“Se Jesus ressuscitou, verdadeiramente,
onde se pode fazer experiência com ele?” Essa era a pergunta das comunidades
cristãs e das gerações seguintes dos seguidores de Jesus. O texto deste
terceiro domingo do tempo pascal, retirado da catequese de Lucas – Lc 24,38-45 –
trata de responder a essa pergunta da comunidade de seu tempo, e às duvidas e
questionamentos sempre presentes e atuais da comunidade cristã, hoje.
O texto proposto para a liturgia deste domingo pascal situa-se no capítulo vinte e quatro do Evangelho segundo Lucas. No plano temporal-cronológico, o leitor e a comunidade estão fazendo a experiência daquele “primeiro dia” da semana. A narrativa situa-se imediatamente após a passagem conhecida do encontro com o Jesus Ressuscitado, em Emaús. É importante que sempre se tenha presente que esses relatos evangélicos de Jesus ressuscitado não pretende narrar uma aparição, tampouco pretende ser uma crônica de fatos.
Os relatos do N.T que narram Jesus ressuscitado descrevem um encontro, e não uma aparição. Encontro, porque a iniciativa de manifestar-se aos discípulos parte totalmente do Senhor. Ele lhes vem ao encontro. Não se trata de uma insistência da comunidade, porque ela está desbaratada, frustrada e desorientada pelos acontecimentos das horas e dos dias anteriores: a morte trágica do mestre, que, conforme pensavam, seria um profeta poderoso em obras e palavras e que fosse restaurar a realeza davídica. Por isso, por exemplo, os discípulos se dirigem frustrados para Emaús, direção oposta de Jerusalém. Vão na contramão da proposta de Jesus.
Do contexto próximo da passagem dos discípulos de Emaús – Lc 24,13-35 – é que o texto de hoje parte. “os dois discípulos contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão” (v. 35). O evangelista começa a dar as pistas para o reconhecimento do ressuscitado e para a oportunidade de se fazer a experiência com Ele e com o sentido de sua vida. Eles falam sobre Jesus. O falar a respeito do Senhor já é uma forma de se fazer e atualizar sua presença em meio. Porém, eles relatam uma experiência: reconheceram-no ao partir do pão, quando estavam à mesa com Ele. O partir do pão – estar à mesa – tem dois significados muito profundos e importantes.
O primeiro está na cotidianidade do gesto. Trata-se de um gesto simples, mas, ao mesmo tempo vital. O evangelista pretende acenar para a sua comunidade que busca pistas para encontrar-se com Jesus que, este encontro se dá na simplicidade e no cotidiano dos gestos familiares, relacionais. Outro significado profundo do partir do pão – do sentar-se à mesa – reside na importância desta ocasião. Para o povo de Jesus, a refeição era o lugar privilegiado para se fazer uma experiência de comunhão e de partilha da vida. Ora, falar de Jesus e “partir o pão” se tornam as vias seguras para se fazer uma experiência genuína de vida com Ele. Mas, no partir do pão não se deve fixar somente um rito repetível, mas no sentido para o qual esse rito aponta: a partilha e a entrega da vida como dom e serviço aos irmãos e aos mais necessitados. Quando a comunidade partilha – vive do sentido da vida de Jesus – e fala do Senhor, ela vive a mesma vida Dele.
“Ainda estavam falando quando o próprio Jesus apareceu no meio deles e lhes disse: “A paz esteja convosco!” (v. 36). Lucas, assim como João, relatam a experiência com Jesus Ressuscitado de forma muito hábil. Jesus se põe ao centro dos discípulos. O evangelista quer ensinar para a sua comunidade que se ela deseja, de fato, fazer a experiência com Jesus, ela deve tê-lo como o centro de sua vida; estar toda ela referenciada à Ele.
A saudação de Jesus deve ser compreendida de modo mais profundo. Ela não é uma mera saudação. A paz – hbr. Shalom – representa a plenitude da benção que se inaugura com o tempo da manifestação do Messias, segundo a compreensão do povo de Israel. Ele deveria vir glorioso, poderoso e com a espada nas mãos para dominar os inimigos e os opressores do povo. Na verdade, seria mais uma forma de dominação e de opressão, uma paz assegurada pela força e pela guerra. Não é essa paz que Jesus oferece. Não é esse o modelo de Messias que Jesus vive a partir de sua vida. Seu messianismo é vivido através da entrega, do amor e do serviço; é um messias crucificado que garante uma paz reconciliadora e promotora de vida. Trata-se de uma paz inquieta, que não tranquiliza, mas vence o medo e fortalece a busca pela realização plena do Reino de Deus. Ela rompe com o medo, que faz distorcer a imagem do Ressuscitado no meio da comunidade. Se os discípulos e a comunidade vivem do medo, ela pode distorcer a compreensão da pessoa de Jesus. Ambos possuem a tentação de confundir a Jesus como um fantasma ou um juiz vingativo, quando não absorvem a Sua paz e nem compreende as Escrituras.
