O Evangelho deste domingo é a continuação do texto meditado no domingo passado. É a conclusão do episódio programático de Jesus em Nazaré. Ali, decide-se voluntária e livremente a assumir o projeto contido no livro do Profeta Isaias (61,1ss), de proclamar a boa-nova libertadora e o ano favorável da intervenção de Deus na história em favor dos pobres, cativos, oprimidos.
O texto que temos hoje em mãos para meditar começa justamente de onde parou: Jesus anunciava à sua gente que aquela escritura se cumpria diante deles. Ou seja, Ele se incumbia de leva-la à superação. E, para o horizonte da comunidade, Lucas deseja, com estas palavras de Jesus, reorientar lhes a vida: o referencial de vida dela é a vida de Jesus e seu Evangelho.
Mas os ouvintes de Jesus, os de sua “casa”, tiveram muitas dificuldades de compreender sua mensagem e proposta. O evangelista nos informa que os que O ouviam ficavam admirados e questionavam sua origem: “Não é este o filho de José?” (cf. v.22). Como filho de um carpinteiro, Jesus não receberia muito crédito entre sua gente. Os que executavam trabalhos manuais, como os artesãos não eram pessoas consideráveis naquela época. Outro fator que favoreceu o espanto e a recusa, por parte de seus conterrâneos, foi a compreensão de messias que pairava no imaginário coletivo da época: o ungido de Deus para inaugurar a era escatológica do Seu Reinado na história deveria encarnar em si as qualidades de um guerreiro, promotor da luta armada para expulsar os romanos e restaurar o reino davídico. Para os que acreditavam nesta ideologia nacionalista, Jesus não se encaixava nos moldes e nas expectativas do povo. Ele era apenas um carpinteiro, continuador da profissão de seu pai. Ele não poderia, aos olhos deles, ensinar-lhes absolutamente nada. Não para aquela pequena e conservadora Nazaré.
Jesus, percebendo a admiração e a desconfiança, se antecipa e revela a reprovação deles: “Sem dúvida, vós me repetireis o provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo” (v.23). Depois, declara, “que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria” (v.24). Este dito acerca do profeta rejeitado na própria terra serve para indicar o modo de vida pelo qual Jesus decide-se levar a cabo sua missão: Jesus pauta sua vida e sua missão a partir do carisma profético. Já o provérbio “médico, cura-te a ti mesmo”, é colocado na boca de Jesus por Lucas para antecipar as ironias que sofrerá na cruz: “salva-te a ti mesmo e a nós” (Lc 23,37). Para enfatizar que, realmente, ele trilha o caminho do messias-profeta, o Jesus de Lucas toma para si dois exemplos: Elias e Eliseu. O primeiro, o modelo de todo o movimento profético do Antigo Testamento, e o segundo foi discípulo e continuador da missão de Elias. Jesus recupera para seus ouvintes as atitudes daquelas duas personagens. Elias, enviada a uma viúva em Sarepta (Sidônia, território da Fenícia, e, por isso, pagão e estrangeira). Eliseu, atende o general Naamã, sírio, infectado pela lepra, pagão e estrangeiro. Os dois profetas que mais pregaram o monoteísmo javista (a fé em Javé e a fidelidade à Aliança) atuaram até mesmo fora de seu país, pregando a fé em Javé e a fidelidade ao projeto da Aliança também aos estrangeiros. Ambos não ficaram reféns, tampouco aprisionaram a Deus e a Aliança, enredando-os nos esquemas da religião.
O projeto de amor e de misericórdia de Deus, o qual se torna Evangelho (Boa Notícia) e a Salvação não conhecem limites, não são propriedades de nenhuma pessoa, de nenhum um grupo, de nenhuma instituição. São, antes, graça e dom para quem quiser fazer experiência com ele. Nesse sentido, emerge para o leitor-discípulo do terceiro evangelho um tema muito precioso para o evangelista e catequista Lucas: a universalidade da Salvação.
“Quando ouviram estas palavras de Jesus, todos na sinagoga ficaram furiosos. Levantaram-se e o expulsaram da cidade. Levaram-no até ao alto do monte sobre o qual a cidade estava construída, com a intenção de lançá-lo no precipício” (v. 28-29). Bastou essa declaração de Jesus, para que os tradicionalistas nazarenos irrompessem furiosos. Lucas quer informar que a rejeição a Jesus e a sua mensagem foi total e completa, expulsando-o da sinagoga e da cidade. Um detalhe curioso: há uma certa incoerência geográfica nesta descrição do evangelista. Nazaré é construída sobre uma planície. Não há monte algum ali. A intenção do autor acerca deste dado é teológica. Ele quer estabelecer para sua comunidade e para seus discípulos uma comparação entre Nazaré e Jerusalém. Esta é construída sobre uma montanha. O catequista deseja prefigurar os acontecimentos da paixão de Jesus, que acontecerão na cidade santa. Nesse sentido, Nazaré miniaturiza Jerusalém, e o conflito com os seus conterrâneos trata-se de uma síntese em forma de prolepse (antecipação temática ao interno da narrativa) de todos os conflitos que terá durante seu ministério.
Jesus, em Nazaré, sofreu na pele a rejeição à sua Palavra, seu modo de vida e sua missão. Mas a rejeição não foi a última palavra em sua missão. O fracasso (na própria terra) não o determinou; tampouco frustrou a Jesus. Lucas nos narra que “Jesus, porém, passando no meio deles, continuou o seu caminho” (v. 30). Porque sua vida está orientada ao Pai e ao projeto do Reino; e não aos interesses escusos ou mesmo à vaidade de “agradar a todos”. Sua atitude deixa muito claro que não são as forças conservadoras e opressoras (representadas pelos Seus conterrâneos) que tem a última palavra. Elas não conseguem deter a força da Palavra e do Espírito do Senhor que movia Jesus.
O evangelho deste domingo tem a finalidade de ensinar-nos que, 1) aquele que se dispôs a assumir a perspectiva da missão de Jesus (proclamar a Boa-Nova da salvação e libertação aos pobres, oprimidos e marginalizados, e, hoje, a todos, sem distinção) deve ter a consciência de que passará pelo mesmo caminho da rejeição que o mestre passou e viveu na pele; 2) O texto de hoje serve, também, como um antidoto para que a comunidade cristã não caia (ou evite cair) na tentação de pensar que a salvação e o projeto amoroso e misericordioso de Deus, que consiste no Reino de Deus, seja somente para si, e assim reproduza o mesmo fechamento e mentalidade exclusivista que os conterrâneos de Jesus nutriam. A salvação-comunhão com Deus é uma proposta destinada a todos, sem distinção. 3) O texto funciona como um espelho. Diante dele somos convidados a olharmos e nos identificarmos com aqueles que escutavam a Jesus. Imaginando que ali estivéssemos, quem seriamos? Aqueles que, escutando a Palavra de Jesus decidiram-se por viver a mesma vida e o mesmo projeto que ele assumiu e viveu, ou seriamos os que fizeram oposição à sua Palavra, a ponto de o tirarmos de nosso caminho e lançá-lo “precipício a baixo”, recusando seu projeto e optando pelos nossos?
Que o evangelho de hoje nos ajude a
tomarmos o mesmo caminho de Jesus.
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese
de Botucatu-SP.
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