sábado, 23 de dezembro de 2023

IV DOMINGO DO ADVENTO (Ano B) - Lc 1,26-38:


A liturgia do quarto domingo do advento, propõe para a meditação eclesial a narrativa do anúncio divino à Maria, e, nela, à humanidade toda, contido em Lc 1,26-38. A cena é muito densa em toda a sua composição bem como em seu significado. O texto situa-se imediatamente após o anúncio do nascimento de João. Traço característico do terceiro evangelista, é a sua técnica do díptico: narrativas semelhantes com personagens distintos. Se na anterior, apresentou um personagem masculino como protagonista, agora trata de introduzir uma personagem feminina.

A cena muda de personagens e de localização. De Jerusalém, na cena anterior, Lucas direciona seu leitor-discípulo para a depreciada Nazaré. A expressão inicial “Naqueles dias” (v.26) indica não somente um marco temporal, mas uma afirmação teológica: é o dia pleno. Neste dia, informa-nos o evangelista, que o valente de Deus (hbr. Gehber / Gabriel), foi enviado a uma jovem virgem da Galileia. Vale sempre lembrar que o anjo, na tradição bíblica, é símbolo para a ação do próprio Deus.

Por que Lucas informa a respeito da virgindade da personagem? Para mostrar a condição social desta jovem. A virgem não era bem vista na sociedade, pois não havia ainda atraído os olhares dos homens de seu tempo. A virgindade era muito depreciada. A jovem que assim vivesse era considerada arvore seca. A maternidade era o status que garantia prestigio. O evangelista pretende mostrar a precariedade e a insignificância de uma mulher nestas condições. No entanto, assim como Deus olhou para a vergonha da madura Isabel, estéril, impossibilitada de conceber e gerar filhos, olhou para a jovem virgem, que ainda não dera à luz. O catequista deseja ensinar para a sua comunidade que é em meio a estas pessoas, e, através delas, que Deus começa a realizar a sua obra. Que a partir de uma situação de humilhação, de vergonha pública, de precariedade, se realizará o impossível. A jovem estava ainda na primeira fase do casamento, a promissão; não havia passado para as núpcias, a segunda fase. A promessa de casamento, segundo tradição religiosa judaica, já configurava casamento. O autor informa-nos o nome da moça: Maria (lit. “a amada”)

O anúncio começa com uma saudação rica de significado: “Alegra-te, ó amada por Deus”. O convite à alegria messiânica, na verdade é uma ordem. O verbo está no imperativo. Se trata de uma expressão solene que o autor escolheu com muito cuidado. O verbo rôni, no hebraico, é bem conhecido do israelita piedoso, pois ele lembra as promessas de alegria, de bem e de esperança, que os profetas disseram em nome de Deus. O evangelista pretende dizer que, através de Maria, Deus começa cumprir todas as promessas feitas à jovem filha de Sião, desde o A.T.

A expressão “Amada/favorecida por Deus (gr. κεχαριτωμένη / agraciada)”, pode ser entendida dessa maneira: “Alegra-te, ó mulher, que fostes preenchida gratuitamente por Deus, de todos os Seus bens”. Através de Maria, esta declaração é direcionada à Sião e à toda a humanidade. Através dela, a toda humanidade se diz: “és amada por Deus, mesmo que a sua história seja marcada por guerras, violência. Alegra-te, porque o amor de Deus por ti é incondicional, gratuito! O texto transmite a compreensão da graça como favor, misericórdia. Para isso, se pode servir do contexto das relações senhor/servo. Na maioria das vezes, os servos permaneciam inquestionavelmente no seu lugar e na sua função, sem qualquer direito a mudança de situação. Por isso, quando uma pessoa nesta condição encontrava graça diante do seu patrão, era porque o coração daqueles se fazia complacente e favorável.

O versículo pode ser entendido da seguinte maneira: alegra-te, porque Deus se voltou gratuitamente a ti com Sua Graça, e, em ti à toda a humanidade sofredora. Alegra-te, pois, da parte de Deus serás sempre amada, ó humanidade. Em Maria, Deus demonstrou Sua graça, misericórdia e amor à humanidade de graça e não por mérito. O anúncio continua: “O senhor está contigo”. Mais do que um desejo do anjo, é uma garantia Divina para a missão a ser vivenciada, como a todos os profetas do A.T.

O texto lucano mostra (v.29) que ela também fica com um certo temor. O que significa este temor? É o confronto da vida com a Palavra de Deus. Maria, ao escutar a saudação do mensageiro celeste está, na verdade escutando uma palavra sendo dita pelo próprio Deus! Por isso, a perturbação interior, que revela a atitude de questionar-se; de ler e reler a vida diante da Palavra. É a atitude de máxima grandeza, pois toda a vocação dada por Deus deve ser respondida a partir desse confronto consigo mesmo; deve ser consequente e responsável. O anjo a tranquiliza, exortando-a para não ter medo, pois encontrou ela Graça diante de Deus (mais uma vez aparece a palavra Graça-misericórdia).

O conteúdo desta Palavra de Salvação é este: ela conceberá um filho, que será chamado de Jesus (hbr. Ieshua / Deus Salva - salvador). Nele se realizarão todas as promessas dos tempos passados; mais uma maneira de se dizer que esta Boa Nova ultrapassava de longe as expectativas judaicas (2Rs 7). Cumpre-se, em certo sentido, a profecia de Isaías (Is 11,1-9): da raiz de Jessé, pai de Davi, Deus suscitaria um rebento para governar o mundo, não pela espada, mas pelo Espírito. Ele estará cheio do Espírito de YHWH e não julgará pelas aparências, nem pelo ouvir dizer, mas julgará os fracos com justiça e pronunciará uma sentença em favor dos pobres da terra. O menino terá um nome significativo: “O Senhor salva”, Jesus. Como se sabe, o nome diz muito acerca da missão que a pessoa, no mundo bíblico, tem a realizar. Seu nome, além de sua identidade, será sua missão. O mensageiro continua dizendo que “Ele será grande, será Filho do Altíssimo e reconhecido como tal”. Estes dois vocativos convidam o leitor-discípulo a reconhecer no filho de Maria, uma personalidade que assume a vida, o modo de ser e o rosto do próprio Deus. Na linguagem tradicional da Bíblia, o vocábulo “Grande”, em sentido absoluto, refere-se unicamente à Deus.

Maria pede um sinal para ter certeza, assim como Zacarias o fez. E no seu caso isso não é considerado uma afronta ou descrença, pois ela não conhece a José no sentido sexual. Lucas já apresentou Maria numa atitude atenta, reflexiva e pronta para entender o sentido e as consequências da Palavra de Deus. Ora, sua objeção revela a mesma atitude espiritual. O Anjo dirá – introduzindo a segunda parte do anúncio acerca da identidade do filho de Maria – que o Ruah YHWH (Espírito de Deus = dinamismo de vida do próprio Deus) realizará isso. Uma expressão poética, mas que na verdade que dizer muito: uma maneira de se ilustrar a relação íntima do casal. Aplicado à Maria, pretende dizer que a concepção e geração de seu filho será um ato criador do Espírito Deus.  Ele realizará a ação geradora de Jesus no ventre de Maria. Por isso, aquele que nascer será Filho de Deus e não de José. O evangelista quer enfatizar para a sua comunidade que, desde suas origens humanas, Jesus é Filho de Deus. Isso não é questão biológica, mas de pertença e autoridade divina.  E o sinal de que Deus é capaz de muita coisa é aquilo que aconteceu com Elisabeth, que concebeu um filho na velhice: pura graça de Deus.

Então dirá Maria: Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim, segundo a vossa Palavra”. Responde como os grandes personagens chamados a uma missão especial com um solene “eis-me, aqui”. É a total disponibilidade em acolher o projeto de Deus. E, por isso, o sinal da adesão incondicional à vontade de Deus. Depois reconhece-se como serva. E não se pode interpretar o dito a partir da humildade. O texto não permite isso. O termo servo, na tradição bíblica é destinado àquele personagem muito importante. É aquele que colocou toda a sua vida em relação ao projeto de Deus. Seria estranho Maria atribuir a si este título, uma vez que somente aos homens era destinado. No entanto, ela é única mulher que recebe este título. O que acontece, então? Na verdade é a comunidade primitiva que a reconhece como serva, e, que, portanto dá à ela esta dignidade, porque viu como esta mulher soube responder à sua vocação com total disponibilidade. Então, ela declara e confessa: “esta sim é uma serva do Senhor”.

O seu “faça-se” (gr. γένοιτό/ gênoito), verbo forte, deseja expressar justamente isso, o desejo alegre que isso aconteça o mais rápido possível. Maria dá o consentimento à Palavra de Deus, aderindo a ela transformadora e performativa; e se torna a servidora desta Palavra já assumida. Só então tem sentido o que virá a seguir: partir para junto de sua prima para servi-la. Ao se tornar serva da Palavra encarnada, ela se torna serva dos mais debilitados, dos excluídos, dos envergonhados. Encarna em disposições concretas o serviço a Deus, prestando sua ajuda à sua prima, que, como ela, é também imagem dos sofredores desta história.

No evangelho segundo Lucas, o modelo para o discípulo do Reino é Maria, porque ela conserva em si as virtudes características do discipulado: Ouvir a Palavra de Deus; acolher esta Palavra de vida e Salvação; e realizar (cumprir / frutificar) a Palavra de Deus através da vida colocada em doação e serviço aos homens e mulheres de todos os tempos, lugares e condições. Ao escutar, acolher (ruminar/confrontar) e realizar a Palavra de Deus, Maria vai tecendo em seu ser Jesus-Palavra. Através dela, Deus se coloca ao lado dos excluídos, dos fracos, dos marginalizados; dos que não tem voz; dos despossuídos; das minorias.

Neste tempo do advento, qual vem sendo a atitude diante da Palavra que Deus dirige também a nós, como fez à Maria? Também a nós Deus dirige seu favor, chamando-nos de agraciados. Qual vem sendo nossa resposta? Nossa vida e missão tem sido um frutificar da Palavra de Deus? Ao lado de quem nos colocamos, enquanto discípulos e discípulas do Reino? Que neste quarto domingo do advento, o Deus e Pai de Jesus Cristo possa encontrar em nossas vidas o mesmo espaço que Ele encontrou na jovem de Nazaré para o acontecimento de seu querer.

 

Pe. João Paulo Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

 

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