sábado, 16 de setembro de 2023

XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 18,21-35:

 


A leitura do capítulo dezoito do Evangelho segundo Mateus continua a partir dos vv.21-35. O discurso comunitário contido neste capítulo serve para iluminar e oferecer balizas para os discípulos de todos os tempos e lugares acerca do modo de se viver e crescer enquanto comunidade do Reino, e como seguidores e das seguidoras de Jesus de Nazaré. Ela deve ser espaço de acolhimento, de perdão e de promoção da vida das pessoas. Com a introdução que fora feita na meditação anterior, pode-se adentrar no horizonte do texto bíblico proposto e meditá-lo a partir do questionamento que Pedro faz a Jesus.

No v.21-22 temos o diálogo entre Pedro e Jesus acerca do Perdão: “Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?”. A pergunta pode soar intimista ao ser direcionada para eventualidade de o irmão pecar contra ele (contra a comunidade). Interessante notar, que, no texto da correção (fraterna) comunitária, Jesus foi quem introduziu a dinâmica do irmão pecador, colocando-a de forma geral. Agora, é o discípulo quem refaz a pergunta, projetando-a para si. A insistência do tema do pecado do outro deve apontar para alguma dificuldade que a comunidade está passando ao seu interno. A recorrência de temas indica que o ensinamento não está sendo bem compreendido ou sofre resistência.

O discípulo tenta induzir a resposta do Mestre, “até 7 vezes?”. O número sete indica plenitude. Aqui, portanto, terá o sentido de “plenitude da ação”.  Jesus responde: “Não te digo até sete vezes, mas setenta e sete vezes” (v.22). Ele recorda para os discípulos, através da resposta  que dá, a uma passagem de Gn 4,24, onde o autor-narrador menciona um personagem chamado Lamec. Se trata de um descendente de Caim, conforme o texto de Gn 3,1 – 4,26. Em Gn 4,23-24 se lê: “Lamec disse à suas mulheres: (...) Eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. É que Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes”. Este trecho encontra-se nos primeiros capítulos do Livro do Gênesis. Neles, o autor sagrado se serve de um gênero literário antigo chamado de formulas de origens (Toledoth), as quais tentavam explicar o surgimento dos nomes, dos lugares, das pessoas e das coisas. Em Gn 3, narra-se a origem da descendência de Adão. Mas também se aproveita para tentar explicar a origem da violência. Ela nasceria do assassinato de Abel, por seu irmão Caim. Neste capítulo, Deus, depois de dar falta de Abel, diz que “escuta o sangue de Abel clamar”. Clamar, aqui, refere-se a intenção da vingança. O que o autor do livro pretende ensinar aos israelitas? Uma possível origem da vingança no mundo, e, ao mesmo tempo, indicar que o caminho do violento será sempre pautado pela sede da retribuição. Nesse sentido, esta menção ao numero setenta e sete, recorda a passagem de Lamec, que está ligada à narrativa da morte de Abel, que tenta ser uma explicação para a entrada da violência no mundo. Este número é, portanto, uma representação da máxima vingança, para o A.T. Infelizmente, no tempo de Jesus dava-se muito mais ênfase a esta atitude que ao ensinamento que os autores de Gênesis pretendiam dar: não pode haver este tipo de atitude no meio do Povo de Israel.

A intenção de Pedro, que reflete o pensamento do grupo, que por sua vez, reproduz a mesma mentalidade equivocada do povo de Israel pode ser compreendida da seguinte forma: “quantas vezes se pode permitir ao irmão, que pecou contra o projeto do reino, voltar para comunidade?” “Existem limites a serem impostos?” “A comunidade pode ser vingativa para com aquele que errou?”

Jesus, ao responder “setenta e sete vezes” pretende, na verdade, corrigir o pensamento equivocado do povo e de seus discípulos. Não há espaço para vingança na comunidade de Jesus, nem limites ou condições a serem impostos. Sempre que a pessoa quiser voltar, deverá ser acolhida, mesmo que se vislumbre a sua queda. Assim, a  resposta do Senhor não visa estabelecer uma quantidade matemática (70x7), mas ilustrar a qualidade da atitude do perdão e da acolhida fraterna em relação ao irmão que errou. O discípulo que procura fazer parte da comunidade do Reino necessita romper com a lógica da retribuição, o pagar na mesma moeda. Deve ser meta da comunidade e do discípulo perdoar sempre. Não à máxima vingança! Sim, ao máximo perdão!  

