sábado, 14 de maio de 2022

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 13,31-35:


 

O evangelho deste Quinto Domingo do tempo pascal retoma a narrativa da ceia de despedida de Jesus, no Quarto Evangelho (Jo 13,1-38). Estamos ao interno do chamado Livro da Glória. O texto de Jo 13,31-35 situa-se após o gesto profético do lava-pés, o gesto simbólico da vida de Jesus levada até as últimas consequências; do anúncio da traição de Judas e do prenúncio da negação de Pedro.

Mas, no contexto da catequese joanina, o texto de hoje encontra-se no bloco denominado testamento de Jesus (Jo 13 – 17), sendo quatro capítulos narrados ao redor da ceia, evento que não pode ser visto como ocasião para consumo de alimentos, muito menos resume-se na vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. A ceia é o lugar da partilha e da comunhão de vida entre o anfitrião e os hospedes. Por isso, o testamento que Jesus deixa aos seus se dá ao interno desta ceia.

O que seria este testamento que Jesus entrega aos seus? O testamento é o ensinamento e a exemplaridade da vida do mestre destinado ao discípulo que se decidiu por ele. O seu conteúdo é a revelação de Deus através da Sua vida, mediante a sua entrega, e o mandamento do Amor. É sobre este conteúdo que a comunidade de João e as gerações futuras deverão se debruçar. Por isso, a nível de catequese litúrgica, a Igreja oferece este texto para a meditação, a fim de que as comunidades de todos os tempos, tendo feita a experiência com Jesus ressuscitado, possam pautar a vida ressuscitada nos seus ensinamentos e no Seu modo de vida. Somente vivendo a partir do modo de vida de Jesus a comunidade continuará a experiência da ressurreição e prolongará sempre na história a vida do Senhor. Vamos ao texto.

No v.31 temos uma delimitação importante: a saída de Judas. Ele se decidiu por romper com Jesus, com seu projeto e com o grupo dos Doze. Optou em não aceitar a dinâmica do lavar os pés. Escolheu as trevas (por isso João situa estes acontecimentos finais da vida de Jesus no período noturno). Somente após a saída deste discípulo é que o mestre entrega o seu testamento aos demais. Só pode tomar parte, receber e assumir o testamento de Jesus aquele que estabelece uma comunhão com o Seu modo de vida. Ao mesmo tempo, no horizonte do evangelho segundo João, a saída de Judas do grupo é o que desencadeia o ensinamento de Jesus sobre a Hora da Glória.

O v.32 toca precisamente no tema da Glória (da glorificação) de Jesus, a qual é o lugar tenente da Glória de Deus. O tema da Glória no Quarto Evangelho é importante e perpassa a obra joanina do começo ao fim. Glória, aqui, não significa brilho/esplendor. O evangelista serve-se do pano de fundo do Antigo Testamento, trabalhando com o termo hebraico Kabod, o qual se traduz por Glória, mas no sentido de “presença”. Assim, a Glória de Deus outra coisa não é que a sua presença na história. Na teologia do evangelho de João, a vida de Jesus torna-se o lugar no qual se dá a presença de Deus. Com efeito, a Glorificação do Filho do Homem, da qual fala Jesus é o ato de manifestar a presença de Deus através do dom da sua própria vida na Cruz. Por isso, é na Cruz que Deus revela todo o seu poder, sua presença e seu Ser no Crucificado.

Jesus assume para si a missão e identidade da personagem apocalíptica do Livro de Daniel (Dn 7,10), que na época de Jesus evocava um ser glorioso e potente. Geralmente, Jesus relaciona essa imagem ao seu sofrimento, tanto no Quarto Evangelho, quanto nos evangelhos sinóticos (cf. Mt 17,22; 20,18; Mc 9,12.31; 10,33; Lc 9,22.44), contradizendo o uso recorrente no seu tempo. Em João, glória e paixão estão intrinsecamente relacionadas.

