O evangelho proposto para a solenidade da Sagrada Família de Nazaré, continua a leitura do segundo capítulo da catequese de Lucas. A narrativa de hoje nos convida a imitar a atitude de Maria que para o evangelista se torna figura exemplar do autêntico discípulo do Reino. A meditação sobre a sagrada família de Nazaré será pautada, nesta leitura, a partir da atitude que a mãe do menino assumirá e deverá ser a atitude de todo aquele que se propõe a viver o projeto do Pai: deixar que a espada da palavra do filho traspasse o seu íntimo e provoque uma atitude. Maria e a atitude que deverá assimilar serão as balizas para a compreensão deste evangelho dominical.
Trinta e três dias após a circuncisão de Jesus, Maria e José sobem à Jerusalém levando-o para ser apresentado ao Templo e para cumprir duas prescrições da Lei: a primeira, concernente à purificação da mãe, determinada em Lv 12, para a qual se devia ofertar um cordeiro ou uma rola ou um casal de pombos, dependendo da condição financeira da família. As mais abastadas ofertavam uma ovelha, ao passo que as mais pobres só podiam ofertar pombos ou rolinhas. A segunda prescrição consistia no sacrifício de resgate do filho primogênito, em Ex 13,1-2. O filho primogênito, na mentalidade do povo e da fé de Israel, era propriedade de Deus. Ele tinha o direito de reclamá-lo para si. O sacrifício de resgate cumpria a função de pagar a Deus uma quantia em resgate do primogênito – cinco moedas de prata, o equivalente a vinte dias de trabalho do indivíduo.
O evangelista, através desta informação acerca dos cumprimentos dos preceitos rituais, pretende mostrar que Maria e José estão, ainda, sob o peso da Lei. Por cinco vezes o termo Lei aparecerá só neste trecho bíblico, aludindo aos cinco livros que constituem a Lei de Israel, a Torah. Mas, enquanto Maria e José dirigem-se ao templo para cumprirem os preceitos, ao seu encontro vem um certo Simeão, que Lucas identifica como um “homem do Espírito”.
Simeão, na intenção do evangelista, pretende impedir que os pais cumpram os preceitos rituais. Para a personagem e para o catequista bíblico, o sistema levítico-cultual, com suas prescrições e ritos são inúteis. Esta personagem carrega consigo a imagem e o peso de todo o antigo que está na expectativa da novidade da irrupção de Deus na história. E esta novidade Simeão sabe reconhecer no menino trazido ao Templo por seus pais. Ele representa a espera do antigo que se encontra disponível para acolher o novo.
Acontece, pois, o encontro entre o casal e o recém-nascido com Simeão, que toma o menino nos braços, o abençoa, e, aqui, o evangelista retoma a temática já apresentada na ocasião do anúncio do anjo aos pastores na noite do nascimento do menino: o elemento da luz, que envolvia os pastores, os quais temiam ser incinerados pela luz, que aludia à ira de Deus, que, ao contrário os envolve com ternura, amor e compaixão, o que provoca um desconcerto.
Em relação ao tema da luz, Simeão declara ser aquele menino a luz que ilumina as nações. O vocábulo grego utilizado por Lucas é ethnôn (gr. ἐθνῶν ), indica os povos pagãos. E isto causa o desconcerto, porque a tradição dizia que Israel com seu messias deveriam ambos dominar sobre os pagãos. Ao contrário, o evangelista coloca nos lábios do homem movido pelo Espírito que o projeto de amor de Deus é universal e destina-se também aos pagãos. Mais uma vez o catequista bíblico diz que o desconcerto paira, agora, sobre os pais do menino.
Simeão se volta para Maria, mãe do menino, com uma bendizência em tons coloridos de dramaticidade: “Este menino vai ser causa tanto de queda como de reerguimento para muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição” (v.34). Jesus será o instrumento do agir de Deus que, através de sua vida, missão e obra subverterá a lógica humana. Ele realizará a inversão escatológica querida por Deus: a novidade, ultimidade, plenitude da ação e do querer de Deus realizando salvação na história através dos últimos.
O homem movido pelo Espírito completa com essas palavras: “Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma” (v.35), dirigindo-se à Maria. Que espada é esta? Não é nenhuma profecia das dores e dos sofrimentos da mãe em relação ao seu filho. A intenção é bem outra e muito mais profunda. A espada, na tradição bíblica, sempre foi símbolo para a Palavra de Deus, que ao penetrar no íntimo do homem gera uma divisão, a ponto de fazer o fiel tomar uma decisão: uma espada-Palavra que gera divisão-decisão no ser humano. Mas, em relação à Maria, a espada é a Palavra de Deus através da palavra de seu filho Jesus. O que está dizendo Simeão à Maria? Que a palavra deste seu filho fará com que ela tome decisões até mesmo difíceis.
Como Maria acolheu a palavra do anjo, no relato da anunciação, em Lc 1,26-38, e se tornou a mãe de Jesus, agora deverá acolher a palavra de seu filho para prosseguir em seu crescimento e se tornar discípula exemplar. Ora, no evangelho de Lucas, ela é apresentada como o modelo do discípulo do Reino, porque possui as características esperadas do discípulo: a escuta da Palavra de Deus, seu acolhimento na vida – tal como uma espada que traspassa a existência – o cumprimento – realização da Palavra na vida através das obras, da vida colocada em resposta, doação e serviço. Para ela, não foi fácil percorrer o caminho do discipulado, superando em relação ao seu filho a condição de mãe para tornar-se discípula de seu filho.
Assim, para se tornar parte da Família de Deus, o discípulo deverá procurar assumir em si as disposições necessárias: como Maria, ouvir a Palavra – deixar-se traspassar pela espada – de Jesus, acolhê-la em seu íntimo, e crescer na condição do discipulado.
Pe.
João Paulo Sillio.
Paróquia
Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.
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