A liturgia nos introduz na leitura do
quarto discurso do Evangelho segundo Mateus, o “Discurso Eclesial” contido em
Mt 18,1-35 Através deste ensinamento, Jesus coloca para seus discípulos as
balizas para serem reconhecidos como membros da ekklesia, a comunidade do
Reino. Esta catequese é dirigida aos discípulos, primeiramente; mas no
horizonte da obra, o autor, recuperando o ensinamento do Cristo, aplica-o a vida e ao contexto de sua comunidade, dados os desafios que começam a surgir ao
seu interno e ao seu redor. Mateus, de sua parte, apresenta o conteúdo dos
ensinamentos contidos no Discurso para lançar luzes para a vida de sua
comunidade. O discurso visa levar a comunidade dos discípulos a pautar sua ação
pela justiça — modo de ser e de agir— própria do Reino.
No contexto amplo, Mateus narra o
início do capítulo mostrando Jesus exortando os discípulos a assumirem a
atitude exemplar dos pequeninos, com o gesto metafórico de colocar ao seu meio uma
criança, visando coibir a mentalidade e a tentação da superioridade ao interno
da comunidade (18,1-5). Em seguida, adverte para o perigo dos escândalos ao
interno da comunidade, os quais geram obstáculos aos pequeninos (os recém-iniciados
na Fé em Jesus e na vida comunitária, 18,6-9). Em seguida, tem-se a primeira
parábola do mestre ao interno do discurso, a da ovelha extraviada, Mt 18,10-14
(ela foi tornada assim pela intransigência das lideranças e dos escândalos ao
interno da comunidade).
O trecho bíblico de hoje, Mt 18,15-20, apresenta
o texto da chamada “correção comunitária”. Como bom mestre, Jesus propõe uma
situação: “Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em
particular, à sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão” (v.15).
O texto contido nos originais, em grego, omite o pronome obliquo de
segunda pessoa, “ti”, ficando assim: “se teu irmão pecar”. Qual o sentido deste
dito? Se o irmão começar a tomar atitudes incompatíveis com o projeto do Reino,
levando uma vida que não condiz com o modo de ser de Jesus. Nesse sentido, o
pecado reside no ato de se colocar contrário ao projeto prescrito em Mt 5 – 7,
no Sermão da Montanha. Qual o passo a ser dado? A pessoa deve ser chamada, e
ser mostrado a ela que o seu modo de vida está incompatível com o a ética do
Reino. Podendo, porém, haver dois resultados: positivo e negativo, que acompanharão
os próximos passos: o positivo, resulta na conversão (retomada do caminho do
discipulado), enquanto o negativo resultará na redução do individuo à categoria
de multidão. Algo desta natureza deve estar acontecendo na comunidade do
evangelista e, por isso, ele retoma este ensinamento de Jesus.
O termo irmão, utilizado nesta
pericope, reflete uma relação comunitária. Outro elemento que nos chama a atenção
é o fato de que não é o culposo que deve vir pedir perdão. Mas o irmão ofendido,
que deve ir ao encontro do faltoso. O verbo “corrigir”, utilizado na tradução
litúrgica pode dar sempre a impressão de superioridade a quem corrige e de
inferioridade ao corrigido. O verbo correto é convencer, isto é, fazer que o irmão tome consciência do erro cometido.
Não há espaço para superioridade e inferioridade ao interno da comunidade.
O texto de Mateus mostra que o
aconselhamento deve ser feito mais duas vezes, em caso de reação negativa da
outra parte, totalizando três vezes. O número três na teologia bíblica
simboliza a condição humana. Representam as três dimensões constitutivas da
pessoa: alma, espírito e corpo. Sua totalidade. Significa, aqui, a opção incondicional
pelo ser humano que a comunidade, constantemente, deverá exercitar. Por isso,
Jesus orienta, na segunda vez, a presença de mais duas testemunhas. De modo que
o procedimento siga as orientações de Dt 19,15, onde elas dão veracidade ao
ato, e, acima de tudo, a questão não seja decidida por uma só pessoa, evitando
o risco de que o procedimento ou a decisão venha a ser fruto do autoritarismo
do líder.
Os três passos da correção comunitária
ensinam o seguinte: A comunidade, e não o arbítrio, o humor ou gostinho das
lideranças, é a instância de decisão; ela deve ter os mecanismo para a
integração da pessoa no horizonte do projeto de Deus, ainda que deva ela mesma
encaminhar o indivíduo para recomeçar o caminho, para refazer o processo do
discipulado.
