quarta-feira, 2 de março de 2022

REFLEXÃO PARA A QUARTA-FEIRA DE CINZAS – Mt 6,1-6.16-18:

 


O capítulo sexto do evangelho de Mateus está inserido no bloco do discurso inaugural de Jesus, o Sermão da Montanha, que compreende os capítulos 5,1 – 7. Este discurso adquire o status de programa de vida do discípulo de Jesus, e consequentemente, do Reino. Para o primeiro evangelista, Jesus é o novo Moisés, que dá e reinterpreta a nova lei para o novo Israel. Com efeito, a questão de fundo desta sessão está formulada em Mt 5,20, o tema da Justiça – a vontade de Deus para o discípulo do Reino.

O capítulo sexto começa com uma exortação de Jesus aos discípulos, “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serem vistos por eles (v.1)”. A justiça, na teologia bíblica, entende-se como sendo a vontade soberana de Deus. Dito de outra maneira: é o senhorio (vontade) de Deus acontecendo na história e na vida do discípulo do Reino, que através de sua vida conformada com o querer de Deus tende a ser a expressão histórica do agir divino.

Mateus, recuperando o ensinamento de Jesus, quer ensinar que a prática do discípulo deve ser discreta, como o sal que não é visto, mas, mesmo assim, encontra-se ali presente. Contudo, há um princípio importante a ser observado: a religiosidade do discípulo do Reino não é exibicionista, e nem a religião deve se sujeitar a isso.

No v.2-4 tem-se a orientação para a esmola: “Quando deres esmola não façais como os hipócritas... em público para serem vistos e elogiados”. As obras de caridade, a Lei e o culto eram consideradas os três pilares do mundo judaico. Daí a importância da esmola (Tb 4,7-11.16-17; 12,9). O discípulo, porém, é exortado a não fazer como os hipócritas que dão esmola pelas ruas e nas sinagogas, onde se reúne muita gente, de modo a chamar a atenção sobre si e granjear elogios. Esta já seria a recompensa deles. Os hipócritas de que o Jesus de Mateus fala são aqueles atores gregos que usavam mascaras nas apresentações teatrais das tragédias e das comédias gregas. A exortação de Jesus à comunidade dos discípulos orienta-a a não travestir ou mascarar-se atrás de gestos ou atitudes exteriores e falsas.

Em todas as cidades de Israel havia, no tempo de Jesus, os encarregados para recolher e distribuir a ajuda para os pobres, os órfãos e as viúvas. A instituição caritativa tinha inegáveis méritos, mas, para muitos, era também uma ocasião para se exibir. Era hábito, durante a solene celebração litúrgica do sábado na sinagoga, elogiar publicamente aquele que havia dado uma oferta maior: era convidado a levantar-se e ficar de pé no centro da sinagoga, era indicado a todos como exemplo, acompanhavam-no ao posto de honra, faziam-no sentar-se ao lado dos rabinos e presidente da celebração. Jesus assistiu muitas vezes a essa cena, e teve a impressão de assistir a uma peça teatral - de fato, chama de "hipócritas" (atores), aqueles que se prestam a esses espetáculos (v. 2). Aos seus discípulos Jesus pede que não se deixem envolver em semelhantes "comédias". A esmola seja dada "em segredo", evitando francamente a autocomplacência pela boa ação praticada: "Que tua mão esquerda não saiba o fez a direita" (v. 3).

Na antropologia bíblica, a mão responsável por fazer o bem é a direita. A mão esquerda, o mal. A esmola, nesse sentido, deve torna-se discreta. O que a caracteriza como sendo um gesto autêntico de piedade, porque se pautou unicamente pela gratuidade. A esmola dada ocultamente é testemunhada apenas pelo Pai, que recompensará de maneira adequada. A esmola (caridade) coloca, então, o discípulo na relação com o próximo.

Os v.5-6 tratam da oração: a oração deve ser do mesmo modo. Na intimidade e no silêncio. O discípulo do Reino não deve rezar de maneira teatral, performática, espetacular, como os hipócritas. Eles, nas sinagogas e nas esquinas das praças, rezam para serem vistos por quem passa. A oração do discípulo deve ser feita com simplicidade e discrição, no oculto do próprio quarto (2 Rs 4,33), de modo a ser visto apenas pelo Pai. O próprio Jesus rezava solitário (Mt 14,23; Mc 1,35; 6,46).Com isto, não está proibindo a oração em comum (Mt 18,20), prática muito antiga das comunidades cristãs. Ele mesmo participava das orações na sinagoga (Mc 1,21; Lc 4,16). Jesus questiona aquela atitude equivocada por parte de quem reza. Nesse sentido, a oração coloca o discípulo na relação com Deus. Não é uma forma de mudar a vontade de Deus em relação às minhas expectativas, mas a minha vida ser performada através da assimilação de Sua vontade.

Já os v.16-18, tratam do tema do Jejum. O Jejum é uma prática de controle contra as desordens interiores. É a possibilidade da integração relacional consigo mesmo. A maneira hipócrita de jejuar consiste ficar com a cara pálida de modo a ser percebido e, por isso, ser louvado pelos demais. Se assim for, então este jejum não servirá, porque visará mostrar o exterior (a cara pálida de coitadinho), e não corrigir o interior.

Com estes ensinamentos de Jesus, Mateus visa mostrar que o modo de ser homem e mulher, discípulo e discípula do Reino, presente no Sermão da montanha consiste na compreensão do ser humano como ser de relação: relação com o Pai através da Oração, que nos orbita a Deus; relação com sigo mesmo, mediante a prática coerente do Jejum, que reorganiza o homem interiormente a si; e, por fim, com o irmão e com as criaturas através da doação de si aos outros. Uma relação, portanto, Paternal, filial e Fraterna. Ora, a salvação na Bíblia é a salvação do humano e de suas relações.

Que este novo tempo quaresmal nos sintonize com o projeto de Deus. Que as práticas que o evangelho de hoje nos propõe possa ajudar-nos a nos orbitarmos na nossa relação com o outro, através da esmola (caridade) concreta e radical; na nossa relação com Pai, através da oração cotidiana, a fim de assumir e compreender Seu querer; e, por fim uma relação conosco mesmos, através do jejum. Homens e mulheres livres para outro, para Deus e para si.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré; Arquidiocese de Botucatu-SP.

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