A liturgia de hoje nos insere no capítulo quinto do Evangelho de Lucas. Para compreendê-lo devemos lançar um olhar retrospectivo para o capítulo anterior, precisamente para a cena narrada em Lc 4,16-21, o chamado discurso inaugural de Jesus, na sinagoga de Nazaré. Este discurso é um ensino acerca de sua identidade, e, ao mesmo tempo, um programa de vida assumido por Ele, na obediência ao Pai. É ele o ungido pelo Espírito do Pai para pregar a boa nova aos pobres, proclamar liberdade aos presos e recuperação da visão aos cegos, libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça (ou favorável) do Senhor (Lc 4,18). Jesus assume este programa isaiano como sendo seu. Mas o que Ele assume vale, também, para os discípulos. O que faz e vive o mestre, deverá fazer e viver, igualmente, o discípulo do Reino. Se na experiencia de Nazaré encontra-se o fracasso de Jesus, no texto de hoje nos deparamos com o fracasso e a frustração do discípulo antes mesmo do início da missão. Tanto para Jesus como para o discípulo a Palavra de Deus deve ser seu horizonte.
Agora podemos mirar o horizonte do texto. Os primeiros onze versículos do capítulo quinto do evangelho lucano nos narra a vocação dos primeiros discípulos. O evangelista pode ter reunido e harmonizado outros episódios semelhantes para elaborar esta narrativa, de acordo com os estudiosos do texto. Após a primeira cena, segue o relato da pesca milagrosa, que prepara o momento culminante de toda a narração: o chamamento de Pedro para a nova missão no seguimento a Jesus (5,10b). A ligação entre estes três momentos é constituída pela “palavra” de Jesus. No começo, ele anuncia a “palavra de Deus” ao povo que se amontoa à margem; é por causa da palavra do Senhor que Pedro lança as redes para a pesca novamente, e, ainda motivado pela palavra do mestre que ele deixa tudo juntamente com seus companheiros para segui-lo.
Nos v.1-2, o evangelista situa Jesus entre a multidão, às margens do lago de Genesaré. O lago é um lugar teológico, onde Ele desenvolverá sua missão. Está praticamente apertado pela multidão, a qual tem fome e sede da Palavra de Deus. Lucas descreve que na margem encontravam-se algumas barcas vazias, pois seus donos estavam lavando as redes (também vazias). Mais a diante, Simão Pedro dirá que trabalhara a noite inteira sem resultado. Tal era a situação do povo em volta de Jesus: faminto da Palavra de Deus. O povo está precisando de palavras e ações novas, capazes de reverter a situação em que se encontra. Mais ainda: precisa de uma Palavra que provoque a novidade portadora de vida para todos.
Jesus toma uma decisão, informa-nos o texto. Sobe na embarcação de Simão Pedro e pede-lhe para que se afastem um pouco da margem (v.3). Na verdade, Jesus, ao subir na barca assume a vida e as dificuldades daqueles pescadores que nada pescaram na noite anterior. Assume-lhes o lugar e o fracasso. Todavia, sobe na barca para poder olhar aquela multidão. Olha-la de frente, nos olhos e sentir suas angústias, para comunicar uma Palavra que tem o poder de trazê-la novamente a vida. Sentado, posição do mestre autorizado e verdadeiro, se põe a ensinar. A dar-lhes o pão da Palavra que lhes comunica vida e liberta o povo de suas opressões. O conteúdo deste ensino fica, aqui, oculto. Mas é fato que Jesus ensina a partir da situação em que vive o povo. Por isso, tem a coragem de olhá-lo de frente!
Nos v.4-7, tem-se a narrativa de uma “pesca milagrosa”, iniciada por uma ordem de Jesus a Simão Pedro: “Avancem paras as águas mais profundas e lançai as vossas redes para a pesca”. Pedro objeta, primeiramente, mas, em seguida, acata: “em atenção à sua palavra, vou lançar as redes”. Ele adere à Palavra daquele de Jesus (v. 4). O que teria transformado Simão, especialista em pescaria, fazendo com que voltasse a pescar sob as ordens de quem nunca se deu a essa tarefa? O que orienta a vida de Pedro, a partir daquele momento, é a atenção à Palavra do Mestre, a qual é capaz de mudar radicalmente as situações sofridas em que se encontra o povo. Qual o resultado da confiança na Palavra do Mestre? Precisamente, a mudança ou reversão da situação: as redes se rasgam; superam as expectativas a ponto de uma barca não ser suficiente. A Palavra do mestre quando levada à sério gera abundância para todos.