Nas três tentativas, Jesus deixa bem claro que existe a possibilidade da pessoa fechar-se diante do aconselhamento comunitário. A pessoa é livre em sua decisão e o Senhor preserva a liberdade do outro. Nada se impõe. Muito menos a comunidade deverá se colocar de modo impositivo diante do irmão que errou. Por isso, a atitude eclesial não é uma sentença escatológica, isto é, a palavra final na vida da pessoa. A última palavra é sempre a de Deus. O recurso do aconselhamento (correção) comunitário é, acima de tudo, pastoral. Porque ele recoloca a pessoa no grupo da multidão, a fim de busca-la novamente e habilita-la para o seguimento. A atitude da comunidade não é, e não poderá ser, a da exclusão. É contra isso que ela deve lutar, iluminada pelas palavras e atitude de Jesus. Por isso, as palavras contidas no v.17, “Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador público”, devem ser entendidas nesta perspectiva. Ser declarado como pagão ou pecador, nada mais é que reconhecer que o individuo ainda não deu o passo na fé. Mas ao se tratar de um membro da comunidade que já aderiu à Cristo, ser considerado uma pessoa como esta significa receber a chance de recomeçar e retomar o caminho. A comunidade deve ser lugar do perdão e espaço da misericórdia e ambiente de recomeço.
Jesus, novamente, assume um tom
rabínico. Tem um ensinamento importante a ser dado: “Em verdade vos digo,
tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na
terra será desligado no céu” (v.18). Com a mesma expressão utilizada
para Pedro (Mt 16,19), transmite à comunidade uma responsabilidade, e não um
poder retentor, relacionado ao perdão. O que Jesus quer dizer? Que quem não
perdoa retém o perdão de Deus. O perdão de Deus já foi dado, mas se torna
eficaz e operativo somente se traduz-se e se transforma em perdão aos irmãos.
Os vv.19-20 concluem: “De novo, eu vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isto vos será concedido por meu Pai que está nos céus. Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estou ali, no meio deles”. Eles devem ser entendidos a partir do contexto do aconselhamento comunitário. Ao contrário do que costumeiramente se pensa, este dito não alude à importância e a eficácia da oração comunitária. Céu refere-se ao âmbito do Pai. Terra refere-se ao lugar da comunidade cristã. O evangelista quer ensinar que existe uma estreita relação entre o Pai e a comunidade. Ele utiliza o verbo synfoneo (gr. συμφωνηω / συμφωνησωσιν), “estar de acordo”, “agir segundo a mesma sinfonia”. Daqui se origina o termo sinfonia. O que é uma sinfonia? Uma musica, que, a partir de uma partitura é tocada por instrumentos diferentes, num mesmo tom (na diversidade dos instrumentos). Nesse sentido, a comunidade cristã é uma sinfonia, e age como tal, quando toca sob a partitura do amor de Deus que perdoa, acolhe, recupera a pessoa, integra e gera vida. Sua partitura é o Evangelho. Ela deve, então, fazer sua oração para discernir a respeito da decisão a ser tomada em relação ao irmão. Ser consciente de que no meio dela está Jesus. Portanto, é uma oração que se faz na presença do ressuscitado, conduzida por seu Espírito. Assim espera Ele que a comunidade dos discípulos viva e atue na história.
Emerge do texto evangélico de hoje todo o esforço do evangelista em coibir, no interno de sua comunidade, qualquer postura vingativa, revanchista, autoritária, moralista por parte das lideranças comunitárias. Quando essas mentalidades são alimentadas, os indivíduos ficam completamente fragilizados e a comunidade se fragmenta. E passa a se submeter aos caprichos e às vontades das lideranças. Com isso, se distancia da sintonia e da sinfonia do Reino e do Pai.
Nossas comunidades têm sido espaço de perdão e acolhida? Sob qual sinfonia as nossas comunidades têm se pautado? Tem ela sido fiel à partitura do Reino anunciado e vivido por Jesus, a Palavra de Deus, que alimenta, gera conversão, promove perdão e vida? Nossas vidas e existências são prolongamentos da Comunidade do Reino, a Igreja. Por isso, como o texto se encontra com a vida? Nossas relações tem sido pautadas pela misericórdia, pelo perdão, pelo acolhimento? Nossas vidas tem sido espaços de reconciliação? Que estejamos sob a mesma partitura, sob um único maestro, executando a sinfonia do amor, do perdão e da vida.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.
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