A solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo,
Rei do Universo, apresenta a conclusão do discurso escatológico de Mateus (Mt
24 – 25), a última catequese que o evangelista reuniu a partir do ensinamento
de Jesus, que antecede aos momentos finais da missão pública do mestre, os
julgamentos religioso e político e sua morte. Mas para saborear a leitura,
meditação e compreensão deste texto, é preciso recuperar seu contexto imediato.
Ha três domingos, o Senhor falava dos mistérios do Reino novamente em parábolas.
A partir delas refletíamos sobre a ausência de alguém: o dono da casa, que
havia saído; o noivo, que tardava em chegar; o patrão, que viajava, deixando seus
bens em forma de talentos. E agora, na conclusão deste discurso escatológico,
Mateus nos desafia e nos diz: aquele que pensávamos ausente, sempre esteve
presente.
Não conseguíamos ver a sua gloria porque
ele se deixava ver através dos últimos, dos pequenos, dos desprezados e
marginalizados; naqueles que tinham fome, sede; não tinham roupa nem terra;
inclusive naqueles que estavam presos. Ele sempre esteve presente, mas, ao
invés de vermos sua glória, enxergávamos tão somente sua pobreza.
A realeza de Jesus, proposta para esta
solenidade com a qual se encerra este ciclo litúrgico, se pauta, acima de tudo,
pelo serviço, a entrega e a doação de si para aqueles que se encontram na
marginalização. O fio condutor da conclusão do ensinamento escatológico, e que
funcionará como que um refrão será o dito “todas
as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o
fizestes!”. O texto proposto é longo. Por isso deteremos nossa leitura
sobre alguns versículos para podermos beber e saborear a sua mensagem.
Jesus continua seu ensinamento, ao interno
do discurso escatológico, recorrendo a uma imagem muito presente na tradição de
Israel contida no Talmud. Ali se lê “Na outra vida, o Santo, que bendito seja,
tomará um rolo da Torá, o repousará sobre os joelhos e dirá, ‘os que estiverem
trabalhando, venham, pois receberão a sua recompensa’”. Como mestre autorizado,
conforme a perspectiva de Mateus, o Senhor muda o conteúdo deste dito da
tradição de Israel para mostrar o seguinte aos seus discípulos: aquilo que
determinará a vida da pessoa não será a relação que estabeleceu com a Lei, mas
a relação que ele estabeleceu com o seu irmão. Não se pode esquecer que, para o
evangelista, desde o início de seu evangelho, Jesus é Deus-conosco – Emanuel. Nesse
sentido, com Ele, a relação da humanidade não se dirige unicamente à Deus, mas
com Deus e como Deus ao homem. O Deus de Jesus não pedirá contas ao homem se
este honrou-O com sua fé, mas se foi capaz de amar como Ele.
O Jesus de Mateus apresenta-se como o
“Filho do Homem” glorificado. Esta personagem bíblica, aparece desde a
literatura apocalíptica de Daniel, em Dn 7. É uma figura misteriosa, simbólica,
que pode, por um lado aludir à condição humana da personagem em questão. Por
outro lado, representa aquele que foi escolhido e investido por Deus para a
tarefa de executar o Seu agir na história. É dessa personagem que Jesus se
serve também para conceber sua ação e seu ministério.
Qual a atitude desta figura escatológica? “Todos
os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros,
assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos” (v.32). Reunirá todos os
povos da terra, separará as ovelhas dos cabritos. Interessante que Mateus se
serve da expressão literal “todas as nações pagãs” (πάντα τὰ ἔθνη – panta tá
Ethne), para indicar que a imagem do juízo não será aplicado a Israel, mas a todas
as nações pagãs, isto é, que não fazem parte do povo israelita. Na perspectiva
de Mateus, o povo já recebeu seu juízo ao recusar a ação de Deus em Jesus. A
ação deste Filho do Homem será saber separar, como um pastor, as ovelhas dos
cabritos (lit. bodes). Sabe separar porque conhece bem aqueles que empenharam
sua vida para o bem, daqueles que não assumiram este caminho. As ovelhas são
símbolos para os que deram o passo ao discipulado. É importante notar que o
julgamento se dá ao interno do rebanho.