O evangelista, no texto grego serve-se da voz passiva, a qual indica Deus como o agente  realizador da ação (“passivo teológico ou divino”). O termo “glorificar” pode ser entendido, ainda, no sentido de “manifestação da glória”, revelação da presença divina: “Foi glorificado o filho do Homem, e Deus foi glorificado nele”. Ora, a glória de Jesus, enquanto Filho consiste em realizar o querer e a obra do Pai. A glória do Pai, por sua vez, é ver o Filho amando até o fim, isto é, plenamente. E sendo-lhe fiel. Mas só poderá tomar parte da glorificação de Deus em Jesus os que são tidos como “filhinhos”, ou seja, aqueles que aderiram e aderem ao projeto e à vida de Jesus: os iniciados na Fé. É a linguagem do Mestre para com os discípulos. Mas “filhinhos” é também o termo que 1Jo 2,1.12.28 usa para se dirigir aos fiéis. Jesus fala agora aos fiéis como se já constituíssem uma comunidade eclesial, por que o Jesus joanino é o Jesus da comunidade, o Jesus eclesial.

Os filhinhos recebem, pois, uma novidade de vida: um Novo mandamento. “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (v.34). Existem dois adjetivos que correspondem a “novo”: o primeiro deles, “néos” (gr. νέος) significa algo novo que se soma ou acresce-se ao que já existe, no sentido da quantidade; o segundo, kainós (gr. καινός) significa algo que substitui o que é velho, superando-o e fazendo-o desaparecer. É esse segundo termo que João se serve aqui. Portanto, o mandamento novo dado por Jesus não vem a ser um acréscimo à antiga Lei, mas a sua completa superação, no sentido de leva-la à plenitude. Uma vez que o termo Lei (gr. nômos) não é uma tradução boa para o termo Torá. Esta poderia muito bem conservar o sentido original da tradução que ela recebe do original hebraico, como “instrução/caminho”.

Jesus ao comunicar um “mandamento novo”, está a dizer para seus discípulos (e à nós) que sua vida e o modo do Seu amor superam (plenificam, conferem plenitude e cumprimento/realização) a Instrução/caminho, a Torá de Deus. O amor tem a capacidade de superar uma Lei; de aperfeiçoar um “caminho” (Torá/instrução). Quer dizer que, vivendo esse mandamento, a comunidade não necessita de nenhum outro. É esse o modelo de amor que ela deve assimilar e reproduzir. O interessante é que Jesus não dá como testamento para sua comunidade um conjunto de normas ou ritos somente. Sim, é verdade que no "tomar e comer, e no tomar e beber", Ele nos dá a ordem de iteração "fazei isto em memória de mim", para que celebre-se sempre a sua vida através dos dons sacramentais. Mas a liturgia e o rito só adquirem a real eficácia quando verificados através do modo de vida de Jesus. E, ao mesmo tempo, os sacramentos atingem sua finalidade a partir do momento que inscrevem a vida de Cristo em nós. Por isso, seu testamento não é só delimitado pelo rito ou pelo preceito. Ele nos deixou um Mandamento novo, um modo de ser, agir e existir. 

Somente em João o mandamento do amor é dado com essa radicalidade e com este exemplo, ou seja, o amor de Jesus. Diante disso, a novidade apresentada pelo evangelista se torna ainda mais evidente, pois Jesus não reivindica nada para si e nem para Deus, o Pai; pede apenas amor recíproco entre os membros da comunidade: “amai-vos uns aos outros”; nesse amor recíproco entre os discípulos, obviamente, estará o amor a Deus, pois é Ele a fonte do amor e, consequentemente,  Jesus, o revelador do amor do Pai. O critério do amor que deve ser vivenciado na comunidade é o seu: “como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros”. Que não é um amor qualquer, mas é aquele capaz de dar a vida pelo próximo, cuja expressão visível é o serviço (cf. Jo 13,15).

A vivência deste Amor de Jesus torna-se o critério para reconhecer as comunidades e os discípulos de Jesus, “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (v. 35). Assim, se faz necessário questionar-nos um pouco: 1) Será que poderemos nos reconhecer entre os filhinhos ou estamos ainda na dinâmica existencial de Judas, que rompeu com a comunhão e com projeto de vida e amor de Jesus? 2) Poderemos ser distinguidos e identificados através do Amor de Jesus que deve permear e performar a nossa vida? 3) Nossas comunidades se alimentam e se balizam pelo mesmo amor de Jesus, sendo sinais e testemunhas deste Amor?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


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