Um grande dom de Deus para a Igreja.
Joseph
Andreas Jungmann SJ
(novembro de 1889 - janeiro de 1975)
Introdução.
Uma obra grandiosa, que ninguém até poucos
anos atrás tinha sonhado, chegou à sua plenitude. Uma primavera, esboçada sobre
a terra há mais de meio século e florescida com exuberância em todo os lugares,
encontrou o seu coroamento numa rica colheita. Um grande dom
de Deus foi colocado em nossas mãos; um dom de Deus, mas, ao mesmo tempo, uma
obra de cujo nascimento e formação contribuíram também a mão do homem; uma
obra saída das mãos do homem, e, todavia, animada por aquela força vital que
Deus doou à sua Igreja.
Na constituição sobre a Sagrada Liturgia (Constitutio
de Sacra Liturgia), encontramos somente as linhas mestras sobre as quais se
deverão, no futuro, configurar o serviço divino da Igreja: os novos livros
litúrgicos e a completa realização virão só mais tarde; mas as decisões mais
importantes já foram tomadas. Indicamos brevemente algumas.
1. A liturgia não é imutável:
Graças à constituição, vem finalmente
quebrado aquele encanto que, há 400 anos, encerrava a nossa liturgia numa
situação de inalterabilidade e, portanto, de paralisia. Todos nós crescemos persuadidos
de que as coisas relacionadas à liturgia não só eram santas e inatacáveis, mas
também subtraídas de qualquer mutação, não muito diferentemente das Sagradas
Escrituras, da qual o passar dos séculos não pôde mudar uma só sílaba. Tal
absoluta inalterabilidade, foi, segundo o Concílio de Trento, algo de
necessária e de benéfica. Sob muitos aspectos as formas litúrgicas caíram, no
fim do período medieval, numa situação caótica. Os ataques muitas vezes
imprudentes dos reformadores, que negavam o sacerdócio ministerial e o caráter
sacrifical da Missa, e que haviam canceladas todas as distinções entre altar e
povo, tinham criado ulteriores confusões. Foi necessário um esclarecimento
inequívoco das prescrições, era necessária uma linha divisória clara entre o
altar e o povo e uma rigorosa adesão à língua latina era, pelo menos,
recomendável.
A situação, de então, foi substancialmente
mudada. Aquilo que no início desta nova época é absolutamente necessário, é,
que acima de tudo seja facilitado aos fiéis o acesso às riquezas do mistério de
Cristo e que a sua união com o altar venha reforçada.
A Constituição fala ousadamente sobre uma
reforma radical (instauratio) da liturgia; uma palavra que, a princípio,
alguns Padres do Concílio não leram sem um certo espanto. De fato, essa renovação
também inclui toda a orientação da Missa (art.50). Tal propósito mostra com
qual decisão o Concílio pretendia adequar-se às necessidades dos tempos e em que
medida a Igreja se revela um organismo vivo.
2. Descentralização.
Um outro traço característico da reforma é
constituído do fato de que se renuncia a uma liturgia absolutamente uniforme para
todos os países do mundo. Certamente, o direito dos ritos orientais
propriamente não foi discutido; mas foi visto em sua persistência ao longo dos
séculos, apenas um privilégio ou uma sobrevivência dos costumes antigos a serem
preservados com amor. Também na Igreja Latina existem, ainda hoje, algumas
variantes do rito romano: o rito ambrosiano, aquele dos dominicanos etc. Mas essas eram apenas exceções destinadas a
desaparecer. Para o restante, do Japão à África do Sul, do Alasca ao Ceilão, a
única medida legislativa foi a carta do missal. É compreensível que, desde as
igrejas jovens e florescentes dos países mais ricos e de civilizações antigas,
surgiram rumores de que eles pediram que fosse quebrada tal uniformidade. No
congresso litúrgico de Nimeg, realizado em 1959, estas novas vozes fizeram
escutar todo o seu peso.
Para a dizer a verdade, o princípio de uma
uniformidade absoluta era ainda desconhecido antes do Concílio de Trento. Aqui
se ateve à liturgia romana, mas cada província eclesiástica se acreditava no
direito de estabelecer a partir de si os particulares. Este princípio volta
agora a reviver. Enquanto, até agora, segundo o Cân.1257, o orgão competente
para o ordenamento litúrgico era exclusivamente a Santa Sé, agora se reconhece
aos bispos um maior espaço de iniciativa e se facultam às conferências
episcopais amplíssimos poderes (art. 36-40).
Ligado a tudo isso existe um outro fator:
hoje, ao interno da Igreja universal, não só as igrejas locais e particulares,
mas também a comunidade dos fiéis reunida hinc et nunc (no aqui e no
agora) recebe uma nova avaliação. A Igreja é, essencialmente, a assembleia dos
fieis; e o culto da Igreja é, em seu sentido próprio, essencialmente aquele que
cria a comunidade dos fieis sob a guia do sacerdote (ou ministro ordenado)
chamado do alto e delegado para aquele ofício. A Constitutio de Sacra
Liturgia (Constituição sobre a Sagrada Liturgia) preanuncia, em diversos passos, aquilo que na constituição
conciliar sobre o esquema De Ecclesia (Sobre a Igreja) foi posto em
evidência sobre a natureza da mesma Igreja: isto é, que ela é, em primeiro
lugar, chamada a considerar-se como Povo de Deus, cuja hierarquia deve ser servidora.
