sábado, 12 de fevereiro de 2022

REFLEXÃO PARA O VI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 6,17.20-26

 



A narrativa deste sexto domingo do tempo comum apresenta o sermão da planície em Lucas, que é introduzido pelas Bem-aventuranças, seguidas dos “ais”, as invectivas ou lamentações (advertências). As bem-aventuranças encontram suas raízes na literatura sapiencial, onde predomina o elogio à pessoa justa, a qual segue retamente os caminhos do Senhor. Elas são reconhecidas como a síntese do programa de vida de Jesus, como também seu verdadeiro autorretrato. Já as lamentações são inspiradas na literatura profética. É uma forma de denúncia e reprovação do comportamento de quem cometia injustiças e praticava um culto superficial.

Os Evangelhos apresentam duas versões das Bem-aventuranças, uma contida em Mateus, com um total de oito, e esta forma lucana mais breve, porém com o acréscimo de quatro maldições, que visam denunciar a incoerência daqueles que se dizem discípulos do Reino e de Jesus. Na versão mateana, elas abrem o assim chamado “Discurso Inaugural”, que e se estende até o capítulo sétimo. Ali, este discurso recebe o nome de Sermão da Montanha. Os dois evangelistas utilizaram uma mesma fonte literária, mas os evangelistas as adaptaram conforme suas intenções teológicas e às necessidades de suas respectivas comunidades.

No entanto, diferentemente de Mateus, Lucas prefere Sermão (ou discurso) da Planície. Como dissemos acima, o evangelista dispôs as sentenças de Jesus de acordo com as necessidades de sua comunidade. O que está por detrás deste nome? Justamente uma das finalidades ou temáticas que o terceiro evangelho aborda e explicita: a temática da misericórdia e a da universalidade da salvação. O Evangelho de Lucas é conhecido pelo tema da misericórdia e da abertura da salvação a todos, sem distinção.

Ora, o sermão (ou discurso) se dá na planície, justamente para que o ensino e a pessoa de Jesus pudessem ser acessíveis a todos! Paralíticos, coxos, cegos, e enfermos de toda a sorte não poderiam, segundo a perspectiva lucana, aproximar-se de um lugar elevado. Por isso, o evangelista informa que depois de orar, Jesus desceu da montanha para um lugar plano, e começou a ensinar. A atitude de descer da montanha mostra precisamente a condescendência, o amor e a misericórdia de Deus em Jesus para com a humanidade sofredora, os pobres, enfermos, excluídos; com a gente simples que havia ficado de fora da vivência da fé, por parte das lideranças religiosas daquele tempo inclusive. O Jesus de Lucas é um homem orante. Do começo ao fim de seu evangelho tratará de mostrá-lo em sintonia com o Deus que chama de Pai. Isso significa que o conteúdo do ensinamento de Jesus, bem como sua atitude de descer da montanha e ir ao encontro das pessoas, colocando-se em meio a elas corresponde ao querer do Pai, discernido por Jesus na oração.

O texto de Lc 6,17.20-26 deve ser lido ainda em retrospectiva ao episódio programático da sinagoga de Nazaré (4,16), uma vez que nesta planície, o anúncio da Boa Nova aos pobres também está sendo realizado por Jesus. Literariamente, o texto se desdobra em termos que estão no mesmo campo temático: de pobres, passa para famintos, desdobrando-se para aflitos, até chegar em perseguidos. Estes termos pertencem ao campo semântico dos pobres. 

Se faz necessário compreender esta categoria ao interno do Evangelho de Lucas. São categorias e situações concretas: famintos, aflitos, perseguidos. Isto é, as pessoas que estão embaixo, que dependem dos outros, segundo o sentido originário do termo bíblico anawim, os pobres da terra (pobres de YHWH); os quais são privados de segurança material e social. Já os profetas tinham anunciado a eles a intervenção eficaz de Deus (cf. Is 49,9.13). Os salmistas tinham dado uma voz à massa anônima de oprimidos, aos pobres da terra, pisoteados pelos poderosos (cf. SI 113,7-8; 107,41; 72,2-4.12-14). Agora, como no discurso programático da sinagoga de Nazaré, Jesus diz que chegou o tempo esperado pelos pobres. A esperança e a expectativa deles não foi iludida; Deus está aqui, e agora ele intervém em seu favor. Por isso, eles são “bem-aventur
ados”, felizes.

