A Quinta-feira Santa nos faz cruzar o
limiar (das celebrações) do Mistério Pascal de Cristo. Gosto de pensar naquela
pergunta que o filho mais novo faz para seu pai, ao iniciar a ceia pascal
judaica: “Por que esta noite é diferente das outras noites?” E o pai, com toda
a delicadeza de uma pedagogia tanto ritual como existencial se coloca a narrar
a libertação do povo de Israel, operada por Deus: “Porque nesta noite fomos
arrancados da casa da escravidão no Egito, e agora somos livres”. Esta noite
começa a ser para nós, povo da Nova Aliança, uma noite diferente, que culminará
na grande e solene noite da Vigília Pascal. Nesta noite recebemos a oportunidade
de termos nossos pés lavados a fim de podermos tomar parte / comungar do mesmo
gesto de Jesus.
Somos convidados a meditar nos gestos de
Jesus na ceia com os seus, o que ele realizará na oferta da própria vida na
Cruz. A última ceia carrega consigo, portanto, profecia e testemunho. Profecia,
porque ela se torna antecipação da entrega de Jesus mediante o gesto de lavar
os pés dos seus; e testemunho, porque convida, interpela e questiona a conduta
e a atitude do discípulo de todos os tempos, provocando-o a “seguir o exemplo”
do mestre e Senhor, num fazer memória de Seu gesto, que institui o sacramento
do amor serviçal (Ministério Ordenado), e do sacramento de seu Mistério Pascal,
presente entre nós (Eucaristia). O “fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24),
alcança sua plenitude histórico-salvífica quando estreitamente vinculado ao
“dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz” (Jo 13,15). Isto posto, podemos
meditar o texto desta noite santa retirado do Quarto Evangelho, Jo 13,1-15.
O leitor-discípulo é convidado, agora,
neste capítulo 13, a tomar parte do Ensinamento Final de Jesus; chamado a
entrar na dinâmica da sua Glória, através dos sinais realizados por Ele na
primeira parte do evangelho Joanino, os quais preparam para esta Hora, a
revelação da Glória de Deus em Jesus. Estes últimos ensinamentos constituem, ao
interno do Quarto Evangelho, o bloco literário que contém o chamado Testamento
Senhor (Jo 13 – 17). Um testamento é aquilo de muito precioso que é deixado ou
dado para quem se ama.
O autor do Quarto Evangelho situa a
narrativa no tempo: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). Diferentemente da
tradição sinótica (Mc, Mt e Lc), o evangelista situa a ceia de Jesus na véspera
da solenidade pascal. De modo que a ceia pascal seja celebrada no dia seguinte
(coincidentemente no Sábado, aquele ano). Por que? O evangelista não pretende
negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas diferenciar
para mostrar a superação dela: a páscoa do Senhor já não é mais a mesma do
templo. Celebrando antes, Jesus a substitui e a supera. A dele não exige
ofertas e sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava no
templo. Naquela, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a
imolação dos cordeiros. Na do Cristo com sua comunidade se celebra o triunfo da
vida na forma do amor, a mais eficaz manifestação visível do serviço; nessa,
não há morte, há doação de vida por amor. Com essa introdução, o evangelista
alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma páscoa subversiva; é essa que a
comunidade cristã deve celebrar.
O v.1 anuncia a chegada da hora, que vinha
sendo preparada desde os primeiros sinais realizados por Jesus, e, que, agora,
começa a ser levada a termo. É a hora de glorificar ao Pai, não com ritos, mas
com a doação livre da sua própria vida. Esta forma solene com a qual João
inicia o versículo primeiro, aponta para a finalidade da missão do Senhor:
manifestar o amor do Pai até o fim para os seus, que estavam no mundo. A
expressão “Amou-os até o fim” pretende indicar a plenitude e a intensidade do
gesto de Jesus.
O evangelista coloca o seu leitor diante
de personagens que servirão de espelhos para a comunidade. Primeiro,
focaliza-se internamente a personagem de Judas Iscariotes, ao informar que “o
Diabo (o divisor; o opositor)” o havia seduzido para que entregasse Jesus (cf.
Jo13,2). João, ao focalizar a consciência diabólica (cindida / dividida) de
Judas realiza um contraste com a consciência livre e orientada para o projeto
de Deus que Jesus possui: a de que o Pai, “tudo” (semitismo para Todos) havia
colocado nas mãos de Jesus (lit. “o Pai colocou Tudo e Todos nas mãos do
Filho”) (v.3), e de que a partir daquele momento começava seu retorno para
Deus, afim de prestar contas de sua missão, enquanto Seu enviado.
