sábado, 24 de abril de 2021

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 10,11-18:

 


A liturgia deste quarto domingo do tempo pascal retoma a leitura do evangelho joanino. O texto proposto é a alegoria do pastor, retirado dos versículos de 11-18 do capítulo décimo. O texto rico e denso. Por isso, se faz necessário contextualizar Jo 10, bem como fazer emergir o pano de fundo do Antigo Testamento inerente a ele.

O capítulo décimo do Quarto Evangelho apresenta a temática do pastoreio. Este tema era muito presente na vida do povo de Deus. É importante, primeiramente, saber que o rebanho/ovelha é um símbolo aplicado à Israel. Já a imagem do pastor era atribuída ao próprio Deus. Mas, no decorrer da história do povo, foi sendo atribuída às suas lideranças, os reis e sacerdotes, a alcunha de pastores do povo. Mas, a história mostrou que esta função não foi desempenhada “segundo o coração de Deus (cf. Ez 34)” pelas mesmas lideranças.

O texto, em seu contexto próximo, situa-se imediatamente após o sinal realizado por Jesus devolvendo a visão ao cego de nascença. O Sinal em Jo 9 consiste na revelação de Jesus como o enviado (hbr. siloé) para trazer a Luz para o mundo. O cego de nascença é, ao mesmo tempo, instrumento através do qual Jesus revela a Glória de Deus e metáfora para as lideranças do povo, as quais estavam cegas, recusando conscientemente ver a Luz de Deus que se manifestava em Jesus de Nazaré, e, cegadas, igualmente pelo poder, pelos privilégios e pela mentalidade mundana. Tal é corroborado pela postura destas lideranças judaicas. Ao invés de cuidar e acolher o povo, promovendo-lhe a vida e a dignidade, acabavam expulsando de seu meio a gente simples; aqueles que lhes representavam alguma ameaça (entre estes, os seguidores do Nazareno), ou, porque, simplesmente viviam fora de seus padrões. Sabendo disso, Jesus vai ao encontro do ex-cego (Jo 9,35-37). É para aquelas lideranças que o evangelista estabelece um contraste com Jesus.

O capítulo 34 do profeta Ezequiel serve de pano de fundo para que o evangelista transmita sua catequese para sua comunidade. O profeta denuncia os maus pastores de Israel, os quais apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2). Por isso, Deus tomaria a iniciativa de destituir os maus pastores e cuidaria, ele mesmo, do rebanho (cf. Ez 34,11).

O texto inicia-se a partir do v.11, com uma declaração importante de Jesus: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas”. Na intenção de estabelecer uma distinção entre Jesus e os líderes do povo, os fariseus e sacerdotes, o evangelista recupera esta declaração solene de Jesus, que pode ser traduzida literalmente assim “O pastor exemplar sou eu”. A expressão “Eu sou” (gr. Ἐγώ εἰμι – egô eimí) recorda a condição divina de Jesus, pois essa é a fórmula que chamamos de revelação. Por exemplo, Deus tinha se revelado a Moisés desse modo (cf. Ex 3,14). O evangelista João a emprega somente à Jesus, em sua obra. Assim, ele afirma que Jesus possui a identidade libertadora de Deus, e é a libertação e vida plena que ele está oferecendo, ao revelar-se como pastor autêntico. Nesse sentido, é importante compreender o adjetivo utilizado pelo autor, no original grego. Ele não utiliza o termo “bom”, mas “belo (gr. καλός / kalós)”, exemplar, nobre, valente.

A intenção de João é a de indicar e reavivar o horizonte de sua comunidade, e para aqueles que estão iniciando-se na fé, que Jesus é o protótipo do pastor. É o pastor exemplar, aquele que empenha sua vida pelas ovelhas. Ao contrário do simples assalariado, que foge quando se apresenta um perigo ou ameaça. Assalariado (gr. μισθωτός / misthotos) é o termo mais apropriado que “mercenário”. Havia um costume na sociedade do tempo de Jesus de se terceirizar a supervisão do rebanho, contratando e pagando uma diária a alguém, para que cuidasse do rebanho durante a noite. Ora, o assalariado foge porque verdadeiramente não está comprometido com o bem e com o cuidado das ovelhas, e sim com sua vida e próprio bem-estar; não se sente afetiva e efetivamente ligado a elas, mas ao lucro que pode vir através delas. Aqui, representa a hierarquia religiosa de Jerusalém.

