sábado, 8 de outubro de 2022

REFLEXÃO PARA XXVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 17,11-19:

 


O texto proposto para a liturgia deste vigésimo oitavo domingo do tempo ordinário, continua a leitura e meditação do capítulo dezessete do evangelho de Lucas. Imediatamente a continuidade da narrativa do domingo anterior, cujo tema era a fé, resposta da parte dos discípulos, que os insere na condição de filhos, ou de servos. Agora, para ilustrar a dificuldade do discípulo que não consegue assimilar a Boa Notícia de Jesus, Lucas, dos vv.11-19, apresenta a figura simbólica de dez leprosos que são purificados.

Jesus, desde Lc 9,51 está em viagem, juntamente com seus discípulos, para Jerusalém. É um caminho/viagem que demonstra um deslocamento mais interior do que exterior para o discípulo porque trata-se de um itinerário de formação/catequese para que ele possa assimilar o projeto de Deus e o evangelho trazido e anunciado por Jesus. Nestes dez capítulos (9,51 – 19), Lucas concentra o ensinamento principal de Jesus que visa formar as pessoas no processo do discipulado, no seguimento. Todavia, se pode notar que os discípulos oferecem suas incompatibilidades, suas dificuldades e crises em face do programa de vida propostos por Jesus. É o que o evangelho de hoje, através desta narrativa quer apresentar para o leitor-discípulo de todos os tempos através do tema da lepra. Tendo contextualizado o texto, é possível adentrar no horizonte da narrativa que é permeada de simbolismos e chaves de leituras que permitem uma leitura e compreensão dinâmicas ao texto.

“Aconteceu que, caminhando para Jerusalém, Jesus passava entre a Samaria e a Galileia. Quando estava para entrar num povoado, dez leprosos vieram ao seu encontro” (v.11-12). Lucas elabora bem o caminho da viagem, por isso não se trata de uma informação histórica, a nível de crônica, mas um dado teológico, pois Jesus está caminhando desde o capítulo nove e já passara pela região da Samaria, localizada bem ao centro do país de Israel, com a região da Galileia mais acima do mapa. Deve chamar a atenção o povoado e não a viagem.

Sempre que no evangelho de Lucas aparece o termo povoado, ele traz consigo uma concepção muito negativa. O povoado é o lugar do tradicionalismo, da mentalidade atrofiada e equivocada, representa a resistência e a dureza do coração de quem não quer mudar (“aqui as coisas sempre foram assim”). Este termo sempre terá essa compreensão, por isso ele será uma chave de leitura a ajudar na compreensão do texto. Curioso é notar a incompatibilidade dos fatos: deste povoado (lugar da resistência, da mentalidade equivocada, atrofiada, do apego ao tradicionalismo), saem dez leprosos; vem ao encontro de Jesus que está do lado de fora, meio que se aproximando da entrada. Algo impossível de acontecer! Os leprosos não podiam sequer se aproximar de uma cidade ou povoado, devendo ficar de fora, morando em bosques ou grutas isoladas, uma vez que a lepra (e aqui se encaixam todas as doenças dermatológicas daquele período que careciam de cuidados médicos, dadas as dificuldades da época) era contagiosa e poderia atingir um povoado inteiro devido às condições sanitárias precárias daquele tempo. Um leproso era, portanto, alguém que vivia marginalizado socialmente. Trazia amarrada ao seu pescoço ou nas mãos um sininho, que avisava a chegada ou aproximação destas pessoas. A humilhação era ainda maior devido ao fato de que deveriam sempre gritar “impuro!”, a fim de afastar as pessoas.

Não era só do ponto de vista social que os leprosos eram marginalizados, mas também, e principalmente, do ponto de vista da religião. E este é o mais grave. A enfermidade era, de acordo com a mentalidade religiosa do tempo de Jesus, consequência do pecado. A lepra era a pior, pois devido ao aspecto ferido e horrendo em que a pele da pessoa ficava, era considerada como um morta-viva; alguém que, literalmente, vivia na morte. Alguns rabinos e livros religiosos daquela época do judaísmo diziam que a lepra era a mais terrível das enfermidades, e por isso, castigo, pois ela revelava, a partir da exterioridade machucada, ferida e, em certos casos, apodrecida o que haveria de podre, feio e horrível no interior da pessoa. O aspecto externo revelava o que internamente não estava bem naquela pessoa.

O evangelista diz que estes dez leprosos saiam da cidade, e foram ao encontro de Jesus, parando a distância. Diante do que foi dito, fica mais do que claro que estes leprosos são personagens simbólicas, uma vez que não podiam entrar ou estar no convívio de um povoado. Quem são, portanto, esses leprosos? Eles simbolizam a todos os discípulos de Jesus, que estão fazendo frente ao seu projeto, que apresentam dificuldades de assimilação à sua mensagem, que não querem deixar os esquemas do povoado. Ora, eles saem de dentro do povoado, lugar da mentalidade equivocada, do tradicionalismo cego, da resistência, isto é, de tudo aquilo que pode impedir a pessoa de viver o projeto de Deus. São em número de dez. Um número inteiro, que na tradição bíblica simboliza totalidade. São, de fato, todos os discípulos que apresentam dificuldades diante de Jesus, e que não querem mudar a mentalidade. Estão cobertos (simbolicamente) de uma lepra.

