A liturgia dominical apresenta para este terceiro domingo do tempo comum um texto complexo em sua estrutura, uma junção de dois capítulos do Evangelho segundo Lucas, Lc 1,1-4;4,14-21. A primeira parte compreende o capítulo primeiro, o qual apresenta o prólogo da primeira parte da obra do autor (Evangelho e Atos dos Apóstolos), 1,1-4, e a segunda parte, o capítulo quarto, que apresenta o discurso inaugural de Jesus na catequese lucana (4,14-21), situado na sinagoga de Nazaré. De qualquer maneira, o texto – mesmo estando assim composto – nos apresenta uma profunda e valiosa lição.
Em Lc 1,1-4, temos elementos importantes que se conectam com a segunda parte, e que precisam ser colocadas em relevo. Por se tratar de um prólogo, uma introdução, o autor nestes quatro versículos expõe sua forma de escrever e a finalidade de seu relato, e isso é muito importante. Em primeiro lugar (para não estender em demasia), esta inteligente introdução que o evangelista elabora evidencia muito de seu estilo e forma. Lucas assimila o estilo de escrita e narrativa já presentes nas grandes obras da antiguidade clássica, as quais apresentavam seus heróis como personagens principais, inseridas na história e na realidade cronológica. Mas é importante lembrar: os evangelhos não cumprem a finalidade de ser uma cronologia ou biografia de Jesus. O autor do terceiro evangelho e de Atos sabe muito bem disso e, para além de uma história quimicamente comprovada (como se espera de uma historiografia moderna, com dados confirmados com exatidão pela arqueologia e pela pesquisa histórica e crítica das fontes), ele elabora uma Teologia da história e na história. Ele tem a função de transmitir uma experiencia de fé pessoal e comunitária, “Muitas pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da palavra” (v.1-2). Nosso catequista pertence à terceira geração dos seguidores de Jesus. Escreve sua obra entre 80 – 85 d.C, seguindo o fio condutor narrativo comum aos sinóticos, o evangelho de Marcos, mas acrescentando muito de seu material próprio, provindos da experiência e da necessidade de sua comunidade, e da sua experiência com o Apóstolo Paulo.
Sua intenção é clara já nas linhas introdutórias, no v.3: “Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo”. Escrever de modo ordenado, depois de um cuidadoso estudo, tudo o que aconteceu desde o princípio. Ou seja, Lucas, para além do que muito se pensou acerca de sua profissão de médico (conforme tradição), mostra-se um estudioso e um exímio escritor. Por mais que seja um judeu de diáspora (que vive fora da província da palestina) e escreva para uma comunidade grega (na Grécia meridional, uma tradição antiga aponta para Corinto), é um conhecedor das escrituras hebraicas (pode ser um cristão convertido do paganismo o mesmo um judeu-grego convertido à fé cristã). E, aparentemente, apresenta-nos um destinatário. Um certo Teófilo (lit. Amigo de Deus), que pode ser uma pessoa concreta (filho do sumo sacerdote Anás, muito conhecido entre os anos de 30 – 60 d.C, conforme sugerem estudos sérios acerca desta personagem), como uma personagem corporativa, isto é, símbolo para todos aqueles que desejam se tornar amigos de Deus, a partir da escuta da Palavra (já que não podem ser testemunhas oculares, porque estas foram tão somente a primeira geração dos discípulos-apóstolos do Senhor). Logo, chegamos a sua finalidade: “verificar a solidez dos ensinamentos que recebestes”. A comunidade já fora evangelizada, e necessita ser confirmada nesta Boa Notícia.
Somos convidados,
agora, a meditar a segunda parte do evangelho, Lc 4,14-21. Neste capítulo, o
evangelista apresenta-nos o discurso inaugural de Jesus proferido na sinagoga
de Nazaré, sua cidade natal. É um discurso ao mesmo tempo que é um conteúdo
programático, o qual apresenta para os discípulos-leitores do terceiro
evangelho o itinerário pelo qual Jesus decidiu pautar sua vida e sua missão.
O evangelista nos insere na
narrativa informando que Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou para a Galileia. A expressão “cheio do Espírito” indica que toda a ação de Jesus, e
para onde quer que ele vá, são motivadas pelo Espírito Santo, o Dinamismo vital
de Deus que insere todo o ser humano no Seu horizonte. O autor situa-nos na
narrativa dizendo que Jesus, em dia de sábado, como de costume, foi à sinagoga
de sua cidade natal, Nazaré. Cidadezinha que sequer constava nos mapas, tal o
seu desprezo por parte dos judeus piedosos da época, dado ser um lugar mal
visto devido a miscigenação ali presente e o sincretismo religioso que em nada
agradava a gente piedosa do sul (Jerusalém).
O sábado era o dia por excelência
de sua fé. Neste dia o judeu piedoso vai à sinagoga para escutar a Palavra de
Deus e recitar a Oração das Dezoito Bênçãos. Contudo, será ali que Jesus
causará as polêmicas – conflitos – acerca do sábado e sobre a sinagoga. Com
efeito, será na própria sinagoga que sua pessoa e Palavra serão rejeitadas.
Lucas informa aos leitores que
Jesus é convidado para tomar parte da liturgia da palavra. Ela começava com a
oração do Shemá (a profissão de fé do povo), seguida da leitura da Lei, dos
profetas e, em seguida, fazia a explicação daqueles textos. Tinha-se o costume
de oferecer a leitura dos textos dos livros proféticos e a prática da homilia
aos filhos da terra que moravam longe, por ocasião da visita a terra natal.