Qual caminho é este? Jesus elenca seis
atitudes, das quais ele é o destinatário, numa primeira análise, e que depois,
por ser uma parábola, o termo de comparação se abre para abraçar o faminto, o
sedento, o estrangeiro, o nu, o enfermo e prisioneiro. As atitudes que ele
descreve como sendo realizadas para ele não estão voltadas para o campo da
religiosidade, da observância ritual. Mas para o horizonte das relações humanas;
para as necessidades humanas, marcadas pelas situações de sofrimento e exclusão.
Na perspectiva de Jesus, o que salva o homem não é um comportamento religioso. Mas
um comportamento humano. Na ética que provém do ensinamento do Mestre, não deve
haver espaço para o seguinte raciocínio, “faço porque Deus mandou, e, por isso,
questão de fé”, mas “faço porque é questão de humanidade”.
Analisando e compreendendo as seis
atitudes. Dar de comer e de beber significa restituir as necessidades básicas e
vitais aos empobrecidos. É recuperar a dignidade humana e o direito de cada um,
já assegurados no decálogo, no código da Aliança em Ex 19 – 24. A Lei de Israel
já previa também o acolhimento ao estrangeiro, uma vez que o próprio povo vivera
dessa maneira no Egito. Receber o estrangeiro, era, ainda, uma forma de se
fazer experiência com Deus; a hospitalidade era a oportunidade de acolher o
próprio Deus que visitava seu povo. Basta recordar a experiência de Abraão,
junto do Carvalho de Mambré (Gn 18,1-15). Deus não quer seu povo reproduzindo
em seu meio as mesmas injustiças sofridas. O Senhor, na condição de mestre
autorizado inova, supera e provoca, ao incluir mais duas categorias de pessoas
que eram absolutamente marginalizadas e excluídas: os enfermos e os
encarcerados. Algo impensável para a sociedade daquele tempo.
Os enfermos eram, naquele contexto,
excluídos da vida social e religiosa, uma vez que a enfermidade,
equivocadamente, era concebida como castigo em virtude de algum pecado que a
pessoa ou seu parente tivesse cometido. Na perspectiva de Jesus, a visita ao
enfermo se torna um gesto de ruptura com esta mentalidade. Significa recuperar
a dignidade da pessoa através do cuidado para com ela. O prisioneiro era, naquele
ambiente, alguém que não suscitava compaixão ou piedade dos outros. Antes,
desprezo. Visitar um prisioneiro exigia também alimentá-lo, uma vez que os
carcereiros não executavam essa tarefa.
Via de regra, os encarcerados eram aqueles
que o Império rotulava como subversivo, perigoso, revolucionário, bandidos. Porém,
todas as vezes em que se menciona a categoria dos encarcerados no NT, esta
situação de encarceiramento se deve ao Evangelho. Nesse sentido, visitar os
prisioneiros seria, da parte dos discípulos do Reino, uma tomada de posição e
de atitude. Significava voltar-se contra a ideologia imperial e optar pelo
Evangelho.
Depois destas atitudes descritas na
narração segue-se o questionamento daqueles que foram contados e separados como
justos: “Senhor, quando foi que te vimos
com fome e te demos de comer? com sede e te demos de beber? Quando foi que te
vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando
foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?” A resposta do Filho
do Homem-Jesus soa reveladora: “Em
verdade eu vos digo, que todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de
meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (v.40). O menor, ao interno da
parábola, é o que foi colocado como o último, o desprezado, marginalizado e
excluído. São todos aqueles que, no tempo de Jesus, não eram contados como
pessoas.
O outro lado da moeda também é ilustrado
pela parábola. “Afastai-vos de mim,
malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos”
(v.41-46). O adjetivo “maldito” não pode ser entendido como uma sentença de
Deus dada ao homem. Deus não amaldiçoa o ser humano. Este dito contido na
parábola recorda o fratricídio de Abel, por Caim. Assim, Jesus é muito severo:
não oferecer ajuda, não responder às necessidades mais elementares do ser
humano, não socorrer o irmão em seus sofrimentos, equivale cometer a mesma
falta de Caim. É o mesmo que um homicídio. São considerados malditos pelos
pobres e marginalizados. Eles serão os juízes! Em virtude do egoísmo, do
fechamento diante das necessidades dos irmãos se tornam malditos.
A estas pessoas, Jesus não reprova por
terem feito algo mal, mas por não terem empenhado a vida pelo bem do irmão.
Tornando-se, inclusive, instrumentos de morte para o próximo.
Diante deste belíssimo texto, possamos
fazer a revisão de nossa vida e de nossa missão.
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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