutificar da Palavra de Deus? Ao lado de quem nos colocamos, enquanto discípulos e discípulas do Reino? Que neste quarto domingo do advento, o Deus e Pai de Jesus Cristo possa encontrar em nossas vidas o mesmo espaço que Ele encontrou na jovem de Nazaré para o acontecimento de seu querer.
Pe. João Paulo Sillio.
Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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