Jesus chega ao ponto alto de sua crítica à hierarquia religiosa de Jerusalém. Aos sacerdotes do templo, não importava a situação do povo, eles pensavam apenas nas ofertas que recebiam. O lobo é imagem das forças de morte, exploração e injustiça que ameaçam a comunidade e a humanidade de um modo geral. Nesse contexto específico, representa o império romano. Ao invés de combatê-lo, a religião comandada por mercenários prefere aliar-se ou fugir dele. No caso da religião praticada no tempo de Jesus na Palestina, havia conivência e conveniência entre as autoridades religiosas e o império romano, de modo que mercenário e lobo conviviam muito bem, espoliando as pobres ovelhas de Israel. É importante recordar que as denúncias de Jesus às estruturas da sua época são válidas para todos os tempos (CORNELIO, F, Homilia dominical in.porcausadeumcertoreino.blgospot.br)

Esta é a imagem que o Jesus de João se serve para colocar-se como contraponto. O catequista autor do Quarto Evangelho gosta da técnica do contraste: precisamente nesse sentido é que Jesus se declara como pastor ideal e exemplar. Ele possui uma relação e um vínculo estreitos com seu discípulo. A tal ponto de colocar a sua vida em relação à do discípulo, da ovelha. “Eu conheço minhas ovelhas e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu empenho minha vida (lit.: dou/ponho minha alma) pelas ovelhas (do Pai!)” (v.14-15). Entre Jesus e os seus discípulos existe uma comunhão que se fundamenta na comunhão existente com o Pai. Por causa dessa comunhão, ele põe sua vida em jogo por suas ovelhas (vv. 17-18). Essa comunhão é uma comunhão de vida e de amor. O conhecer do qual Jesus se refere não é um ato epistemológico, mas a capacidade de se estabelecer uma relação intima e pessoal com o outro. A intimidade de Jesus com as suas ovelhas é atestada pela sua capacidade de amar até as últimas consequências da doação da própria vida.

Um questionamento importante que o texto nos faz: como as ovelhas podem conhecer o seu pastor, ou, de outro modo, como o discípulo pode fazer a experiência pessoal com Jesus? Umas das características fundamentais do pastor exemplar, o qual Jesus revela ser é a proximidade e intimidade entre Ele e o discípulo. Nisso João é muito feliz ao descrever Jesus como pastor. Na perspectiva do evangelista, o pastor não carrega ninguém ao colo. Ao contrário, Ele caminha a frente e junto de suas ovelhas. É um pastor que aponta caminhos e que os percorre juntamente com elas. O discípulo que assimila e percorre o caminho que Jesus faz consegue assimilar o sentido salvífico que a vida dele possui, e vai se tornando capaz de assumir como modelo exemplar para sua vida e seu discipulado, a vida do mesmo Senhor.

O pastor-modelo não se ocupa somente com os que vêm de perto, os de casa, o grupo estabelecido. “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir; escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (v.16). Quem são estas ovelhas das quais Jesus fala? Devemos unir os horizontes do tempo narrado, os anos 30 da vida e ministério públicos de Jesus, com os anos 90 d.C da vida da comunidade joanina. As ovelhas que são de outro rebanho correspondem mais aos horizontes do tempo da comunidade e muito provavelmente seriam os samaritanos (primeiro grupo a acolher a fé em Jesus, após sua ressurreição) e aos greco-romanos provindos do paganismo. Esta fusão de horizontes permite retirar a mensagem para o hoje da comunidade: a comunidade que se diz seguidora de Jesus não pode pensar somente em si mesma e orientar as suas ações para seu próprio umbigo. Se ela assimilou a exemplaridade da vida e da obra do Pastor ideal que é o Cristo, deverá ela também se tornar uma comunidade em pastoreio, sendo doadora e promotora da vida Ele doa. Não basta ocupar-se com os que moram em torno da igreja matriz; com os que estão próximos; com aqueles que “pensam como nós”.

“Ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo; tenho poder de entregá-la e tenho poder de recebê-la novamente; esta é a ordem que recebi do meu Pai” (v.18). Jesus dá a sua vida e por isso pode retomá-la. Todavia é preciso compreender o sentido da expressão “para que” (gr. ἵνα / hina), no grego de João. É preferível traduzi-la por “de sorte que”. Ou seja, Jesus pode retomar a vida de que ele doa, pois ninguém a tira dele contra sua vontade. Ele empenha sua vida porque quer, soberanamente, assim como ele pode retomá-la (pois ele tem poder sobre a vida, cf. Jo 5,26). É o que acontece na ressurreição. Esse é o mandato (lit. “mandamento”), o encargo que recebeu do Pai: amar, a ponto de dar a própria vida de forma livre e gratuita.

Se o discípulo quiser, verdadeiramente, fazer a experiência com Jesus, deverá colocar-se no seguimento a Sua pessoa e no assimilar a exemplaridade de sua vida.

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

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