O evangelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito, e apresenta para o seu leitor um verdadeiro itinerário catequético para o fiel discípulo. Por ser um “genuíno” manual de catequese, o Evangelho de Marcos apresenta como ponto nuclear o anúncio da fé cristã: Jesus crucificado, o Cristo de Nazaré, foi ressuscitado. Esta afirmação encontra-se na confissão de fé proferida pelo soldado romano junto à cruz: “De fato, este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39).
O texto proposto para esta noite santa é o final da catequese de Marcos. “Quando passou o sábado, Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago, e Salomé, compraram perfumes para ungir o corpo de Jesus” (v.1). Passadas as horas dolorosas [e traumáticas] da paixão e da morte de Jesus, algumas mulheres vão até o lugar onde haviam-lhe sepultado. São elas: Maria Madalena, Maria de Tiago e Salomé. Pretendem continuar os preparativos do cadáver, que tiveram que ser interrompidos devido ao início do sábado. O evangelista faz questão de salientar a indicação temporal (cronologia): trata-se do primeiro dia da semana, ao nascer do sol (cf. v.2). Já não se trata mais da noite (escuridão) da paixão, nem da tarde envolvida em trevas na morte. Mas, um dia novo. O dado cronológico inserido por Marcos explicita que uma novidade aconteceu. Uma nova realidade. Um novo horizonte que se descortina.
“E diziam entre si: Quem rolará para nós a pedra da entrada do túmulo?” (v.3). No entanto, ao dirigirem o olhar para entrada do sepulcro, notam que a pedra havia sido removida. Marcos não nos informa quem o fizera, mas o leitor-discípulo deverá levar em conta que isso não poderia ter sido feito por “mãos humanas” (Mc 14,58). Contudo, essa imagem pode parecer pouca coisa para os olhos acostumados aos grandes sinais e gestos maravilhosos e extraordinários realizados por Jesus durante a sua vida. O que elas veem, num primeiro momento, não é uma experiência que se possa descrever como um grande prodígio. Entretanto, todo o Evangelho de Jesus (e sobre Jesus) só pode ser compreendido através da luz que se desprende desta cena. Toda a vida de Jesus, bem como a experiência da comunidade (com Ele) só pode ser compreendida à luz do mistério da ressurreição. A ressurreição é a vida de Jesus passada a limpo.
Uma consideração importante: não era preocupação dos evangelistas e das primeiras comunidades cristãs descreverem a ressurreição, nos mínimos detalhes, como que numa crônica jornalística. Perguntar-se como, onde, que horas foi a ressurreição, ou se ela aconteceu dentro ou fora do sepulcro, definitivamente, não estava na pauta, nem nos objetivos dos autores sagrados, tampouco das gerações subsequentes.
O que as mulheres veem ao chegare ao túmulo? A entrada do túmulo estava aberta. Na mentalidade do povo de Israel, o tumulo simbolizava a morada dos mortos, o Sheol, o abismo da morte. As portas da morte foram rompidas!
“Entraram, então, no túmulo e viram um jovem, sentado do lado direito, vestido de branco. E ficaram muito assustadas” (v.5). Marcos, para narrar a experiência das mulheres, serve-se da linguagem simbólica do Antigo testamento, fazendo uso do gênero literário dos anúncios. Um jovem aparece. Ele está vestido de branco. A veste branca é símbolo do mundo divino. Este personagem assenta-se a direita, o que revela uma posição de dignidade. Em seguida, a reação de medo (inquietação e incompreensão) das mulheres dá o colorido ao gênero literário, bem como o encorajamento do mensageiro divino. Mas qual a função deste cenário pintado pelo gênero de anúncio?
A função é a da indicar a origem da mensagem pascal: Ela é uma revelação de Deus, e não fruto da descoberta ou do delírio humano. Uma revelação que se prolonga através das confissões de fé das comunidades cristãs, que proclamam a Jesus ressuscitado. “Mas o jovem lhes disse: Não vos assusteis! Vós procurais Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele ressuscitou. Não está aqui. Vede o lugar onde o puseram”. As palavras do mensageiro refletem o anúncio das comunidades cristã (Querígma): Jesus de Nazaré, o Crucificado, foi ressuscitado (por Deus)! O mensageiro as convida a uma atitude, “vede”. O verbo “ver” não representa na teologia bíblica somente a capacidade biológica-física de enxergar. “Ver” significa começar a fazer uma experiência. As mulheres são convidadas a entrar numa experiência com aquela novidade que ali aconteceu.