Prova de que se tratam de personagens simbólicas que se aplicam aos discípulos, que a própria forma com que se dirigem à Jesus já os entrega: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!” (v.13). A tradução liturgia se equivoca com os termos. Ela traz o termo mestre, aplicado à Jesus, quando no texto grego a palavra é outra, e, por isso, manteremos o texto grego, mais original. O termo que aparece na versão grega aplicado à Jesus é “epistáta” (gr. ἐπιστάτα), literalmente, “chefe”. Somente aquele que não conseguiu ainda assimilar por onde passa o caminho de Jesus, sua vida doada, seu amor e sua misericórdia, em doação e serviço, se equivoca e, com razão, só consegue concebe-lo como chefe. Os discípulos ainda não conseguem compreender a Jesus como servo e doador de amor e de vida, e, ainda presos ao tradicionalismo proveniente do povoado que pensa e concebe o messias de Israel como dominador e chefe, se equivocam na compreensão acerca da identidade de Jesus.

Jesus não realiza um gesto sequer. Apenas dá uma ordem: “Ide apresentar-vos aos sacerdotes. Enquanto caminhavam, aconteceu que ficaram curados” (v.14) Jesus lhes ordena ir aos sacerdotes, porque somente eles, após um exame acurado do corpo da pessoa, poderiam atestar a cura da enfermidade, e firmavam um atestado de pureza. A cura de um leproso era algo considerado como intervenção de Deus. Mas é interessante que Jesus não faz nada, a não ser dizer para se afastarem do povoado. A medida em que se afastam do povoado, se cura, pois vão deixando para trás a lepra da mentalidade equivocada, da resistência, do tradicionalismo que atrofia e não gera vida, e, que portanto, pode matar; a compreensão errada acerca de Deus e de Jesus; tudo o que pode ser obstáculo para uma vivência e experiência livre de relação com Deus, seu amor e sua misericórdia.

Durante o percurso, somente um se deu conta que já estava purificado, e, portanto, livre daquilo que lhe impedia de seguir a Jesus enquanto discípulo. Era um samaritano. Isso é importante. Samaritanos e judeus não se relacionavam por motivos históricos e religiosos. A Samaria foi vista com preconceito após 722 a.C, devido a miscigenação ali existente, e, com isso, o judaísmo ali praticado sempre foi visto como falso pelos judeus piedosos do sul, Judá, cuja capital era Jerusalém. É uma fina ironia de Lucas mostrar que um samaritano se percebeu purificado e voltou glorificando a Deus, o que só seria aceitável se a atitude fosse de um judeu piedoso.

Por isso o fato narrado não é uma crônica do acontecido, mas uma mensagem simbólica; uma experiência de fé que se pretende relatar, a fim de que o leitor/discípulo faça seu exame e discernimento sobre sua conduta enquanto tal. O samaritano torna-se, pois, um exemplo a ser assimilado pelo leitor/ouvinte do tempo da comunidade de Lucas, e de todos os tempos e lugares. Ele, na narrativa, é o único que conseguiu se distanciar daquilo que o impedia, daquilo que era sua lepra, isto é, a dificuldade de aceitação ao projeto de Deus e de Jesus, representado pela enfermidade e pela figura simbólica do povoado.

O gesto de poder de Jesus vai se dando no caminho contrário ao povoado. Ou seja, a purificação se realiza no processo do distanciamento daquilo que pode ser sinal de enfermidade e obstaculizar a relação entre ele, Jesus, o Pai e o Reino: a hipocrisia religiosa travestida de zelosa piedade,  que pode gerar afastamento, segregação e exclusão; o tradicionalismo vazio, a resistência efetiva, as convicções equivocadas, as mentalidades atrofiadas e distorcidas acerca de Jesus e de Deus. É esta a purificação que a Palavra e vida de Jesus realizam e operam no discípulo, se este se permite ressignificar a vida. O samaritano alguém teoricamente de fora, que pode ensinar e reorientar a vida e a conduta dos discípulos acerca do modo de se relacionar com Deus e com Jesus. Ao colocar esta personagem, o evangelista também trabalha com um tema que lhe é muito caro, a salvação universal: ninguém pode permanecer de fora do projeto de amor, misericórdia e vida que Deus oferece através de Jesus. O samaritano se torna símbolo também para todos. Pois todos são associados a este projeto de Deus, a esta Boa Notícia de salvação.

Ao tomar distância do lugar que gerava a enfermidade, o samaritano pôde glorificar à Deus, isto é, restabelecer sua relação com o divino, e pode reconhecer a Sua presença em Jesus, o que se vê através da atitude da prostração diante do mestre. E recuperar a sua relação com Deus, lembrando que a fé, que salva o samaritano leproso é a capacidade da relação com Deus restabelecida: a fé é a relação-em-resposta que o homem e a mulher podem estabelecer com Deus. É o que o dialogo final entre Jesus e o ex-leproso quer ensinar (v.19). Fé/relação que sempre tem a potência de nos habilita para a condição de filhos.

Estejamos atentos para tudo aquilo que pode se tornar lepra em nossa vida de fé. E, principalmente, com os lugares que podem contribuir para que elas apareçam e tomem-nos a vida e a liberdade; a condição de filhos de Deus e de irmãos.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


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