A liturgia deste segundo domingo de páscoa
apresenta a leitura e meditação do belíssimo texto de Jo 20,19-31, onde se
narra o encontro de Jesus Ressuscitado com a comunidade dos discípulos. Durante
esta oitava pascal – um grande domingo vivido na semana – a Igreja teve a
oportunidade de vivenciar uma série de encontros com o Senhor, após a
experiência do sepulcro vazio. Esta narrativa que meditaremos a seguir é a
imediata continuação do encontro de Madalena com o Cristo no jardim da
sepultura (Jo 20,11-18). Trata-se de uma verdadeira página de catequese que
deseja recuperar e transmitir uma força de ânimo para as comunidades e para os
discípulos de todos os tempos e lugares. Na verdade, este trecho evangélico
trata de mostrar a ressurreição da comunidade e do discípulo. Com efeito, o
texto transmite o sentido pleno da ressurreição de Jesus: ela é a nova criação
realizada por Deus para se gerar ressurreição nas pessoas.
Uma importante constatação: os relatos pascais, ou seja, que contém e transmitem a experiência com Jesus Ressuscitado são textos que narram o Encontro vivenciado entre a comunidade e Ele. Não são narrativas de aparições de um fantasma ou de uma alma desencarnada. Nada disso!
Há diferença entre aparição e encontro? Sim. Os textos evangélicos pós-pascais desejam afirmar que a iniciativa do encontro é do próprio Jesus. Sabendo das dificuldades que ela possui na assimilação do acontecido com Sua vida, Ele mesmo vai ao encontro dela. Esta, por sua vez, faz a experiência com o Senhor atualizando a memória e o sentido de Sua vida. Através desta dinâmica relacional, se pode fazer experiência com o Ressuscitado e com a ressurreição. Para ficar mais claro ainda, estes relatos são de Encontros porque Jesus não é uma alma penada (o que não existe); tampouco uma ideia ou memória psicológica; mas, um vivente. Somente com um vivo se pode experimentar encontros. Feitas estas considerações iniciais e a nível de contexto, se pode mergulhar com profundidade no texto.
O v.19 é denso: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam...” João nos situa no tempo e no espaço. A anotação que oferece, não é sem sentido pois ele deseja mostrar que o espaço e o tempo mudaram. Não é mais o amanhecer, mas o entardecer, o final daquele primeiro dia. A informação soa também como uma advertência: o dia avançou, e, com ele, se faz necessário que as consciências dos discípulos acerca do acontecido com Jesus tenham também avançado, e, portanto, mudado. Mesmo o dia tendo avançado, o cenário tendo mudado, a comunidade encontra-se fechada no medo.
O medo é o contrário da Fé. Ele, se não encarado, pode paralisar a pessoa. João pretende mostrar o estado de ânimo da comunidade frustrada pela morte de seu mestre: bloqueada na experiência do medo. Isso a impede de fazer a memória das palavras do Senhor que se disse vencedor do mundo. Há que se entender que não há mal em ter medo. Ele é um mecanismo natural da condição humana. Não se pode viver a vida de forma banal e destemida. Não é isso que o evangelho orienta e pede. Ao contrário, é necessário saber coexistir com ele, tomar a vida nas mãos e se aventurar a viver. Não cair na tentação de perder a vida por deixar-se bloquear pelo medo. No horizonte da vida daqueles primeiros discípulos, o medo era devido à captura do mestre, que poderia resultar na prisão também deles. Outra face que o medo oferece aos discípulos é aquela de assumir o sentido da vida do Senhor. E, agora, “sozinhos”, ou seja, sem a presença física do Cristo, terem de viver as consequências das escolhas.
“Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’” (v.19b). A superação do medo se dá com a certeza da presença de Jesus Ressuscitado que lhes comunica uma plenitude da vida. A Paz (hbr. Shalon) que ele oferece aos discípulos tem esse significado de plenitude dos bens divinos; a certeza de que Deus agiu de forma definitiva. E a maneira através da qual ele agiu foi a forma da vida de Seu Filho, que se torna o realizador das promessas de Deus. Não há porque ficar preso no medo quando se tem a certeza que em Jesus Deus já nos deu as condições de viver; é como se ele dissesse “tudo está realizado; eu vos abri o caminho para a vida; tome a vida nas mãos e se coloque a vive-la”.
