O evangelho deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum, continua a leitura do capítulo quatorze da catequese segundo Lucas. O texto proposto para a meditação da Igreja é Lc 14,25-33. Numa contextualização imediata, situa-se após o banquete dado pelo chefe dos fariseus à Jesus. O mestre, novamente, retoma o caminho para Jerusalém, e isso fica evidente através da informação que o evangelista oferece utilizando o verbo “acompanhar”, que se encontra referido às multidões em relação à Jesus. O caminho que Ele trilha com seus discípulos, já bem se sabe, não é tanto geográfico; é, antes, um itinerário físico-espiritual, e, portanto, teológico e de fé. Visa a formação correta do discípulo do Reino. Neste bloco da grande viagem de subida de Jesus para Jerusalém (Lc 9,51 – 19), o evangelista concentra todo o ensinamento principal do Senhor destinado ao discípulo que com Ele caminha, para que aprenda a ser e viver diante do projeto de Deus que se realiza em Jesus. Mas esse caminho representa também duas realidades importantes.
A primeira, é a existência de um contraste que se estabelece entre a casa e o caminho e a sinagoga do século I, que Lucas introjeta para o tempo narrado dos anos 30. Jesus e os discípulos, vez ou outra param, fazem experiência da casa, refazem-se, mas continuam a caminhada. Não é mais a sinagoga, ambiente de estudo da Palavra e do ensino dela o lugar para se fazer a experiência com Deus, mas na casa e no caminho. A segunda realidade é a de considerar o caminho como parte integrante e fundamental da comunidade dos discípulos de Jesus dos anos oitenta do século I, bem como das gerações seguintes. Indica seu estado permanente de saída, de missão, conforme a descrição que o livro dos Atos dos Apóstolos oferece. Ilustra, pois, a realidade em que vive e deve viver a comunidade, isto é, a Igreja de todos os tempos e lugares. Por isso a insistência do evangelista de mostrar Jesus juntamente com os seus em caminho.
O texto de hoje, Lc 14,25-33, trata-se de uma advertência que Jesus faz aos que o acompanham no caminho acerca das exigências do discipulado. A narrativa se estrutura da seguinte forma: uma constatação (v.25), seguida de duas exigências importantes sobre o discipulado (v.26-27), e duas parábolas (v.28-31) que preparam a terceira, ultima e importante exigência de Jesus para seus discípulos. Quem não as levar à sério, “não pode ser meu discípulo”, dirá Jesus por três vezes. Com essas contextualizações podemos mergulhar na leitura e meditação da narrativa evangélica.
O versículo 25, que serve de introdução para a narrativa nos informa que Jesus e os discípulos já estão em movimento; já estão em caminho acompanhados de uma multidão. Muito importante esta nota que o evangelista oferece. Estejamos atentos, “grandes multidões acompanhavam Jesus (v.25a)”. Interessante notar que o autor utiliza um verbo diferente, “acompanhar” (gr. συμπορεύομαι/symporeuomai), e não o verbo “seguir” sempre empregado aos discípulos, o qual mostra a atitude do seguimento, do discipulado. A intenção do catequista é a seguinte, mostrar para sua comunidade que há uma diferença muito grande entre os que simplesmente acompanham a Jesus, daqueles que realmente O seguem. Ao mesmo tempo, é uma chamada de atenção para os fieis-discípulos das comunidades para não caírem no mesmo comodismo e descompromisso daqueles que somente acompanham a Jesus. Muito provavelmente a comunidade de Lucas esteja passando por esse processo de comodismo ou de esfriamento da fé e da adesão ao Reino e à vida de Jesus, e abandonando o caminho.
A multidão que procura Jesus é um grupo muito diversificado. Ao seu interno apresentam-se pessoas que vão se comprometendo com sua palavra, ensinamento, modo de viver e com sua pessoa, e que conseguem dar o passo na direção do discipulado, mas há aquelas pessoas que o procuram somente para satisfazer as próprias conveniências, procurando milagres; sentindo-se seduzidas pelo bem-estar que sua pessoa pode oferecer; outras, e perigosas tanto quanto as demais, se achegam a Jesus devido a imagem equivocada de messias possuem, a do messias nacionalista, guerreiro, opressor, violento. Estes simplesmente acompanham a Jesus, não o seguem. Não comprometem a vida com Ele. Por isso, Jesus, consciente deste perigo que ronda a multidão e também os discípulos estabelece três condições essenciais para segui-lo, sendo que a terceira vem após duas parábolas que servem de apoio para as três exigências.
“Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo (v.26)”. A primeira exigência é a mais radical que Jesus expõe. Mas que tem que ser bem entendida, sem rigorismos e sem amenidades. É importante compreender o seguinte, a família, na sociedade do tempo de Jesus representa um núcleo de pertencimento, segurança social e posição. Romper com esse circulo significa correr o risco de perder a identidade e os privilégios. Jesus coloca essa condição ao que deseja segui-lo. Romper com a família representava um grande desafio e consistia num processo doloroso. Para se ter noção do quão exigente é esta exigência, é importante tomar o texto original que traz literalmente o verbo “odiar (gr. μισέω/missêo)” ao invés de “desapegar”. Mas o dito de Jesus deve ser bem entendido para não gerar equívocos.
