O evangelho proposto para a meditação do vigésimo nono domingo do tempo comum, é retirado do capítulo dezoito da catequese de Lucas. Ao mesmo tempo que se inicia um novo capítulo, Jesus e Lucas encerram a seção acerca dos ensinamentos sobre o tema da fé dos discípulos, iniciado no capítulo anterior – Lc 17,1-10 – com o pedido dos discípulos para que Jesus lhes aumentasse a fé, seguido do relato da purificação dos dez leprosos, dentre os quais, um samaritano, que consegue honrar Jesus com sua fé (Lc 17,11-19). Por isso, o texto de hoje conclui este ensinamento acerca de como deve ser a fé dos discípulos: perseverante e orante.
A fé, nos mostrou o capítulo dezessete, é a capacidade de relação com Deus. É e sempre será a resposta que o homem e a mulher, o discípulo e a discípula de Jesus de todos os tempos e lugares oferece a Deus-Pai, diante de seu amor, sua misericórdia e seu perdão. Ela habilita o discípulo a se relacionar com Deus segundo a forma e a condição de Filho. Se o discípulo assimilar esta realidade relacional com Deus desta maneira, ele poderá ser reconhecido como discípulo verdadeiro do Reino. Mas esta relação-resposta deve ser sempre conservada a partir da perseverança e da constância, mesmo diante dos desafios e das dificuldades, inclusive no seguimento a Jesus. É o que o discípulo-leitor do evangelho deve procurar absorver do texto deste domingo, Lc 18,1-8, a parábola do Juiz iníquo e da viúva, os quais, de antemão já se adverte para a compreensão do texto, são personagens simbólicas – evidentemente, por se tratar de um gênero de parábola – a serem compreendidas e aplicadas à dois grupos.
Para compreender o texto de hoje é necessário compreender o contexto da comunidade de Lucas (e de todas as comunidades no Século I). Cresce e acirra-se a perseguição contra o movimento de Jesus por parte do Império, pelo imperador Domicianos, e da parte do judaísmo da época. A violência, o insulto, a rejeição, a exclusão e marginalização dos cristãos dos dois lados da sociedade estava gerando o desânimo nos primeiros cristãos e até desistências. Sob este clima é que Lucas tece o relato parabólico que inicia o capítulo dezoito, recuperando o ensinamento de Jesus. Digno de nota é que este episódio é exclusivo do evangelista, que soube redigir bem o texto, apropriando-se do ensino de Jesus e das personagens, articulando-as a fim de transmitir uma mensagem de ânimo, de encorajamento e de esperança para suas comunidades, a fim de fortalecer a sua Fé, mesmo em tempos de crise.
O texto começa apresentando a intenção do próprio Jesus, a qual revela-se a síntese e a finalidade do ensinamento que vem a seguir: “Jesus contou aos discípulos uma parábola, para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre, e nunca desistir...” (v.1). Na verdade, o Senhor já trabalhou o tema da oração com seus discípulos no capítulo 12 da catequese lucana. Por isso, este não pode ser considerado o tema central deste capítulo, embora apareça novamente. E, para que recordemos sempre: a repetição dos temas é um artifício do evangelista para mostrar as dificuldades que os discípulos-leitores estão apresentando na assimilação daquele tema. No entanto, se faz importante recorrer ao contexto da comunidade uma vez mais, ou seja, os anos 80. A comunidade de Lucas era composta, na sua maioria, por estrangeiros e pagão, os quais não tinham a prática e o costume da oração. Por serem de origem grega, a maioria estava habituada ao costume religioso grego dos sacrifícios apresentados nos templos, aos ritos, e não tinham práticas de oração pessoal.
A parábola é contada por Jesus. Nela, são apresentadas duas personagens absolutamente opostas. Um juiz e uma viúva. O mestre apresenta com muita precisão as características da personagem do magistrado: “um juiz que não temia a Deus, e não respeitava homem algum” (v.2). É um homem arrogante, autossuficiente, prepotente. Não temer a Deus significa que ele não o reverenciava. O temor bíblico não é sinônimo para o medo. Muito pelo contrário. É a atitude de reverência e de reconhecimento da dependência em relação ao divino. Este homem, mediante suas características, revela-se descomprometido com Deus e com outro (“não respeitava homem algum”).
