A
boa leitura do texto bíblico sempre levará em conta a absorção do seu contexto
amplo, isto é, o lugar onde a narrativa se encontra. Isso serve para iluminar a
sua leitura, quando o texto parece trazer temáticas diversas. Como parece ser o
caso do evangelho deste vigésimo sétimo domingo do tempo comum, retirado do
capítulo dezessete do Evangelho segundo Lucas. O texto proposto para a liturgia
deste domingo encontra-se em Lc 17,5-10. Todavia, é preciso retomar a leitura
dos cinco versículos anteriores.
Nos
v.v1-2, o evangelista começa o capítulo falando da eventualidade e
inevitabilidade dos escândalos no meio
da comunidade. Mas escândalos aqui são todas as situações que impedem que o
discípulo, que está iniciando na fé, cresça e progrida na vivência desta mesma
fé, que é relação com Jesus e com o Pai. O evangelista usa o termo σκάνδαλον
(gr. schândalon), que alude à impedimento, ou literalmente, obstáculo. Na
comunidade dos discípulos não deve haver espaço para obstáculos que se
interponham ao processo pessoal do individuo de se tornar discípulo do Reino e
reconhecer-se filho de Deus. Jesus dirá que aquele que produz o escândalo, o
obstáculo, que enfiasse uma pedra de moinho no pescoço e fosse atirado ao mar.
A
pedra de moinho pesava mil e quinhentos quilos. O mar é símbolo, nas
Escrituras, de tudo o que é contrário ao projeto de vida sonhado por Deus. “Ser
lançado ao mar”, na verdade, é forma simbólica de se denunciar que a pessoa
causadora do obstáculo e impedimento está na contramão do querer de Deus. Entendamos
que o fato de Jesus dar essa ordem não significa que ele esteja fazendo
apologia à exclusão. É preciso recordar que o mar é, também, o primeiro
ambiente missionário de Jesus e dos primeiros discípulos. Ele convida Simão à
vocação de pescar homens dos mares do mundo, fazendo-os começar a dinâmica do
discipulado. Nesse sentido, “lançar ao mar” significa proporcionar à pessoa a
tomada de consciência de que ela precisa recomeçar a caminhada. É, portanto,
uma orientação e inciativa pedagógica que Jesus oferece à comunidade para que a
pessoa recupere a sua condição de discípulo, e, mais ainda, reconheça-se filho
de Deus.
Jesus
toca no tema do perdão, nos vv.3-4, ensinado que o perdão deve ser constante e
o distintivo da comunidade dos discípulos. A ordem de perdoar sete vezes não
está ligada à quantidade, mas à qualidade. Sete na teologia bíblica indica
plenitude/perfeição. O discípulo e a comunidade distinguem-se pelo perdão. Esta
é a condição para ser reconhecido enquanto filho de Deus. Estes versículos,
então, preparam o texto de hoje. Feitas estas considerações e contextualização
inicial, agora podemos mergulhar na compreensão da narrativa de hoje e extrair
dela o ensinamento que Jesus quer transmitir aos discípulos e à nós.
No
v.5, após os ensinamentos anteriores de Jesus acerca do escândalo e da
qualidade do perdão pedem algo: “aumenta a nossa fé”. Algo estranho. Pois a fé
não é algo que Deus dá. Ela é uma resposta/atitude que parte do ser humano, e
não de Deus. A fé não é algo que precisa ser aumentado, acrescentado, mas uma
relação a ser vivida e trabalhada pelo ser humano. Por isso Jesus responde no
v.6: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis
dizer a esta amoreira: Arranca-te daqui e planta-te no mar, e ela vos obedeceria”.
A amoreira/sicômoro eram arvores que possuíam raízes tão profundas, que se
tornavam difíceis de serem extraídas. O que o mestre pretende dizer? Que não
importa a quantidade da fé, mas a qualidade dela. Ele a compara a um grão de
mostarda, tão pequena semente. Jesus pretende ensinar seus discípulos que não
importa uma fé gigante em termos de quantidade, mas da fé enquanto
disponibilidade de relação. Se esta disponibilidade relacional, esta resposta
existir da parte do homem e da mulher, eles podem se relacionar com Deus na
condição de filhos.
Neste
sentido, a fé, relação entre o homem e Deus, é o que habilita o ser humano para
o horizonte da relação com Deus, a partir da condição de filho. E é
interessante notar que a comparação da qual Jesus se serve, o grão de mostarda,
que é aquela pequena semente, mostra para os discípulos que esta fé não uma fé
ideal (grande, qualitativa, ou, mesmo perfeita), mas a fé real, perpassada
pelos desafios, pelos obstáculos e dificuldades da vida. A fala de Jesus é uma
denúncia: os discípulos não possuem a fé; não estão respondendo ao dom do amor
de Deus; não estão se relacionando com Ele na forma e no modo de filhos, que
abraçam ao amor e a misericórdia e frutificam este amor e esta misericórdia na
relação com os outros.
Jesus
propõe, pois, uma alternativa, através da parábola do patrão e do servo. Se os
discípulos não acolhem a Sua oferta de se tornarem filhos à semelhança da vida
e do amor do Pai, podem assumir a condição de servos. É o que as parábolas do
servo e do patrão querem acenar (v.v. 7-10).
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu,
Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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