Os estudiosos classificam este texto dentro do gênero literário de revelação, que quer transmitir uma mensagem importante. Ora, uma pesca abundante, em pleno dia é contra os costumes normais em que aquela atividade era realizada. Por isso, o relato indica que o texto tem mais uma lição para dar, do que uma história a contar. Seu objetivo, portanto, não é o de ser uma crônica literal dos fatos. Na verdade, esta cena, ilustrada pelas redes que estão a ponto de se romper, e as barcas a ponto de afundar, preparam o encontro decisivo entre Jesus e pescador de Betsaida. Simão reconhece-se, através do espanto, pecador. Este reconhecimento é mais um sinal que indica que o texto pertence ao gênero de revelação. É a atitude das personagens diante da manifestação de Deus. Simão reconhece no mestre que deu a ordem de lançar as redes, o Senhor. Importa salientar que, neste momento, Simão Pedro chama Jesus com o título cristológico atribuído à sua condição de ressuscitado, Kyrios (gr. κύριος), Senhor. Nesse sentido, a pesca se torna um sinal precursor da vitória de Cristo sobre a morte. É dela que surge a abundância de vida para todos.
Jesus, com uma nova palavra supera o distanciamento e o espanto de Pedro. Ele não se aparta das pessoas, mesmo quando elas se tornam conscientes de suas limitações e “indignidade”, pelo contrário. A partir do momento em que a pessoa acolhe Sua Palavra libertadora, Ele a associa ao Seu ministério, vida e missão: “De agora em diante serás pescador de homens” (v.10).
Compreenda-se o seguinte: a rigor, a pesca lesa somente ao peixe. Porque a água é o seu ambiente vital. Fora dela, o peixe asfixia-se e morre. Para o homem, a água é fonte de vida, mas também é lugar de morte. Ao contrário do peixe, o homem não pode viver na água. Ao incumbir Simão Pedro e os demais da tarefa de serem “Pescadores de Homens”, Jesus ordena-lhes retirar os homens de todas as situações de morte que possam existir, e fazer crescer neles a vida. Porque o mar (ou o oceano) é símbolo para todas as forças contrárias ao projeto de Deus; metáfora para as forças de morte e de opressão, no mundo bíblico. Lucas modificou a expressão de Mc 1,17b, “pescadores de homens”, substituindo-a por um vocábulo grego que ele retomou da tradução grega do AT, que significa “pegar vivos” ou “pegar para a vida”. Quer dar a entender que Pedro e os demais terão a tarefa de “pescar” as pessoas para a vida. Ressignificando-as para o projeto de Vida plena, através da Palavra que pode assumir a figura da rede lançada na pesca. Com efeito, será a Palavra de Jesus a garantia da eficácia da missão.
Preso a esta palavra que a vida de Simão Pedro e dos demais discípulos se torna outra coisa. E para nós, não é diferente: é quando nos amarramos com confiança à Palavra do Senhor que a vida se transforma. É quando confiamos no risco de sua Palavra, quando depois de termos limpado nossas redes o Senhor nos manda lançá-las uma vez mais; quando depois das noites das nossas humanas pescas fracassadas Ele nos manda arriscar; quando não vemos “como” e o Senhor nos diz uma palavra na direção oposta à que não imaginávamos ou não queríamos, e, mesmo assim, avançamos e acreditamos é ali que a nossa vida se transforma.
Através
da narrativa de hoje o evangelista pretende ensinar as condições do
discipulado: dar atenção às palavras do Mestre e deixar tudo, para poder lançar
as redes em águas profundas. Mas, como sempre, o texto evangélico nos
questiona, 1) quais seriam as águas profundas para as quais o Senhor, hoje, nos
envia? 2) Tenho sido atento à Palavra do Senhor, ou prefiro meus próprios
esquemas e mecanismos?
Pe.
João Paulo Sillio.
Santuário
São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP
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