Talvez, problemas na comunidade de Mateus deviam estar  surgindo. E para compreender ainda mais a mensagem da catequese bíblica que o autor recupera e transmite, deve se fazer uso do recurso da fusão dos horizontes – o horizonte narrado e o tempo da comunidade mateana. 

A comunidade se depara com o problema dos “Lapsis”, aqueles que caíram diante da perseguição do Império Romano e do Judaísmo da época. Eles renegavam a fé por medo de morrer. Mais tarde voltavam arrependidos para comunidade e pedia-lhe acolhimento. Existiam correntes severas de cristãos que pensavam que, uma vez acontecida a queda da pessoa, esta seria definitiva, e não se podia admiti-la à comunidade. Ora, o indivíduo renegou a fé por medo, e não por convicção. Então, nesse caso, ao invés da máxima vingança, ainda mais o máximo perdão deve tomar lugar na vida comunitária.

Voltando para o horizonte do texto. Jesus, percebendo que os discípulos, diante da exigência máxima do perdão, ainda permaneciam resistentes ilustra o ensinamento com uma parábola, dos v.23-34. Tomemos a primeira parte dela (23-27). Começa com a história de um rei-patrão a quem se lhe devia muito dinheiro. Ele manda chamar, primeiramente, a um servo que lhe devia dez mil talentos (de ouro ou prata). Um talento pesava em torno de 34,232kg. Multiplique-se por dez mil. Logo, uma soma impagável. Não tendo o servo condições de pagar, foi sentenciado a ser vendido como escravo, juntamente com sua mulher e filhos. O empregado, se ajoelhando diante do soberano, pediu um prazo para o pagamento da dívida. O poderoso, por sua vez, compadecido (cheio de misericórdia), atende-o, perdoando a divida. Parece um absurdo: o sujeito deve uma enorme fortuna, uma quantia impagável, está preste a ser penalizado, e o soberano o perdoa!

Ao sair dali, este servo se encontra com um colega que lhe devia a importância de cem denários (menos de 30g de ouro; ou equivalente a três meses de trabalho). O servo não compreende a dívida irrisória e pagável de seu companheiro. Este, por sua vez, suplicava-lhe um prazo para o pagamento. O colega não lhe dá ouvidos e o lança na prisão. Interessante, o primeiro foi alvo da misericórdia do seu soberano. Mas ele mesmo não usou de misericórdia para com o companheiro devedor. Os que ficaram sabendo da atitude do servo foram ao patrão e o delataram. Este, o chama e o interroga:“Servo malvado, eu te perdoei toda a tua dívida, porque me suplicaste. Não devias tu também ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?”. A partir da fala do rei, o que se esperava do servo? Assim como foi plenamente perdoado, desse o passo da misericórdia para com o irmão.

Mateus, recuperando o ensino de Jesus propõe, para sua comunidade, que ela seja, constantemente, multiplicadora do perdão e da misericórdia de Deus.

Chegamos, pois, à conclusão do discurso eclesial, com o v.35: “É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão”. Em Mt 6,9-13, Jesus ensinara a seus discípulos a rezar. Na oração do discípulo do Reino contém o pedido do perdão: “perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”. É um perdão gratuito de Deus, mas que será medido na vida do fiel a partir de seus atos.  Essa atitude do fiel servirá de modelo para atitude de Deus. Isto é profundamente comprometedor! Pois, na oração do Senhor, o discípulo pede ao Pai do Céu, que, no dia do juízo tenha a mesma atitude da pessoa no decorrer de sua história e de seu discipulado-missionário.

A conclusão da parábola toca diretamente o modo de proceder da comunidade. Quem não perdoar o irmão de coração, será tratado pelo Pai do Céus como um devedor desumano. Não caiamos no equívoco. Por maior que seja – no nosso modo de pensar – o perdão concedido ao irmão que errou contra mim ou contra a comunidade, ele ainda será menor que o perdão recebido diariamente do Pai do Céus. Portanto, quando a comunidade se dispõe a perdoar irrestritamente, imita o modo de proceder de Deus, donde provem um perdão sem limites.

Questionemo-nos se nos identificamos com algumas destas personagens da parábola; se com Pedro, que tenta impor ao Mestre sua maneira de ser (pensar) e agir. Interroguemos se, enquanto discípulos, e como comunidade, temos agido segundo o querer de Deus.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.


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