Jesus recebe, pois, o livro do
profeta Isaias. Precisamente Is 61, onde o profeta proclama um anúncio de
salvação e libertação para o povo exilado na Babilônia. Com algumas modificações,
a mensagem central retida pelo evangelista Lucas e colocada nos lábios de Jesus
é esta: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a
unção para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a
libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os
oprimidos e para proclamar um ano da graça do Senhor” (vv.18-19). Jesus,
fechando o livro, o entrega ao ajudante e senta-se, ocupando a posição
privilegiada do mestre que ensina. Lucas informa aos leitores que todos tinham
os olhos fixos em Jesus. Ele, então, declara aos presentes: “Hoje se cumpriu
esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”. Este dito de Jesus
expressa muita coisa.
O evangelista pretende
mostrar Jesus como o intérprete e realizador das Escrituras de Israel. À luz
destas mesmas Escrituras, ele se decide por viver sua missão e confirma a sua
vocação messiânica – o Ungido – para libertar definitivamente o povo. Mas que
povo é este? Ou melhor quem são os destinatários desta libertação? Os pobres,
os cativos (oprimidos), os cegos. O anúncio da Boa-Nova a estas pessoas, que no
tempo de Jesus simbolizavam os excluídos e marginalizados, era o sinal de que o
tempo messiânico – tempo da salvação e dia favorável da intervenção e YHWH –
havia irrompido definitivamente. Tal será o programa de vida assumido por
Jesus.
Mas o discurso
inaugural ou programático de jesus deverá ser o programa de vida da comunidade
dos discípulos. Pois o que o mestre realiza valerá também para o discípulo.
Nisto compreendemos que a missão de Jesus se dilata para os discípulos daquele
tempo e de hoje, pois o verbo “enviar”, utilizado por Lucas sugere uma ação
contínua (lit. “envia-me para evangelizar.”, gr. ἀπέσταλκέν/Apêstalkên, do
verbo ἀποστέλλω/apostello). Ou seja, o Pai continuamente envia o Espírito do
Seu Filho sobre a comunidade, para que ela possa assumir a mesma missão de seu Cristo.
A declaração que Jesus dá aos
ouvintes é muito profunda. O verbo cumprir (gr. πληρόω/Plerôo; πεπλήρωται/ peplerotai)
é significativo e deve ser bem compreendido. O cumprimento das escrituras de
que Jesus fala não pode ser pensado na lógica do “estava escrito e Jesus cumpriu”,
pois se assim for reproduziremos heresias antigas e já mitigadas, como por
exemplo, o docetismo que em linhas gerais apregoava que a vida humana de Jesus
foi um “faz de conta”, que ele nada teria sofrido, que sua morte teria
sido uma mera aparência, assim como a sua humanidade, permanecendo plenamente
divino. Tal erro foi combatido nos primeiros séculos do cristianismo através
das profissões de Fé na união das duas naturezas e na consubstancialidade com
Pai e conosco. Plenamente humano; plenamente divino.
Quando os evangelhos nos apresentam
as formulas de cumprimento (“para se cumprir as escrituras; cumpriu-se o que
foi dito pelos profetas; cumpria-se a escritura que dizia..”) como no caso
do texto que meditamos, elas devem ser entendidas na seguinte perspectiva:
Jesus decidiu-se por assumir, livremente, a Palavra de Seu Pai e vive-la em sua
vida. Retomando Is 61, é como que se Jesus dissesse “Eu desejo viver a minha
vida, minha relação com o Deus a quem chamo de Pai, na escuta de sua palavra
(Torá) e na relação com as pessoas desta maneira, motivado (e investido) pelo
Espírito (o dinamismo do Amor e a potência de amar), indo na direção dos
pobres, excluídos, marginalizados, para anunciar que o tempo da Salvação se faz
presente. É assim que quero viver”. Transpondo isto para o horizonte da
comunidade pode-se compreender o cumprimento das escrituras como o cumprimento
do tempo do Antigo Testamento. E, que de agora em diante, a comunidade dos
discípulos tem um novo horizonte: Jesus de Nazaré e seu Evangelho. Isso fica enfatizado
pelo adverbio de tempo que é muito caro ao evangelista, aparecendo outras
ocasiões novamente, o “hoje” (gr. σήμερον/Sêmeron). Recorde-se a Boa Notícia dada
pelo anjo aos pastores em Lc 2,14, “Hoje nasceu para vós o Salvador”;
aparecendo novamente neste episódio da sinagoga (Lc 4,21). Retornando no belíssimo
episódio de Zaqueu (“Hoje a salvação entrou nesta casa”, Lc 19,1-10) e,
finalizando em Lc 23,43, na cena do perdão ao malfeitor arrependido. O tempo
pleno de Deus inaugurado pela ação de Jesus é um constante e definitivo Hoje savífico.
Na intenção de Lucas, sempre que o discípulo decide-se por Jesus está
acontecendo esse Hoje salvífico em sua vida. Não se vive mais de um passado
saudosista ou esquizofrênico, tampouco de um futurismo, porque no horizonte de
Deus será sempre um hoje ressignificador para a história humana e de cada um.
Assim, o Evangelho que meditamos
nesta liturgia ilumina-nos na compreensão de que o que Jesus realiza e ensina
vale para o discípulo e a comunidade; os destinatários da mensagem de Jesus
devem ser os mesmos da comunidade, os marginalizados de hoje. É para essas
pessoas que se deverá olhar em primeiro lugar. Isto se tornará critério de
verificação da fé e da coerência da vida da comunidade, ou seja, se ela é fiel
ao projeto de Jesus e sermos reconhecidos como os Teófilos (amigos de Deus),
anunciadores e ministros da Boa Nova que é a vida do Senhor acontecendo em meio
a nós e através de nós.
Pe. João Paulo Góes
Sillio.
Santuário São Judas
Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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