Um detalhe importante: o evangelista apresenta Jesus em meio aos discípulos. A intenção é a de ensinar que quando o Senhor está em meio, a comunidade e o discípulo podem fazer experiência com Sua vida plena. O centro da vida de ambos deve ser o Cristo. Quando ele está no meio não existe maior ou menor. Todos são iguais; todos estão referidos à uma única direção: o Vivente. Em Jesus, Deus não está acima ou distante de todos, mas próximo.
“Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (v.20). Esta informação é profunda e carregada de significado. Primeiro: o evangelista quer mostrar para a sua comunidade que o Ressuscitado traz consigo as marcas da sua paixão e morte, isto é, o Crucificado é o Ressuscitado. Não é um fantasma. Não é alguém diferente. Segundo: o sentido que o Senhor deu à Sua existência, pois na antropologia bíblica as mãos são símbolos do agir. Mostra-las aos discípulos significa fazê-los compreender qual foi o caminho pelo qual decidiu pautar a sua missão. Eles precisam fazer memória de quando e para quem Jesus utilizou as mãos; a quem elas tocaram, a quem reergueram e ajudaram, a quem e para onde apontaram caminhos. Tocaram e acolheram os pecadores, os enfermos, os excluídos. Este foi o sentido do agir do Senhor. Com isso, ele está a dizer: “Se olhares as minhas mãos, isto é, fizeres experiência com o sentido da minha vida, de minhas ações, de meus gestos e opções, então fareis experiência de vida; de ressurreição. Compreendereis que esta minha forma de viver corresponde à vida em plenitude, a vida eterna”
Mostrar o lado aberto significa indicar que este agir foi motivado por puro amor, pois o lado alude ao coração e este é imagem do amor existencialmente vivido. Se as mãos e o lado dos discípulos forem semelhantes às do Senhor, então eles terão capacidade de gerar e promover ressurreição na vida das pessoas.
No v.21, ao conceder a Sua paz, Jesus abre os discípulos para o horizonte da missão: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio". O evangelista deseja ensinar para a sua comunidade que a obra e missão do Senhor tem origem no querer divino do Pai. Há uma comunhão de vida entre eles. Desta comunhão de plenitude de vida, ele deseja tornar participante o discípulo e a comunidade. Enviados pelo Cristo estarão em unidade e em comunhão com o Pai.
Depois de enviar os discípulos, Jesus realiza um gesto muito profundo e carregado de significado, que o evangelista soube recordar e transmitir: “soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (v.22). O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. O verbo soprar (gr. έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. No seu gesto, Jesus recria a comunidade e, através dela, a humanidade inteira, e, por isso, na Sua ressurreição acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida.
“A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor do Senhor é espalhado pelo mundo. Note-se, que este dinamismo de vida e amor – o Espírito – é dado à toda a comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. O Senhor não está dando um poder exclusivo aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo; transformar as realidades.
A comunidade eclesial tem a missão de eliminar o Pecado da realidade do mundo, porque ele não foi criado em Pecado, muito menos para o pecado. Todas as vezes que o discípulo e a comunidade conseguem retirar o irmão da situação de morte e fazê-lo viver, tirando da vida dele qualquer situação de pecado estará dando espaço para a ressurreição e a vida na existência daquela pessoa.
A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem. Ele não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilha da mesma mentalidade. Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo, era seu nome. Esta personagem, na verdade, é um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a toma-lo como seu gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades.
Tomé não estava com eles porque não tinha medo (oposição da Fé), e, por isso, não se deixou paralisar diante da experiência negativa. Portanto, circulava livremente e sem temor algum. Oito dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do Ressuscitado), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a realizar o gesto que havia pedido como prova. Todavia, ao invés de tocar o Senhor, o discípulo formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. O título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18), a qual tem a intenção de afirmar a identidade do Mestre.
Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos: muito questionadores, chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado.
Quais são os medos que ainda podem nos paralisar e à nossa comunidade? O Cristo tem ocupado o centro de nossas vidas e de nossas comunidades? Nossas comunidades conseguem aponta-lo aos que necessitam desta experiência de vida plena? Quais dimensões em mim precisam ser recriadas pelo Senhor?
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Paróquia São Judas Tadeu,
Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP
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