O texto litúrgico, que serve de base para a celebração e meditação, infelizmente coloca a fala do mensageiro celestial na voz ativa, ao dizer que “Jesus ressuscitou”. Porém, o verbo Egheiro (gr. ἐγείρω), utilizado por Marcos no original em grego está na voz passiva: “Foi ressuscitado (gr. ἠγέρθη /eigerthe)”. Quando os autores sagrados, principalmente os evangelistas utilizam o verbo na voz passiva, eles querem ensinar que quem realiza aquela ação descrita pelo verbo é Deus (o que chamamos de “Passivum Divinum, ou Theologicum)”. A Ressurreição de Jesus é toda ela obra de Deus, que se revela vencedor da morte e salvador naquele homem concreto, o crucificado. Agora ele foi ressuscitado, é o vivente; é inútil buscá-lo entre os mortos. O túmulo não o manteve prisioneiro. Porém, na intenção do evangelista, o tumulo aberto e vazio se torna um sinal!
Entenda-se bem! O túmulo vazio não é uma prova da ressurreição, mas apenas um indício para os que creem. Não consiste numa prova, porque só Deus pode revelar esta verdade a quem ele encontrar disponível para acolher sua ação escatológica e salvífica em Jesus de Nazaré. Com efeito, o sepulcro vazio de Jerusalém torna-se o indicativo do acontecimento de uma novidade no âmbito das experiências mundanas e humanas. Algo totalmente novo aconteceu na história, através do acontecido com Jesus de Nazaré.
A ultimidade (ou a novidade) deste acontecido foi confiada às mulheres, para que elas a anunciasse. A elas, que eram figuras e personagens nem um pouco credíveis. Não tinham voz ativa na sociedade de seu tempo. Graças à força renovadora e ressignificadora da Ressurreição de Jesus, o anúncio do anjo sobre o sepulcro vazio as transforma nas primeiras testemunhas do ressuscitado. São tornadas apóstolas da ressurreição: “Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele irá à vossa frente, na Galiléia. Lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito” (v.7). As mulheres serão responsáveis por reorientar a vida dos discípulos para reencontrem o seu Pastor, na Galileia, o nascedouro do ministério e da missão de Jesus, bem como o lugar do nascimento das primeiras comunidades.
O “preceder” de Jesus, como mostra bem o contexto de Mc 14,27-28, é a atitude do pastor que vai à frente do rebanho para o conduzir. Será na Galileia que Jesus reconstituirá o seu rebanho dispersado pelos acontecimentos em Jerusalém. Ver o ressuscitado na Galileia, terra onde nasceu a missão e o ministério de Jesus, torna-se a possibilidade de compreendê-lo plenamente. Deslocar-se para lá significa dar as costas à Jerusalém (símbolo do poder, da dominação, da falsa imagem e experiência de Deus) e dirigir-se aos gentios, aos pagãos. Aqueles que se encontram nas margens da história e da vida.
Voltar para a Galileia torna-se um convite para renovar a vida, ressignificar as perspectivas. Refazer os caminhos através da memória (atualizadora) da vida de Jesus Ressuscitado. O encontro com o ressuscitado não acontece entre os túmulos, tampouco num presente endurecido que cheira a passado distante e saudoso. Mas na novidade de um futuro que se desponta. Memória não significa passado! Mas releitura e ressignificação do presente, do hoje.
A força da ressurreição é ressignificadora: ela ressignificou a condição das mulheres, constantemente humilhadas e desvalorizadas em testemunhas e anunciadoras da Revelação Divina da Ressurreição. Ressignifica, igualmente, os horizontes da existência e da experiencia humana. Toda a História da Salvação, que é também humana, é ressignificada – recriada – através da Ressurreição de Jesus. Contudo, se faz necessário deslocar-se para lá, a Galileia do início visando um recomeçar e uma ressignificação da vida, da história, da realidade
Diante do espelho do texto, perguntemo-nos: 1) Quais realidades da vida e da história humana precisam ser tocadas pela ressurreição de Jesus? 2) Quais horizontes precisam ser ressignificados em minha história pessoal, e na dinâmica de meu discipulado à Jesus de Nazaré? 3) Voltar para a Galileia, significa voltar para onde tudo começou, por isso, temos a coragem de retornar às nossas origens (com tudo o que este retorno acarreta)?
Não tenhamos medo! Ele refaz conosco este processo! Ele nos precede até lá! Tomemos o caminho de retorno à Galileia da nossa experiência discipular com o Senhor, mediante a força de sua ressurreição.
Pe. João Paulo Sillio.
Pároco da paróquia São Judas Tadeu, Avaré-SP
/ Arquidiocese de Botucatu-SP.
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