O verbo “odiar” para a cultura do povo de Jesus não tem o mesmo sentido para a nossa. Entenda-se “odiar” como “amar menos (com menor intensidade)”. O Senhor não está dizendo ou incitando as pessoas ao ódio, da forma como pensamos ou concebemos este sentimento. Ele está pondo a seguinte exigência para ser Seu discípulo: o Reinado Deus e Seu projeto devem ser prioridades para aquele que desejar segui-lo. Significa recolocar e reordenar as relações (pais, irmãos, esposos, esposas, filhos, e a sua própria vida) em vista do Reino e do discipulado. Da mesma forma que Jesus não quer que as relações se esfacelem ou sejam vividas com hipocrisia.
Não adianta fazer a opção pelo Reino e pelo projeto de Jesus e, dentro da própria casa ou das próprias relações, viver incoerências. Não viver e exercitar a compreensão, a empatia, a igualdade das dignidades. Não acolhendo quem necessita, inferiorizando e oprimindo os outros; vivendo desarmonia. O horizonte familiar e a própria pessoa devem ser colocados em relação ao projeto de Deus e não ocupar Lhe o lugar. Essa é a primeira exigência para poder ser discípulo. De modo que esta relação com Jesus e o Reino possa moldar e transformar a relação com os outros, com os de casa, com os que estão à sua volta. Caso contrário, a pessoa será mero acompanhante de Jesus.
A segunda exigência que Jesus estabelece é a seguinte: “Quem não carrega a sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (v. 27). A cruz no contexto da sociedade e do tempo de Jesus representa medo, tortura, vergonha e exclusão social e religiosa. Era a máxima condenação que o Império Romano impunha aos adversário e inimigos políticos, que representavam perigo social para Roma. Neste contexto da narrativa ela não pode ser entendida como sinônimo de sofrimento, apenas. Ela deve ser tomada em seu sentido real, ou seja, a eventualidade e a realidade da perda (entrega) da própria vida em vista da fidelidade ao Reino, ao Pai e a Jesus. Só pode ser Seu discípulo quem entende que a vida também pode ser perdida por causa do horizonte e da fidelidade ao projeto de Jesus. A capacidade de dar e de gastar a vida, é o que significa tomar a cruz e seguir a Jesus, em todo o seu realismo e consequência.
A terceira exigência, “renunciar a tudo o que tem”, toca na capacidade e na maturidade exigidas do discípulo na relação que possui com os seus bens. Mais uma vez Jesus toca no tema do desapego como condição de liberdade para que a pessoa possa ser autêntico servidor do Reino e seu discípulo. Agora, ele é chamado a colocar o que possui em relação às necessidades dos outros. Amar menos o que se tem para coloca-los a serviço dos que não possuem.
As duas parábolas que se encontram no meio do texto, nos vv.28-32, são tomadas de ambientes distintos, mas possuem a mesma intenção e finalidade. A primeira, a do construtor que deseja começar a construir deve saber se terá o suficiente para concluir a obra. Caso contrário será alvo da chacota alheia. A segunda, serve-se do exemplo de um rei que está preste a sair em batalha, com seu reduzido exército em face a outro que apresenta um exército mais numeroso, e que deve discernir bem sua estratégia. Ambas as parábolas tocam no tema do discernimento diante de uma tomada de decisão e de suas consequências. Elas servem para iluminar o discípulo no discernimento, na tomada de decisão e leva-lo a pensar nas consequências de sua decisão/adesão ao discipulado. Jesus não quer que o discípulo seja inconstante. Para se tornar seguidor é necessário que a pessoa pese, discirna e tome consciência da escolha que está fazendo. O discípulo, portanto, não pode ser inconsequente. Assim como o construtor e o rei têm que ser conscientes das decisões e consequências que podem ter, tanto mais aquele que se dispõe a assumir o discipulado ao Reino e a Jesus. Este é o sentido das duas parábolas que reforçam as exigências que o Senhor faz para quem quiser segui-lo.
No horizonte da comunidade, o evangelista e serve destas parábolas para fixar o ensinamento de Jesus aos seus discípulos-leitores e integrantes da comunidade, de modo a evitar qualquer pensamento equivocado sobre o discipulado, suas exigências e acerca da pessoa de Jesus. O fiel-discípulo não pode conceber um seguimento/discipulado de acordo com suas conveniências, mas conforme a radicalidade da vida do mestre, e não se afaste do ideal de vida de Jesus mesmo diante das dificuldades, das exigências e das crises suscitadas pelo próprio evangelho. A comunidade, se ela quiser ser fiel ao projeto de Jesus, deve procurar viver estas exigências que Ele mesmo viveu por primeiro: tudo reordenar, recolocar e ressignificar no horizonte do projeto de Deus; ser consciente de que tomar a cruz é configurar sua vida ao mistério da entrega e da doação até as últimas consequências; e viver, por isso, uma vida em liberdade e gratuidade diante do que se possui.
Quem somos neste “espelho” do texto: 1) acompanhantes ou seguidores de Jesus? 2) Temos colocado o projeto de Jesus e do Reino em primeiro lugar ou temos amado mais nossos próprios projetos e convicções? 3) Temos discernido sobre a nossa condição e vocação de discípulos e discípulas?
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São
Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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