3. Participação ativa.
Disso derivam importantes consequências,
consequências que já são explicitadas. Não se faz justiça ao sentido da ação
litúrgica, somente pelo fato de que os fieis estejam presentes, ou só porque
eles ouvem a missa "com devoção". Espera-se deles uma "plena
et actuosa participatio (plena e ativa participação)" (art.14), uma "actuosa participatio interna
et externa (uma interna e externa participação ativa)" (art. 48). No fundo, com isso não se pede nada de novo.
Recorra-se ao significado concreto das antigas fórmulas litúrgicas: as orações
oficiais do sacerdote vêm ditas no plural, os fiéis são convidados, no Oremos à
oração, e se espera deles que expressem com o "amém" a sua confirmação.
Se, agora, por parte dos fiéis,
se pretende que participem consciente e inteligentemente na ação litúrgica,
deriva como consequência que também o véu da linguagem, cujos textos sagrados
estão envolvidos se tornem transparentes. Tal consequência é rapidamente
deduzida: mas ela deve realizar-se em
harmonia com a realidade das diferentes situações. Necessitar-se-á, por
exemplo, tornar possível esta total transparência na língua materna também para
as antigas civilizações, tais como aquelas do antigo oriente, para as quais as
bases culturais greco-romanas são tão estranhas quanto são para nós as
chinesas. E isso é contemplado no artigo 40. Uma parte dos povos neolatinos não
desejam abandonar o latim, transmitido a eles desde séculos, e cuja afeição por
esta consta [igualmente] de séculos. A eles precisará deixar a liberdade de preservarem-se na
antiga tradição, assim como precisará oferecer às outras populações a
possibilidade de uma utilização, ao menos parcial da língua materna. E isso foi
remediado a partir do conferimento de maiores poderes às Conferências
Episcopais, como se diz nos artigos 36 e 54.
Para a situação na Alemanha, onde muitas
dioceses conhecem desde data antiga, o chamado Deutsches Amt ("ofício
alemão, que constitui-se um privilegio para o território do antigo Reich,
desde o indulto romano de 24 de dezembro de 1943), a Constituição significa,
substancialmente, um passo ulterior, uma vez que, além das canções, as leituras
da missa agora também podem ser feitas em alemão. Estes deverão, na próxima
reforma dos livros litúrgicos, virem abundantemente enriquecidos (art. 50). Se
forem feitos um reto uso desta liberdade nos cantos - excelentes experimentos
estão já em ato - e, se na Oração dos Fiéis forem valorizada de forma nova também
a voz do povo (art. 53), poderemos dizer que as portas do santuário não
serão mais fechadas aos fiéis.
O reordenamento de todo o rito da missa,
graças ao qual a estrutura dela será
tornada mais visível, e seu significado e a conexão lógica das partes
individuais se destacarão com mais evidências (art.15), facilitará
ulteriormente a participação interior e exterior dos fieis. A delimitação
destas particularidades será a função (ou deverá) de uma comissão especial, e
se realizará num futuro próximo. A disposição com a qual o santo Padre, à luz
da reforma próxima, colocou em vigor já desde algum tempo, algumas inovações
que não precisavam de ulterior trabalho, devemos compreende-las como uma
garantia que, de modo particular a celebração eucarística dominical da inteira
comunidade reunida, representará um ponto culminante da vida cristã e,
contemporaneamente, uma nova fonte de energia (cf. art. 10).
Se pode afirmar que a reforma, de cuja
Constituição não oferece mais do que um esboço fundamental, constitui
uma verdadeira reforma pastoral e que, no campo do serviço divino, ela
corresponde àquela finalidade pastoral que os Papa João XXIII e Paulo VI se
propuseram.
4. Caráter pastoral da reforma.
Este caráter pastoral da reforma não é um
fruto espontâneo, de fato. A última grande reforma da liturgia, empreendida ha
400 anos, não foi, em primeira instancia, de caráter pastoral. Foi uma reforma
orientada apologética e historicamente. Através da eliminação de numerosas excrecências e deformações, ela buscava trazer à liturgia aquela forma que
havia possuído desde os primeiros séculos. Ela não pretendia vir ao encontro do
povo cristão, mas só preservá-lo dos erros. A reforma litúrgica do Concílio
Vaticano II se religa, também ela, às antigas tradições, antes, ainda mais
antigas, àquelas tradições, isto é, cuja liturgia era ainda uma expressão viva
de toda a comunidade. A este respeito, ela repete a palavra de ordem com a qual
Pio V pôs em vigor o novo Missal: a reforma deve agir segundo a norma dos
Padres antigos (art. 50). Mas a sua orientação é, hoje, requintadamente
pastoral.