Com tal consciência, Jesus levanta-se da
mesa. Depõe seu manto. Um gesto simbólico: ao depor o manto está, na verdade,
despojando-se da imagem de mestre e de sua dignidade enquanto pessoa. Estava
sentado, ocupando a posição privilegiada de mestre que ensina. Cinge-se com uma
toalha à cintura. Era muito comum, antes de se executar alguma tarefa, amarrar
a veste na altura da cintura e dos rins, para que ela não atrapalhasse o
serviço. Portanto, cingir os rins significa a atitude de estar de prontidão para
o serviço. Em seguida derrama água na bacia e começa a lavar os pés dos
discípulos (v.4-5). Compreendamos o peso e a dramaticidade do gesto realizado por
Jesus. Tal era realizado por um escravo; quando não, pelos filhos ou pela
esposa, e, numa demonstração de profunda estima, pelo próprio anfitrião.
Todavia, continuava sendo um gesto de muita humilhação. Certos rabinos até
orientavam escravos judeus a não realizarem este gesto para com seus patrões.
Para Jesus, os distintivos de sua comunidade e de seus discípulos são o amor e
o serviço! Esta é a sua real e mais essencial identidade. Estes símbolos servem
para explicar o gesto de Jesus: uma transfiguração às avessas! Jesus depõe a
sua imagem de Senhor, e assume a forma de servo (Fl 2,7). Ele não veste os
paramentos sagrados dos sumos sacerdotes, mas os do serviço; não as alfaias da
casta sacerdotal, mas o avental dos servos.
Agora, desloquemos o olhar para outro
personagem que o evangelista faz aparecer na narrativa: Pedro. Consciente da
conotação humilhante daquele gesto, ele protesta: “Senhor, tu me lavas os
pés?”(v.6). Para o discípulo pescador de Betsaida e para os demais, tal gesto é
incompreensível. E, de fato, o é para aqueles que ainda não conheceram em
profundidade o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma, que, por
hora, eles não sabem o significado daquele gesto (isto só acontecerá à luz do
enaltecimento na cruz e mediante o dom do Espírito de Jesus Ressuscitado). Para
aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar
quando o superior se torna inferior! “Tu não me lavarás os pés, nunca!” (v.8),
declara o discípulo. O que o discípulo não quer aceitar e, demora a assimilar,
é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão dos valores; de que
o mestre se faça servo; que o senhor se torne escravo. Não aceita para não se
comprometer. Porque, uma vez que se deixa lavar os pés deverá fazer o mesmo.
Mas Jesus retruca, dizendo “que não terá
parte com ele, caso não deixe lavar os pés” (v.8b). Em termos joaninos, “não
ter parte” com o Senhor significa não participar da plenitude e inteireza de
sua vida, que atingirá a qualidade de uma vida eterna. Ter parte com Jesus,
significaria, por outro lado, ter em si a vida de Jesus, e torná-la
existencialmente vivida de novo, através da vida do discípulo e da comunidade.
Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço
radical.
Se Pedro (e qualquer outro discípulo) não
aceitar o gesto de Jesus, não participará do efeito da obra messiânica de
Jesus. A profundidade de seu gesto reside no fato de que ele é símbolo e
profecia da entrega / doação da própria vida. O gesto de lavar os pés acena
para o que Ele realizará mais adiante: sua vida consumada na cruz.
O Jesus joanino, depois da incompreensão
demonstrada por Pedro, volta à mesa, retoma sua condição de mestre e
explica-lhes, então, o gesto. De fato, os discípulos reconhecem-no como Mestre
e Senhor. Mas se Ele, nesta condição lhes lava os pés, devem também eles fazer
a mesma coisa: lavar os pés uns dos outros, tornando-se servidores uns dos
outros pelo amor fraterno. Não há como sentar-se à mesa (tomar parte da ceia do
Senhor, comungando de sua vida, corpo e sangue) sem que se tenha lavado os pés
dos irmãos. Não há Eucaristia sem lava-pés!
O texto suscita algumas perguntas para nós
mediante este Sagrado Tríduo: 1) Com qual das personagens me identifico: Judas,
que não mais se identifica com Senhor, a ponto de tornar-se adversário do
projeto de Jesus e de seu Pai, ou com Pedro, que reluta ainda em assimilar a
forma servidora de Jesus? 2) Tenho me deixado lavar os pés por Jesus (e com
isso aceitado o Seu Dom-Salvação), para poder lavar os pés dos irmãos (através
do serviço do amor/doação fraterno)? 3) Tenho crescido na consciência de que ao
comungar da Vida do Senhor (através de seu Corpo e Sangue), devo igualmente
comungar (assimilar e realizar) no lava-pés do Senhor? Não há Eucaristia sem
lava-pés!
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu / Arquidiocese de Botucatu – SP.
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