sábado, 10 de abril de 2021

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 20,19-31:


A oitava pascal se concluiu – o grande domingo da Ressurreição do Senhor. E a narrativa proposta pela liturgia para a nossa meditação é tomada da conclusão original do Quarto Evangelho, Jo 20,19-31 (uma vez que o vigésimo primeiro capítulo do Evangelho segundo João é um apêndice, o qual possui sua finalidade que ainda não cabe comentar). O texto deste Segundo domingo do tempo pascal continua a leitura do capítulo vigésimo, omitindo apenas o encontro de Maria Madalena com Jesus Ressuscitado.

Nesta seção o leitor-discípulo é convidado a tomar parte da experiência da comunidade dos discípulos com Jesus ressuscitado. Não se trata de aparições, propriamente, mas de Encontros com o Crucificado-Ressuscitado. É evidente, que para aquelas testemunhas oculares não se constituiu tarefa fácil encarar as horas e os dias seguintes ao “acontecido” com Jesus de Nazaré. Por isso, o fiel e leitor do Quarto Evangelho, ou melhor, a geração posterior (na qual somos incluídos), deverá colocar-se no mesmo horizonte daquelas testemunhas oculares. Caberá a esta geração “Crer sem ver”, e por isso ser considerados o bem-aventurados. Para João, morte e ressurreição não são realidades estanques, mas dois aspectos inseparáveis da mesma realidade, a glorificação de Jesus.

João situa o leitor no tempo e no espaço, “Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores. O primeiro dia. Mas a variação temporal revela que a comunidade dos discípulos já deu passos significativos: saiu da escuridão da “madrugada” daquele primeiro dia; da escuridão da incompreensão dos acontecimentos da primeira hora da ressurreição. A partir deste novo indicativo temporal, João dá mostras de que a comunidade está despertando de seu sono de morte. Está fazendo, processualmente, a experiência da ressurreição. Sinal, também, de que ela já estava dedicando aquele “primeiro dia” para celebrar a Memória do Senhor Ressuscitado. Ocorre, igualmente, a transição de cenário. O espaço já não é o mesmo; a comunidade dos discípulos não se situa mais no sepulcro, mas noutro espaço, o da própria comunidade. Isto já é um sinal de que ela venceu o sepulcro.

“Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v.1b), mostra que, mesmo a comunidade tendo dado os passos no processo da experiência da ressurreição, ainda estava bloqueada pelo medo. Ora, Na Teologia Bíblica, o Medo é sempre contrário à Fé. Esta condição amedrontada acaba sendo incompatível com o desenlace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). O medo preocupa, impede a missão; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a ausência do Senhor. Todavia, é preciso fundir os horizontes. O leitor é chamado à unir o panorama temporal da comunidade dos discípulos, que fazia a experiência com o ressuscitado com a realidade da comunidade joanina dos anos 90 d.C, que sofria perseguição por parte dos Judeus e das autoridades romanas. 

Eis que Jesus põe-se no meio deles, conforme a narrativa. É importante a informação dada pelo evangelista. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado. Na comunidade do Ressuscitado (e na comunidade joanina) não existe supremacia nem relações piramidais. Ela é uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: Jesus. Encontrando-se com os discípulos (no meio deles), o Ressuscitado realiza neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada.

“A paz esteja convosco (gr. ειρηνη υμιν, Eiréne ymín)”. À primeira vista, isso parece a saudação comum do ambiente bíblico. Mas esta saudação se repete por três vezes, o que indica completude, e, ao mesmo tempo a plenitude do ser humano. O número três, na bíblia indica plenitude. Por isso, esta primeira palavra dirigida por Jesus aos seus possui conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O Shalom (שָׁלוֹם) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (Shelamim), cujo pagamento que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz.  Aqui, parece implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastam com o medo mencionado no início. O Jesus joanino, ao desejar a paz pretende ensinar que através do Dom da vida de Jesus vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada.

Jesus mostra-lhes, então, as mãos e o lado marcados e feridos pelos pregos e pela lança. É intenção de João mostrar a continuidade entre Jesus Crucificado e Ressuscitado. E os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. As mãos são sinais do serviço, do agir, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração.

“Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio” (v. 21). A missão de Jesus estava fundamentada na tarefa recebida do Pai e na Sua fidelidade ao realiza-la; a dos discípulos, na de Jesus. Aqui, encontramos três termos importantes: os verbos apostellein e pempein (enviar, gr. ἀποστέλλω; mas aqui απεσταλκεν (apestalkén), cujo tempo verbal encontra-se no perfeito, que indica ação contínua) e a conjunção kathôs (gr. καθως, como). Os verbos e a conjunção têm a intenção de exprimir semelhança e causalidade, isto é, a missão dos discípulos é continuação daquela que Jesus recebeu do Pai e encontra nela seu modelo e origem.

Ao enviar os discípulos, ele sopra sobre eles o seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. O Gesto de Jesus remete à Criação, e por isso, na Sua ressurreição acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. A ressurreição de Jesus é uma ressignificação na vida da Comunidade dos discípulos.

A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). O Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo; transformar as realidades. O que perdoa os pecados é o amor de Jesus; logo, ficam sem a experiência do perdão, o discípulo que recusa amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade e do discípulo diante do mandamento do amor, e a atitude de negação do fiel em relação à pessoa de Jesus.

A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem. Ora, ele não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilhasse da mesma mentalidade.  Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo, era seu nome. Mas quem seria o seu outro irmão gêmeo? Teríamos um personagem anônimo na narrativa? Os personagens anônimos têm, no Quarto Evangelho (e em toda a Sagrada Escritura), a função de paradigmas – ou de espelhos – para a comunidade e os leitores. Ou seja, eles servem para que os leitores assumam aquela identidade; se identifiquem com ele. Um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a tomarem Tomé como seu gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades.

Tomé não estava com eles porque não tinha medo (oposição da Fé), e, por isso, não se deixou paralisar diante da experiência negativa e, portanto, circulava livremente e sem temor algum. Porém, sua coragem foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo. O seu erro foi o de não aceitar o testemunho da comunidade. Por isso pediu os mesmos privilégios dos dez, ver, e, também, tocar o Senhor.

Oito dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do Ressuscitado), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a executar o gesto que havia pedido como prova. Ele, ao invés de tocar o Senhor formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. O título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18) e cria, assim, uma inclusão que abarca e resume o Evangelho segundo João.

Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, muito questionadores chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado. 

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco de São Judas Tadeu, Avaré-SP / Arquidiocese de Botucatu. 

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