O texto que a liturgia do quarto domingo
da páscoa nos propõe encontra-se em Jo 10,27-30. O capítulo décimo do Quarto
Evangelho apresenta a temática do pastoreio, com destaque para a alegoria do
Pastor Exemplar, ou “Belo Pastor”, dos vv.11-18. Qual o sentido deste texto dentro
desta escola pascal pela qual atravessamos? Orientar a Igreja para três atitudes
fundamentais para que se possa fazer a experiência com a vida plena que o
Ressuscitado oferece: escutar, conhecer e seguir.
A imagem do pastor/pastoreio e do rebanho nutria a fé e o imaginário religioso do povo de Deus, bem como alimentava as expectativas acerca da manifestação do Messias. Primeiramente, o rebanho/ovelha é um símbolo aplicado ao povo. Já a imagem do pastor era atribuída ao próprio Deus. Mas, no decorrer do tempo foi sendo aplicada às lideranças, os reis e sacerdotes, a alcunha de pastores (guias). A história mostrou que esta função não foi desempenhada “segundo o coração de Deus (cf. Ez 34)” pelas mesmas lideranças.
O contexto imediato do texto é o da festa da Dedicação. O evangelista situa Jesus nos arredores do templo por ocasião da festa da dedicação. Ela foi estabelecida por Judas Macabeu em 165 a.C., para celebrar a vitória sobre a dominação grega e a nova dedicação do templo e do altar, profanado pelos selêucidas (cf. 1 Mc 4,36-59). A festa acontecia em Jerusalém e durava oito dias. Ela encontra seu substrato bíblico no texto profético de Ezequiel, no qual o profeta faz uma enfática denúncia aos maus pastores de Israel, que apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2). Por isso, de acordo com o profeta, Deus toma a iniciativa de destituir os maus pastores e cuidar ele mesmo do rebanho (cf. Ez 34,11).
No nível do contexto próximo (lugar literário onde o texto se encontra situado) é que também se deve lançar o olhar, a fim de compreender o discurso de Jesus. Por isso, devemos voltar para o capítulo nono, o sinal realizado por Ele na cura do cego de nascença. Este consiste na Sua revelação enquanto enviado (hbr. siloé) para trazer a Luz ao mundo. O cego de nascença é, ao mesmo tempo, instrumento através do qual o Senhor revela a Glória de Deus, e metáfora para as lideranças do povo, as quais estavam cegas, optando conscientemente em não querer ver a Luz de Deus que se manifestava em Jesus de Nazaré. Isso é atestado pela mesma postura destas lideranças judaicas. Elas, que deveriam cuidar, acolher, promover a vida e a dignidade, acabavam expulsando do meio deles a gente simples, aqueles que representavam-lhes alguma ameaça, ou, porque, simplesmente viviam fora de seus padrões. Sabendo disso, Jesus vai ao encontro do ex-cego (Jo 9,35-37). Neste sentido, na alegoria do Bom Pastor, no capítulo seguinte, o evangelista opera um contraste entre as lideranças judaicas, que agiam na contramão do projeto de Deus, e Jesus, que age segundo o coração (de pastor) do Pai, mostrando-se exemplar, realizando aquilo que as lideranças do povo deveriam fazer, e não faziam.
Agora, entrando no horizonte do texto. Nos versículos 24-26, ocorre um embate entre os chefes do povo (os judeus) e Jesus. Eles O interpelam no templo acerca de sua identidade: “Até quando nos deixarás em suspense? Se tu és o Cristo, dize-nos abertamente” (v.24). A resposta do Senhor, infelizmente omitida na liturgia, é que dará início ao texto dominical: “Eu já vos disse, mas vós não credes. As obras que eu faço em nome do meu Pai, dão testemunho de mim. Vós, porém, não credes, porque não sois das minhas ovelhas” (25-26).
No v. 27, Jesus declara: “As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem”. Ele indica aqui a condição para ser “ovelha” (discípulo) de Jesus: ouvir e segui-lo. Ao dizer as condições necessárias para ser discípulo e, portanto, participar do redil, Jesus denuncia que os líderes do povo não fazem parte de seu rebanho, porque não aceitam nem querem escutar, tampouco segui-lo.
Escutar e seguir são dois verbos importantes para a compreensão da mensagem de Jesus. O verbo “escutar”, no ambiente bíblico, não significa simplesmente a capacidade ou faculdade biológico-física da percepção de um som ou ruído, mas é acima de tudo dar adesão completa àquele que fala, deixar-se transformar e, consequentemente, conduzir-se pelas suas palavras. A atitude da escuta orienta para outra ação do discípulo, o seguimento. O seguimento a Jesus, como consequência da escuta, significa seguir os mesmos caminhos dele, com liberdade e disposição.
No v.28, Jesus garante que as suas ovelhas recebem o supremo dom que Ele pode doar, a “vida eterna”, a garantia de que elas jamais se perderão e que ninguém poderá tirá-las de suas mãos. O que seria esta vida eterna da qual fala Jesus? A vida que pertence ao âmbito de Deus. Não é a continuação desta mesma vida, mas um dom superior em qualidade e em dinamicidade que está em Deus mesmo. Todavia, ela não é um prêmio dado àquelas pessoas boas no futuro. A opção por Jesus e ao seu Evangelho simbolizada pela escuta da sua voz e o seguimento à sua pessoa, eterniza a vida. Não é uma vida pós-morte, mas é uma vida tão plena, tão cheia de sentido e autêntica, que se torna indestrutível. Logo, vida eterna é a vida de todo homem e toda mulher que escuta a voz de Jesus e abraça o seu seguimento, a sua vida, o seu projeto. Tem-se, em Jesus, e, a partir dele, a oportunidade de se viver uma vida em tons de eternidade, e, portanto, ressuscitada, desde já!
“Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai. Eu e o Pai somos um” (29-30). Nestes dois versículos Jesus declara que o que vale em relação ao Pai vale também em relação a si, ou seja, os dois constituem uma única realidade. Por isso, ninguém consegue arrancar as ovelhas da mão de Jesus (cf. v 28b) pois tudo o que está em suas mãos, está, igualmente, nas mãos do Pai. A mão, conforme a antropologia bíblica, é metáfora do poder e do agir protetor de Deus, de Sua força e dos Seus cuidados enquanto pai e mãe.
Por isso, o evangelho de hoje nos questiona: 1) Somos verdadeiras ovelhas de Jesus? 2) Temos ouvido (aderido) à voz (evangelho e vida) de Jesus e, portanto, seguido a exemplaridade da vida do Pastor Ideal?
Pe. João Paulo Sillio.
Pároco de São Judas Tadeu, Avaré /Arquidiocese de Botucatu-SP.
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