A segunda personagem, que Lucas apresenta como contraste a ao juiz é a viúva. É importante relembrar que a viúva, dentro da tradição religiosa do povo de Israel, devia ser protegida pelo próprio povo. Mas isso não era feito. Quando a mulher ficava viúva, sem herdeiros, e, não tendo ninguém que a amparasse, todos os seus bens e propriedades podiam ser dados ao templo, aos sacerdotes. Com isso, corria o risco de ficar na miséria, na mendicância, vivendo na marginalização. Muito provavelmente, esta viúva da parábola ao apresentar-se com insistência diante daquele juiz, deveria estar com problemas desta natureza. A sua característica é a insistência; a perseverança. Mesmo sabendo que o juiz poderia ser injusto com ela. Via de regra, no AT, as figuras dos magistrados das cidades eram sempre denunciadas pelos profetas por deixarem se corromper por seus próprios privilégios e vantagens, desfavorecendo os pobres que iam a eles pedindo justiça.
Não é o que acontece. O juiz se incomoda com a insistência da viúva. Ele expressa bem sua intenção: “Eu não temo a Deus, e não respeito homem algum. Mas esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!” (v.4-5). A tradução está equivocada: o juiz não teme a agressão. Primeiro, porque Jesus jamais incentivaria essa atitude, tampouco os evangelistas inspirariam este comportamento para suas comunidades, que já sofriam por demais com a violência. A tradução literal é esta: “Vou fazer-lhe justiça, para que ela não me coloque os olhos negros”. Trata-se de uma figura de linguagem que pretende aludir para o medo de ter sua reputação manchada. Ora, é claro que o juiz injusto não estava pensado no bem daquela viúva ao lhe exercer justiça, mas na sua própria imagem, em sua reputação. Ele pensa em si mesmo, tão somente. Em seu próprio bem-estar e na sua conduta ilibada. Não pensa na justiça que pode fazer, porque sua preocupação não é o outro. Evidentemente, não é intenção do evangelista, tampouco de Jesus se deter sobre uma história. A intenção é uma catequese que visa chamar a atenção para as personagens simbólicas. Por isso, quem simbolizam estas personagens?
O juiz injusto é símbolo para a mentalidade e atitude do Império Romano, imbuídos de seus esquemas e sistemas de domínio, opressão, coação, injustiça, violência e morte. A viúva insistente se torna símbolo para a comunidade cristã, ameaçada nesta história. Mas ela se torna exemplar e modelo para os discípulos por sua perseverança na fé, mesmo em tempos difíceis; mesmo onde a crise e a dificuldade tomam conta e parecem reinar. É o exemplo da fé insistente e perseverante que a viúva tem que o discípulo precisa assimilar para o seu viver, e para ser reconhecido como verdadeiro discípulo do Reino. É, então, esta personagem que deve servir de modelo para a comunidade ou para o discípulo que balança na fé.
Jesus, conclui a parábola chamando a atenção dos discípulos para a conduta injusta deste juiz, para oferecer a eles a certeza de que ainda que aquele magistrado agisse assim, Deus agia diferente. Diferente do juiz injusto, Deus age com justiça, amor e misericórdia para salvar os seus. O Pai não é como este juiz, que se posiciona ao lado de suas próprias convicções e bem-estar, agindo por seus próprios interesses. Pelo contrário, através desta viúva, Jesus quer mostrar e ensinar que Deu-Pai toma um lado na história; se posiciona: sem sombra de dúvidas, o lado dos despossuídos, marginalizados e excluídos, ao lado das minorias. Jesus assegura ação e intervenção de Deus na história, de modo a animar e confortar os discípulos a fim de que recuperem e assumam de vez a esperança: “ânimo, Deus vai intervir porque a última palavra sempre é a Dele nesta história, mas precisamos cooperar com ele, fazendo nossa parte, sendo firmes, insistentes e perseverantes na relação com Ele”.
Jesus coloca uma pergunta: “Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” (v.9). Assim, encerra-se a seção que tratou acerca do tema da fé do discípulo. Diante do fato de Jesus assegurar constante ação de Deus em favor de todos os seus eleitos (o seu povo), Ele coloca a pergunta de modo a provocar os discípulos: diante da fidelidade de Deus, o homem permanecerá fiel à sua relação-em resposta à Deus? Será perseverante? Este será o desafio a ser vivido por aquele que deseja, de fato, seguir o projeto de Deus, tornar-se discípulo de Jesus.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu,
Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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