Este retorno ao antigo deve realizar-se na
medida em que ele é vantajoso e necessário. A reforma dá um grande passo para vir
ao encontro do povo cristão. Se trata de uma reforma pastoral. Se as
disposições relacionadas à reforma da Missa tocam a todo o povo Cristão, aquela
relacionada ao Divinum Oficium (Ofício Divino) toca, de modo particular,
a todo o clero.
O lamento geral sobre este aspecto foi que
o Ofício Divino, assim como encontrava-se disposto no breviário, com suas oito
horas (canônicas) distribuídas num arco de um dia inteiro, não respondia, de
fato, a situação em mudança dos sacerdotes empenhados no cuidados das almas,
antes, mais de um sacerdote desejoso de cumprir com o dever do seu
breviário, desaprendia o que seria a verdadeira oração. Aqui, também é possível
reconhecer nas novas disposições a vontade de advertir para o cuidado das
almas. O breviário não deve ser um mero dever do qual pode ser liberado. Ele
deve ser uma Oração. Não se pretende mais do sacerdote o cumprimento de um Pensum,
destinado uma vez a cumprir a carga diária de um monge. Não será mais
necessário inserir uma serie de horas durante a manhã, violando a sua natureza
mesma, ou recuperá-las até tarde da noite. Ao contrário, a Constituição revela
também o esforço de restituir ao Ofício Divino um pouco daquela originária
significação, colocando em evidência as duas principais horas, Laudes e Vésperas,
para cuja recitação, na sua forma primitiva, solicitava-se também a
participação dos fiéis (art. 100).
No quadro destas ideias, acenamos também
para a nova avaliação daquelas funções e devoções que, sob a responsabilidade
dos bispos, foram praticadas em algumas dioceses e contidas nos respectivos
livros da piedade cristã (art.13, II parágrafo), de modo especial a "Celebração
da Palavra de Deus” (art. 35), no qual vem indicados novos caminhos para o
renascimento da genuína piedade cristã.
5. Limites e compromissos.
De tudo o que dissemos, ressaltamos alguns
pontos principais, dos quais podemos ver as grandiosas conquistas que a
Constituição assegurará para a liturgia da Igreja. Todavia, ninguém melhor do
que aqueles que trabalharam para a preparação da reforma sabem que nem todos os
desejos puderam ser satisfeitos. Isso não vale só para aquelas propostas que,
desde o dia do anúncio do Concílio, numa visão do futuro, foram
apresentadas por consultores competentes ou mesmo, por escrito e por voz; mas
também àqueles que na Aula Concilii foram sustentados por vozes
autorizadas.
A prescindir do fato que muitos problemas
foram deixados suspensos, porque suas soluções podem ser confiadas somente à
Comissões especiais que agora deverão se colocar à trabalho, o empenho da
reforma pastoral deverá buscar um compromisso com o peso da tradição, e não só
da venerável Tradição dos primeiros séculos, mas também aquela mais recente, na
qual nós mesmos crescemos.
A linha de tal compromisso deve ser
regulada segundo aquelas forças que, por hora atuais, são operantes na Igreja.
Eis porque numerosos artigos revelam os caminhos do compromisso. Um exemplo:
como, na discussão da segunda sessão, a respeito da pergunta se no conceito de
Igreja se deveria colocar em primeiro plano a hierarquia ou povo de Deus, os
padres responderam de forma diferente, assim também na preparação do esquema
litúrgico se respondeu de forma díspar à pergunta se a Oração litúrgica adquire
sua plena validade só se atuada sob a autorização da máxima autoridade
hierárquica que legitima tal Oração em nome da Igreja, ou se para tal escopo
baste o dado, de fato, de que a comunidade está reunida hinc et nunc sob
a autoridade delegada do ministro oficial, sendo já, tal comunidade, Igreja.
Um problema teórico, do qual consequências
de grande alcance derivam (conferir, a este respeito os artigos 13, 84, 98). Um
outro exemplo de decisões de compromisso é a resposta dada ao problema se o
breviário assim como ele nasceu da tradição da Oração coral dos monges e das
comunidades dos cônegos, devesse ser substituído por um novo breviário para os
sacerdotes seculares. Uma resposta decisivamente afirmativa a tal questão não
seria muito audaciosa. E, todavia, foi escolhida uma via intermédia. Para
concluir, muitos esperariam uma solução radical do problema concernente à
língua da liturgia.
Nesta, e em outras questões semelhantes
deve-se recordar que a obra reformadora da Constituição representa tudo aquilo
que foi possível reunir no ano de 1963, por parte de uma assembleia de dois mil
bispos provenientes de todos os povos do mundo, numa época em que não só no
mundo, mas também na Igreja estava em caminho uma evolução. Muitas portas foram
abertas e novas perspectivas de possibilidade litúrgicas foram autorizadas.
Devemos agradecer a Deus por aquilo que ele nos deu.
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