sábado, 5 de abril de 2025

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA QUARESMA – Jo 8, 1-11:


 

O evangelho proposto para o quinto domingo da quaresma é retirado do Quarto Evangelho, Jo 8,1-11, conhecido como episódio da “mulher adúltera”.O texto é rico de significado. Ele é uma página de misericórdia. E, pode-se dizer, uma cena de ressurreição. Por isso, a liturgia quaresmal se detém sobre ele neste último domingo. Por se tratar de uma intensa catequese, a liturgia deseja oferecer uma plena preparação para as celebrações do Mistério Pascal do Senhor. Na semana passada, fora proposta a parábola do Pai misericordioso como exemplo a ser imitado pelo discípulo. A dinâmica interna do texto convidava o leitor-ouvinte da Palavra a permitir ser abraçado por um Pai rico em misericórdia e assimilar esta mesma pedagogia em seu agir e em suas relações. Neste domingo, a liturgia convida os fiéis a uma experiência de ressurreição a partir do texto a ser meditado.

Uma primeira constatação importante: o texto em questão foi, até o século IV, recusado pelas comunidades cristãs. Motivo: a temática do perdão para um pecado que era considerado gravíssimo tanto na tradição judaica, como para a tradição cristã, o adultério. O episódio narra Jesus perdoando uma mulher em flagrante adultério. Nos primeiros séculos da tradição cristã, existiam três gravíssimos que exigiam a confissão e a prática da penitência pública: homicídio, adultério e apostasia. O segundo era, tanto quanto os outros dois, repudiado ao interno das comunidades cristãs pois representava um atentado grave ao corpo eclesial de Cristo, do qual a mulher era imagem/símbolo. Aqui, a tradição cristã mantém continuidade com a sua matriz judaica, que considerava o adultério um atentado e uma ruptura da Aliança. Devido a uma rígida disciplina penitencial em voga na Igreja primitiva, os onze primeiros versículos deste texto foram alvos de recusa. Imagine se um texto em que aparece uma ação “progressista” de Jesus em relação ao pecado do adultério pudesse ser bem recebida? Evidentemente que não. E, muito provavelmente, em decorrência da institucionalização do cristianismo, com suas lideranças masculinas, reproduzindo o ambiente machista e patriarcal da sociedade naquele contexto.  Quando os escritos já se encontravam consolidados, era prática comum que as comunidades fizessem um intercâmbio entre si dos textos, para um enriquecimento continuo da fé. A narrativa da mulher adúltera foi um destes texto que circulou avulsamente pelas comunidades cristãs até o século III.

Seguramente, o episódio pertence à Lucas e não à João. Pois o terceiro evangelista narra a ação misericordiosa de Jesus diante de uma mulher, ou seja, dois temas pertencentes à catequese lucana: a misericórdia e a presença e atuação das mulheres; bem como o vocabulário próprio que o texto de Lucas possui. Ora, o tema da misericórdia já foi ilustrado de modo realista através da parábola do Pai misericordioso (Lc 15). Mas onde, precisamente, este texto se encaixa ao interno do evangelho segundo Lucas? Muito seguramente no capítulo vinte e um, após Lc 21,37-38, onde se diz que, “Durante o dia ele ensinava no templo, mas à noite saía e pernoitava no chamado monte das Oliveiras. De manhã cedo, todo o povo ia até ele, no templo, para ouvi-lo”.

Uma segunda e importante constatação a nível de contexto é em relação à protagonista, a mulher adúltera. Ela foi identificada equivocadamente com Maria de Magdala (Madalena), fato que não tem fundamento algum. A personagem feminina deve ser mantida anônima. As personagens que não recebem nome nas narrativas funcionam como um expediente do autor. Estas se tornam um convite ao leitor-ouvinte a identificar-se com ela.

Os dois primeiros versículos nos situam na cena: “Jesus foi para o monte das Oliveiras. De madrugada, voltou de novo ao Templo. Todo o povo se reuniu em volta dele. Sentando-se, começou a ensiná-los” (v.1-2). De acordo com a cronologia joanina, Jesus se encontra em Jerusalém em virtude da festa das tendas. Uma festa importante para a fé judaica. Ela era alimentada com a expectativa da revelação do Messias. Daí o motivo do Senhor estar no monte das oliveiras. O local era usado pelos peregrinos que não encontravam hospedagem na cidade. A indicação “de madrugada” não é um dado apenas cronológico. Antes, teológico. Ela indica a transição da noite para o dia; a noite no Quarto Evangelho representa as trevas que envolvem o mudo e o discípulo. O dia, simboliza a luz. A madrugada significa a ruptura com as trevas, o surgimento de um novo dia; é um aceno à ressurreição, pois é o momento em que as mulheres descobrirão o sepulcro vazio de Jesus (cf. Lc 24,1). O texto quer acenar para alguma situação de ressurreição que acontecerá no decorrer da narrativa.

Jesus, durante seu ensinamento é bruscamente interrompido pelos escribas e fariseus, que trazem uma mulher, pega em flagrante adultério (cf. v.3). Este grupo era opositor a Jesus. Tratava-se da elite e liderança religiosa do judaísmo. Os peritos na lei (escribas) e os mestres da época (fariseus). Eles entabulam um diálogo com o Senhor: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?”  (vv. 4-5). São irônicos; chamam-no de Mestre, mas sem, de fato, reconhece-lo. E, pretendendo dele uma solução para um caso da lei, tentam enredá-lo numa armadilha. O autor do texto usa o termo peirâzo (gr. πειράζω), que significa tentação, provação. E essa atitude está sempre ligada ao inimigo e opositor de Deus. Nesse sentido, as autoridades religiosas estão agindo como colaboradoras do tentador. Agem diabolicamente para tirar de Jesus alguma resposta que o possa desmoralizar e desacreditar. Dependendo da resposta, Ele poderia perder toda a sua credibilidade como pregador e homem da misericórdia de Deus; se ele der uma resposta que contrarie a lei, poderia correr o risco de imediatamente ser preso, pois estava dentro do templo e não poderia ali ensinar doutrinas contrárias.

Aqui, se faz necessária uma terceira constatação. E essa, ajudará a compreender na totalidade e profundidade o gesto e o ensinamento de Jesus. A dinâmica do casamento e o adultério no costume da época. O casamento judaico acontecia em duas partes. A primeira, a promessa. Durante essa etapa – que durava um ano – o rapaz, com dezoito anos, desposava a menina (isso mesmo, menina) de doze anos, ficando ela prometida em casamento. E durante um ano preparavam-se para a segunda parte do casamento, as núpcias, quando a família da noiva (com treze anos) a levava para a casa do noivo. Em caso de adultério, o Talmude (livro que contém as interpretações da lei de Moisés) orientava dois procedimentos: 1º) se ocorrido na primeira etapa do casamento, a promissão, o adúltero e adúltera deveriam ser levados diante do tribunal (cf. Dt 22,23-24), com mais duas testemunhas, e serem ambos sentenciados à lapidação, que se realizava da seguinte forma: colocava-se a pessoa deitada num buraco escavado com dois metros de profundidade; em seguida, as duas testemunhas tomariam uma pedra de mais ou menos cinquenta quilos e deixavam cair sobre a pessoa fosso a dentro. Caso ela ainda sobrevivesse, então a plateia lançava sua pedra sobre dentro daquele buraco. 2º) Se o adultério acontecesse após a segunda etapa, a das núpcias, a mulher seria estrangulada.

Por que sublinhar isso? Justamente para quebrar aquela imagem, muitas vezes romantizada pelas tradições populares, de que esta mulher fosse mais velha. Não. Os lideres do povo falam de apedrejamento. E, tal execução, em caso de adultério, só era previsto para a primeira fase. Logo, a personagem é apenas uma menina; uma jovem entre seus doze ou treze anos. E a dúvida que não quer calar: onde está o homem que adulterou com ela? Que, no mínimo, deve tê-la forçado? O fato de somente a mulher ser acusada e exposta revela o machismo enraizado na sociedade e na religião da época. O homem, provavelmente considerado um “bom religioso”, não é mencionado.

Qual a atitude de Jesus, sabedor de tudo isso, frente aos chefes religiosos do povo? Com uma refinada ironia, Jesus se inclina e simula escrever no chão do templo. Em primeira análise está indiferente a eles. Mas, na verdade, ele está discernindo que resposta dar. O gesto de escrever no chão remete ao profeta Jeremias, capítulo dezessete, no qual o profeta diz que os pecados de Judá estão gravados na pedra e nas tábuas, porque se esqueceram do Senhor. Jesus, com esse gesto profético, denuncia a dureza do coração deles. Ele está a dizer que aqueles homens se tornaram semelhantes às pedras do chão do templo, duras e frias.

“Como persistiam em interrogá-lo, Jesus ergueu-se e disse: ‘Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra” (v. 7). Jesus não toma lado na discussão. Não problematiza a acusação. Ao dizer para atirar a pedra, ele está jogando na cara dos chefes que eles sabem o que deve ser feito; como devem começar o processo. Jesus devolve para eles a responsabilidade quanto a interpretação daquela lei. É como que se ele dissesse, “comecem vocês mesmos o processo da lapidação”. Porém, com uma condição previa e importantíssima, que constitui a reviravolta que o texto dá: a de examinarem-se primeiro: “Quem dentre vós estiver sem pecado...”

Jesus os chama, primeiramente, a um exame de consciência, faz a eles um apelo para a mudança daquela mentalidade, em outras palavras, convite à conversão. Convida a cada um a olhar para si próprio, apelando para o tribunal da consciência. Com essa resposta, o Cristo desarticula os acusadores da mulher, os falsos moralistas daquele e de todos os tempos. E, acima de tudo, salva uma vida.

Dos vv.8-9, o autor mostra a atitude dos escribas e fariseus. Desconcertados e, com certeza, furiosos, deixam o recinto e a mulher no meio da multidão com Jesus, começando pelos mais velhos. No local, o Senhor e a jovem ficam sozinhos. E, com um tom solene, Ele se levanta e começa o diálogo com ela, tratando-a com significativo respeito: “Mulher” (v.10). Na sociedade daquele tempo isso é um tratamento de honra para com a mulher. Ao passo que as autoridades do povo se dirigiram a ela diante dele com total desprezo (Pegamos essa mulher). Ao contrário, o Senhor devolve-lhe a dignidade; refaz-lhe a vida, ressuscita a sua dignidade e sua feminilidade. Pela primeira vez ela tem voz, e responde que ninguém a havia condenado.

Então, o relato é coroado pela fala de Jesus: “Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais” (v.11). Como entender este dito de Jesus? Não se trata de uma advertência. Mas de um incentivo diante da vida recuperada e nova que essa jovem readquire a partir da misericórdia que o Senhor exerce para com ela. Diante da vida devolvida e recuperada, Ele a encoraja a viver.

O texto de hoje, apresenta questões importantes para a nossa vida cotidiana e de fé. Nos coloquemos na cena, imaginemos ser aquelas pessoas que se encontram ao redor de Jesus e presenciam o desenrolar da cena e nos questionemos. Em que Deus nós cremos, no deus legalista, punitivo, vingativo, violento, cobrador? Ou num Deus que, de fato, é amor, misericórdia, doador de vida? A qual imagem de Deus nos apegamos e transmitimos, a dos escribas e fariseus, ou a de Jesus?

A forma e o modo como cremos e nos relacionamos com Deus determinam nossa forma e modo de relação com o irmão. Com Jesus, devemos estar dispostos a recuperar a vida dos irmãos e encoraja-los a viver esta vida ressuscitada; ao invés de lançar a pedra para derrubar, estender a mão para levantar e ressuscitar.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP


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