Não devido à sua condição social precária, mas porque Deus toma a defesa dos pobres, faz justiça a quem está privado dela, oferece uma esperança e um futuro a quem se acha sem futuro e sem esperança a partir da atuação de Jesus. E isto, não porque são melhores que os ricos, mas porque Deus é justo e fiel e, por isso, imerge nas situações da história humana, para fazer saírem delas.

Ora, as bem-aventuranças são a proclamação da subversão dos valores e das situações históricas, iniciadas pela ação salvífica de Deus agora em Jesus. Com efeito são, também, um convite urgente dirigido à comunidade dos discípulos para que se confronte com a alternativa proposta por Jesus: ou com os “pobres” para o reino de Deus, ou com os ricos na ilusão que leva à falência e à projetos, sistemas e situações de morte, contrárias ao projeto de Deus. Depois das bem-aventuranças, não há mais lugar para uma neutralidade ou uma falsa consciência cristã, em face dos ricos e dos pobres.

Nesse sentido, as lamentações introduzidas no texto pelos “ais”, que pertencem ao gênero literário muito presente no AT, na pregação dos profetas, as invectivas. Os “ais” dirigidos aos ricos não são um augúrio abstrato de ruína, nem um juízo para os ricos, mas uma declaração que ao mesmo tempo tem os tons de lamentação e de convite à conversão ou mudança radical. Mas, na intenção de Jesus, são sobretudo uma admoestação para a comunidade cristã a não cair na ilusão e tentação do sucesso fácil e do prestígio (6,26).

Na redação de Lc, os destinatários das bem-aventuranças são os discípulos. Eles partilham a condição dos pobres, porque se expuseram à insegurança e à marginalização social, por serem fiéis ao Filho do Homem, o profeta perseguido como todos os que o precederam (cf. 11,47-51; 13,33-34). Na quarta bem-aventurança (6,22-23), ouve-se o eco das palavras de Jesus sobre a sorte do discípulo que participa do destino do Filho do Homem, representante de todos os perseguidos da história (cf. 9,23-26). Mas a palavra de Jesus se torna atual na vida concreta da comunidade cristã, que experimenta a perseguição e a enfrenta com a audácia e a esperança que brotam da morte e ressurreição de Jesus (cf. At 5,41)

Portanto, nas bem-aventuranças Jesus não abençoa nem consagra a situação dos pobres, dos famintos ou dos aflitos como condição ideal para acolher o reino de Deus, porque seria o mesmo que consagrar a injustiça e a prepotência humana, Não: os pobres são “felizes” porque o reino de Deus pertence a eles, porque enfim a condição de dependência, que os torna famintos e aflitos acabará. Jesus não promete aos pobres torná-los ricos; isso criaria outras multidões de pobres, trocando simplesmente os protagonistas da injustiça e da opressão. Ele promete o “Reino de Deus”, que é a subversão radical da situação presente, geradora de pobreza, dependência e dor.

O evangelho deste domingo funciona como uma advertência e convite para a comunidade e para os discípulos de todos os tempos a não se permitirem estar na contramão do projeto de Deus que se revela em Jesus; para que ela não reproduza os mesmos sistemas de morte que geram ainda mais submissão, dependência e opressão; não caia na indiferença típica dos detentores do poder; ou do sucesso fácil e do prestígio. O discípulo e a comunidade devem ser aqueles que optam fundamentalmente por Cristo e preferencialmente pelos pobres, e colocar-se ao lado deles e retirá-los da condição da pobreza e da marginalização.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário