A liturgia deste dia santo, propõe para a nossa meditação
Jo 1,1-18, a abertura do Quarto Evangelho, que recebe o nome de Prólogo. Qual a
função dele? Ele serve, literariamente, como introdução e apresentação de uma
obra. Nele, são tratados, de forma objetiva, os temas que serão desenvolvidos
durante a leitura do livro, e as linhas de interpretação que poderão ajudar na
compreensão do texto. Aplicando tudo isso ao Evangelho de João, esta solene abertura
apresentará os temas e as ideias-chaves a serem trabalhadas pelo evangelista no
decorrer de sua catequese. É bem possível que, na história da composição e da redação
deste evangelho, os dezoito versículos deste primeiro capítulo tenham sido
redigidos por último, quando o escrito já estava pronto.
Antes de meditá-lo, se faz necessário apresentar um
pouco o evangelho de João. Ele foi redigido, por volta dos anos 90 do Sec. I.
Provavelmente em Éfeso, por um discípulo identificado como João, a quem a
tradição do primeiro século identifica como um dos apóstolos do Senhor. O texto
começa a ser escrito depois de sessenta anos da Ressurreição de Cristo. Por que
e para quem João escreve sua catequese?
A comunidade joanina dos anos 90, como a maioria das
outras comunidades cristãs estão sofrendo a perseguição dos judeus e dos
romanos. Da parte dos judeus, devido a dois motivos: 1) a fé em Jesus de
Nazaré, confessado por seus discípulos como Senhor e Cristo. Para os judeus de
Jerusalém isso era inaceitável, pois um crucificado não poderia ser o Messias
esperado. Na concepção religiosa de Israel o Cristo não poderia morrer. Se este
Jesus morreu – na forma mais vergonhosa – então não poderia ser quem eles
esperavam. A fé destes seguidores deste Jesus era falsa e precisava ser
combatida e eliminada; 2) após a guerra judaica contra os romanos, que destruiu
Jerusalém e o templo, os judeus começaram a perseguir aqueles que não aderiram
a guerra, ou que fugiram para a Síria a fim de se esconder. Ao terminar o
conflito, com a destruição do templo, os lideres do judaísmo começaram um
movimento de reforma religiosa. Um dos pensamentos desta reforma religiosa era
a intolerância com aqueles que não se mostraram fiéis aos princípios do judaísmo
formativo, e não participaram da luta armada contra os romanos. O extremismo chegou
ao ponto de se expulsar dos meios judaicos, e, consequentemente das sinagogas todos
os desviados e infiéis, após a assembleia de Jâmnia. Entre estes estavam os discípulos
de Jesus e as primeiras comunidades cristãs. Isso gerou uma profunda crise de fé
e de identidade.
A comunidade do Quarto Evangelho recebe a catequese
de João em meio a um ambiente de crise. Por um lado eram questionados e
combatidos pela fé num messias crucificado, o que era inconcebível para época,
e perseguidos por não terem sido fieis e lutados ao lado dos compatriotas
contra os romanos. Por outro, perseguidos pelo império que não admitia uma nova
religião, que cultuava um Deus semelhante ou superior ao imperador. Neste contexto,
os discípulos da comunidade joanina começam a esfriar na fé, a desistir da
caminhada e retornavam ao judaísmo. Para dar razão à esperança destes discípulos,
João se propõe a escrever sua pregação sobre Jesus. Nasce, portanto o seu
evangelho, a fim de animar os cristãos em crise. Para isso, o autor se serve
das escrituras de Israel, da tradição sapiencial do povo, ou seja, todo o
patrimônio das Sagradas Escrituras, para, através de um método de reinterpretação
apresentar as Escrituras confirmando a missão de Jesus. Atenção! As escrituras!
Não o sistema ritual do judaísmo, simbolizados pela lei de Moisés (613 prescrições
que derivavam de interpretações do decálogo), o Templo e as práticas rituais.
Estes, conforme a intenção e a interpretação do evangelista estão superados e substituídos
pela vida, missão e obra de Jesus. Ele é a superação e a substituição de tudo o
que é antigo. Através do recurso do retorno às Sagradas Escrituras, o evangelista
mostrará para a sua comunidade que eles estão no caminho certo, que vale empenhar
a vida e história por este Jesus. Que Ele é o Ungido de Deus, que inaugura uma
nova forma de se relacionar com o Deus de Israel. Para João, Jesus é a novidade
de Deus. E todas estas chaves de leitura encontram-se no prólogo e em toda sua
obra.
Após esta contextualização, cabe a pergunta central:
por que esta solene abertura do Quarto Evangelho, este prólogo, é utilizado
pela liturgia da Igreja para celebrar este dia solene? Justamente porque estes
primeiros dezoito versículos apresentam o sonho e o desejo definitivo de Deus
para nós, que o evangelista soube entender e se pôs a transmitir. Isso fica muito
claro já no primeiro versículo do texto que nos colocamos a meditar a partir de
agora. Para a meditação bastam os versículos um, que ilumina e explica os vv.2-4;
em seguida, passaremos para os vv.11-12, a fim de chegarmos ao ápice do texto,
o v.14, depois o 16 e, por fim, o v.18.
“No princípio era a Palavra” (v.1). Quando se
repensa esta primeira linha do prólogo, sob pano de fundo hebraico, é evidente
que João pensa em Gênesis. Mas o evangelista toma certa distância da teologia
do primeiro livro da Bíblia que começa com um “No princípio (Bereshit), Deus
criou o céu e a terra”. Para ele, “no princípio,” antes ainda da criação
existia a Palavra, que possuía um projeto que interpelava a Deus. Qual era esse
projeto? Doar ao homem a condição divina. Assim, o catequista faz uma releitura
do poema da criação do Gênesis (Gn 1,1-31). Ali se fala da Palavra que é efetiva,
criadora e ordenadora. Esta Palavra é performativa: “Haja Luz, e houve luz”. Por
isso, uma Palavra que cria possibilidades e horizontes.
No v.11, o autor do Quarto Evangelho afirma que a
Palavra veio para os seus, mas os seus não a acolheram. Ou seja, o evangelista
está chamando a atenção de sua comunidade para atitude das lideranças do povo
de Israel, os quais não acolheram a Palavra, que veio para “os seus”, os de sua
linhagem. Eles fizeram firme oposição à Palavra. Mas, no v.12 há um ensinamento
importante: aqueles que acolheram esta Palavra se tornaram filhos de Deus.
Tornando-se filhos no nome do Filho, e receberam, portanto, Graça por Graça.
O v.14 é explosivo, ao passo que é o versículo
central deste prólogo: “A Palavra se fez Carne e (literalmente) armou sua tenda
entre nós, e nós vimos a sua Glória” (gr. ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν
ἡμῖν / ho logos sarx egheneto kai eskenéhsen en ehmîn). Esta Palavra, geradora,
criadora e ordenadora de Gn 1, da qual fala João se faz carne (gr. σὰρξ /
sarx), ou seja, a estrutura mais frágil da condição humana. Ele não diz que ela
se fez corpo ou homem, mas carne. O projeto de Deus não se realiza através de
um super-homem a ser imitado ou contemplado, mas se realiza e toma forma na
debilidade humana, isto quer dizer que Deus se manifesta na humanidade. Quanto
mais o homem se torna humano, descobre o divino que existe em si.
João, ao declarar que a Palavra se fez carne,
significa dizer que a Palavra se tornou humanidade precária já marcada para a
morte. O caminho de toda a carne é a morte. Então, a encarnação de Jesus não é
só seu natal, mas também sua sexta-feira da paixão, quando a encarnação é
consumada e levada a Termo. Aqui, Jesus é carne ao extremo.
A Palavra-verbo que se fez carne é o projeto de amor
fiel de Deus, que se revela num homem bem concreto que se torna o único e o
verdadeiro santuário através do qual a humanidade toda poderá se encontrar com
Deus. Esta imagem evoca a Tenda da Reunião, nos livros de Êxodo e Números, a
Shekiná. Por meio dessa imagem, João quer ensinar para a sua comunidade que a
Palavra-Jesus é a nova Shekiná de Deus no meio de nós. E, por isso, sua Glória
e seu amor se tornam visíveis para nós.
O v.14 acrescenta mais uma informação importante: “e
nós vimos a Sua Glória”. Glória no Antigo Testamento não é sinônimo de Brilho.
Em hebraico, a palavra Glória (hbr. Kabod) significa Peso, substância. Ora, o
Judeu, que sabia lidar com ouro tinha a consciência de que este pode, enquanto
polido irradiar sua glória e brilho. Mas mesmo opaco, sem nenhum tratamento,
ele sabe que a importância do ouro não está no seu brilho, mas em seus
quilates, portanto em seu peso.
O que está no Menino de Belém [Jesus] não é algo que
brilha sobre o mundo, mas o Peso/presença de Deus (Kabod há YWHW) em meio à
história. João quer ensinar à sua comunidade e ao leitor de seu evangelho que o
lugar da manifestação da Glória (da presença) de Deus acontece na Carne, na
vida e na história de Jesus de Nazaré.
“Pleno de Graça e de Verdade (gr. πλήρης χάριτος καὶ
ἀληθείας / plêres cháritos kai Aletheías), nos informa, ainda o v.14. Estas
duas palavras nos fazem retornar ao modo semítico de pensar. Em Hebraico, Graça
corresponde a Hesed-Hem, amor. É aquela Benevolência fiel. Já, Verdade,
corresponde ao hebraico Emet, que significa fidelidade. Esta expressão pode ser
entendida por “Amor Leal” ou “Amor Fiel” (ou mesmo, Amor e Fidelidade). Graça e
verdade são traduções muito aproximativas daquele Amor fiel (Hesed waEmet).
Amor e fidelidade (graça e verdade) são os atributos
divinos em Ex 34,26, quando YHWH passa diante de Moisés e lhe proclama suas
próprias qualidades. Então, é o mesmo Deus do Sinai que está presente neste Unigênito
Filho, que outra coisa não é, senão a revelação e a manifestação de Deus.
O v.18 conclui a nossa meditação: “A Deus ninguém
jamais viu. Mas o Unigênito de Deus, que está na intimidade do Pai, ele no-lo
deu a conhecer” (v.18). Uma afirmação que contradiz até mesmo a própria bíblia,
uma vez que os autores sagrados do A.T escreveram as experiências de Moisés com
Deus. João não está de acordo. Deus, ninguém jamais O viu. Portanto, as
descrições feitas por Moisés são conflitantes, incompletas e não expressam a
plenitude da experiência com Deus. Todavia, “o Filho unigênito de Deus” que está no seio mesmo do Pai, isto é, na
plenitude da vida divina é quem O revela para a humanidade. Com esta afirmação,
o evangelista conclui o prólogo de sua catequese, convidando, pois, a todos os
discípulos-leitores a colocarem a atenção sobre a figura de Jesus. Tudo aquilo
que vemos Nele, isto é Deus mesmo.
A solenidade do Santo Natal, que celebramos hoje, é
a festa da glorificação de nossa Carne, através da Carne de Jesus de Nazaré, o
Unigênito Filho de Deus. No mistério de sua Encarnação (Antróposis), Deus eleva
a condição humana à Deificação (Théosis). Dizer que através da Carne do Filho se
tem acesso à glória de Deus, significa dizer que a Carne (fragilidade, precariedade,
finitude, debilidade) se torna lugar de Deus. O humano se torna lugar de Deus.
A humanidade torna-se o lugar de Deus, que desejou ser cuidado também, na
fragilidade de uma Criança. Como dizia acertadamente Fernando Pessoa: "Tão
humano assim, só poderia ser Divino".
Feliz natal!
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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