Jesus ressuscitado mostra as mãos e os pés. Ora, Lucas escreve para um público helenizado, os quais exigiam, muitas vezes, provas racionais. Por isso, narra Jesus comendo também. Mas a insistência de se mostrar as mãos e os pés, ambos marcados pelos pregos, revelam a intenção do evangelista: afirmar que aquele Jesus de Nazaré, que foi ferido, crucificado e morto é o ressuscitado! O ressuscitado traz consigo as marcas da paixão. Existe uma continuidade e uma novidade na história e na existência desse Jesus. Se os discípulos querem fazer uma experiência autêntica com Jesus deverão aceitar que ele é também o crucificado. Não existe ressurreição sem cruz. Não há sentido na cruz sem a última e definitiva palavra-resposta de Deus Pai à vida do seu Filho, a ressurreição.
Dos vv. 44-48, Lucas realiza o desfecho da cena e revela a função do texto para a comunidade. No encontro com o Ressuscitado não podem faltar refeição e catequese, partilha do pão e da palavra; esses elementos são imprescindíveis na comunidade cristã. Por isso, são os componentes básicos da celebração eucarística. Nesse episódio, há uma inversão na ordem: enquanto na cena dos “Discípulos de Emaús” a catequese precedeu à partilha do pão, aqui acontece o contrário, ou seja, a catequese vem depois da refeição. Assim, podemos concluir que o evangelista não preconiza um rito, mas ensina à comunidade quais são os seus elementos essenciais: a partilha do pão e da Palavra. A interpretação e compreensão adequadas das Escrituras são essenciais para a vida da comunidade. Essa é uma das principais preocupações de Lucas, ao longo de sua dupla obra (Evangelho segundo Lucas e Atos dos Apóstolos). Jesus é o intérprete e princípio interpretativo de toda a Escritura, ou seja, a Bíblia. A Lucas, diferente de Mateus, por exemplo, não interessa colher citações avulsas, mas a Escritura em seu conjunto: Lei, Profetas e Salmos (v. 44); tudo isso aponta para Jesus e deve ser lido à luz da sua vida, morte e ressurreição. Desde o princípio, a Palavra de Deus revelada nas Escrituras aponta para o triunfo da vida e a derrocada de todos os projetos de morte. A ressurreição de Jesus é o ponto culminante dessa trajetória. Sem a Palavra, a comunidade perde o rumo da história. As Escrituras, se bem compreendidas, abre mentes, olhos e horizontes, fazem parte do processo de conversão contínuo pelo qual deve passar toda comunidade cristã. Por outro lado, sem abertura de mente, pode tornar-se também instrumento de morte (CORNELIO, F, Reflexão dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
Lucas quer acenar para o fato de que o Ressuscitado pode ser encontrado em qualquer situação, em qualquer espaço e em qualquer época: ele está na estrada, caminhando com os peregrinos desiludidos (Lc 24,13-35), está na mesa durante as refeições, quando o alimento é partilhado, está no meio da comunidade reunida e nas pessoas necessitadas, principalmente as famintas e feridas, com chagas expostas para serem cuidadas. Porém, para reconhecê-lo, é necessário compreender as Escrituras e ter abertos os olhos, a mente e o coração.
Quando o discípulo realiza o caminho da vida doada e partilhada, através do “partir do pão” com os necessitados, e realiza a compreensão das escrituras, ela torna, portanto, testemunha. Ser testemunha implica a coragem de dar a vida. Significa assimilar o sentido da vida de Jesus e irradiá-la com a própria vida. Viver a mesma vida do Filho de Deus.
O texto nos questiona. Em que momento da nossa experiência com Jesus estamos? Ele tem ocupado o centro e o fundamento de nossas opções, de nossa vida e de nossa comunidade? Temos assimilado o seu gesto de partir o pão – partilhar da própria vida para que outros tenham vida? Palavra tem ocupado a centralidade na minha vida e iluminado o meu agir?
Pe. João Paulo Sillio.
Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré
/ Arquidiocese de Botucatu-SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário