sábado, 21 de março de 2020

TÓPICOS DE LITURGIA - Jungmann: Um grande dom de Deus para a Igreja (artigo de 1964 / Traduzido na íntegra).




Um grande dom de Deus para a Igreja.

Joseph Andreas Jungmann SJ 
(novembro de 1889 - janeiro de 1975)

Introdução.

Uma obra grandiosa, que ninguém até poucos anos atrás tinha sonhado, chegou à sua plenitude. Uma primavera, esboçada sobre a terra há mais de meio século e florescida com exuberância em todo os lugares, encontrou o seu coroamento numa rica colheita. Um grande dom de Deus foi colocado em nossas mãos; um dom de Deus, mas, ao mesmo tempo, uma obra de cujo nascimento e formação contribuíram também a mão do homem; uma obra saída das mãos do homem, e, todavia, animada por aquela força vital que Deus doou à sua Igreja.

Na constituição sobre a Sagrada Liturgia (Constitutio de Sacra Liturgia), encontramos somente as linhas mestras sobre as quais se deverão, no futuro, configurar o serviço divino da Igreja: os novos livros litúrgicos e a completa realização virão só mais tarde; mas as decisões mais importantes já foram tomadas. Indicamos brevemente algumas.

 1. A liturgia não é imutável:

Graças à constituição, vem finalmente quebrado aquele encanto que, há 400 anos, encerrava a nossa liturgia numa situação de inalterabilidade e, portanto, de paralisia. Todos nós crescemos persuadidos de que as coisas relacionadas à liturgia não só eram santas e inatacáveis, mas também subtraídas de qualquer mutação, não muito diferentemente das Sagradas Escrituras, da qual o passar dos séculos não pôde mudar uma só sílaba. Tal absoluta inalterabilidade, foi, segundo o Concílio de Trento, algo de necessária e de benéfica. Sob muitos aspectos as formas litúrgicas caíram, no fim do período medieval, numa situação caótica. Os ataques muitas vezes imprudentes dos reformadores, que negavam o sacerdócio ministerial e o caráter sacrifical da Missa, e que haviam canceladas todas as distinções entre altar e povo, tinham criado ulteriores confusões. Foi necessário um esclarecimento inequívoco das prescrições, era necessária uma linha divisória clara entre o altar e o povo e uma rigorosa adesão à língua latina era, pelo menos, recomendável.

A situação, de então, foi substancialmente mudada. Aquilo que no início desta nova época é absolutamente necessário, é, que acima de tudo seja facilitado aos fiéis o acesso às riquezas do mistério de Cristo e que a sua união com o altar venha reforçada.

A Constituição fala ousadamente sobre uma reforma radical (instauratio) da liturgia; uma palavra que, a princípio, alguns Padres do Concílio não leram sem um certo espanto. De fato, essa renovação também inclui toda a orientação da Missa (art.50). Tal propósito mostra com qual decisão o Concílio pretendia adequar-se às necessidades dos tempos e em que medida a Igreja se revela um organismo vivo.

 2. Descentralização.

Um outro traço característico da reforma é constituído do fato de que se renuncia a uma liturgia absolutamente uniforme para todos os países do mundo. Certamente, o direito dos ritos orientais propriamente não foi discutido; mas foi visto em sua persistência ao longo dos séculos, apenas um privilégio ou uma sobrevivência dos costumes antigos a serem preservados com amor. Também na Igreja Latina existem, ainda hoje, algumas variantes do rito romano: o rito ambrosiano, aquele dos dominicanos etc. Mas essas eram apenas exceções destinadas a desaparecer. Para o restante, do Japão à África do Sul, do Alasca ao Ceilão, a única medida legislativa foi a carta do missal. É compreensível que, desde as igrejas jovens e florescentes dos países mais ricos e de civilizações antigas, surgiram rumores de que eles pediram que fosse quebrada tal uniformidade. No congresso litúrgico de Nimeg, realizado em 1959, estas novas vozes fizeram escutar todo o seu peso.

Para a dizer a verdade, o princípio de uma uniformidade absoluta era ainda desconhecido antes do Concílio de Trento. Aqui se ateve à liturgia romana, mas cada província eclesiástica se acreditava no direito de estabelecer a partir de si os particulares. Este princípio volta agora a reviver. Enquanto, até agora, segundo o Cân.1257, o orgão competente para o ordenamento litúrgico era exclusivamente a Santa Sé, agora se reconhece aos bispos um maior espaço de iniciativa e se facultam às conferências episcopais amplíssimos poderes (art. 36-40).

Ligado a tudo isso existe um outro fator: hoje, ao interno da Igreja universal, não só as igrejas locais e particulares, mas também a comunidade dos fiéis reunida hinc et nunc (no aqui e no agora) recebe uma nova avaliação. A Igreja é, essencialmente, a assembleia dos fieis; e o culto da Igreja é, em seu sentido próprio, essencialmente aquele que cria a comunidade dos fieis sob a guia do sacerdote (ou ministro ordenado) chamado do alto e delegado para aquele ofício. A Constitutio de Sacra Liturgia (Constituição sobre a Sagrada Liturgia) preanuncia, em diversos passos, aquilo que na constituição conciliar sobre o esquema De Ecclesia (Sobre a Igreja) foi posto em evidência sobre a natureza da mesma Igreja: isto é, que ela é, em primeiro lugar, chamada a considerar-se como Povo de Deus, cuja hierarquia deve ser servidora.

3. Participação ativa.

Disso derivam importantes consequências, consequências que já são explicitadas. Não se faz justiça ao sentido da ação litúrgica, somente pelo fato de que os fieis estejam presentes, ou só porque eles ouvem a missa "com devoção". Espera-se deles uma "plena et actuosa participatio (plena e ativa participação)" (art.14), uma "actuosa participatio interna et externa (uma interna e externa participação ativa)" (art. 48). No fundo, com isso não se pede nada de novo. Recorra-se ao significado concreto das antigas fórmulas litúrgicas: as orações oficiais do sacerdote vêm ditas no plural, os fiéis são convidados, no Oremos à oração, e se espera deles que expressem com o "amém" a sua confirmação.

Se, agora, por parte dos fiéis, se pretende que participem consciente e inteligentemente na ação litúrgica, deriva como consequência que também o véu da linguagem, cujos textos sagrados estão envolvidos se tornem transparentes. Tal consequência é rapidamente deduzida:  mas ela deve realizar-se em harmonia com a realidade das diferentes situações. Necessitar-se-á, por exemplo, tornar possível esta total transparência na língua materna também para as antigas civilizações, tais como aquelas do antigo oriente, para as quais as bases culturais greco-romanas são tão estranhas quanto são para nós as chinesas. E isso é contemplado no artigo 40. Uma parte dos povos neolatinos não desejam abandonar o latim, transmitido a eles desde séculos, e cuja afeição por esta consta [igualmente] de séculos. A eles precisará deixar a liberdade de preservarem-se na antiga tradição, assim como precisará oferecer às outras populações a possibilidade de uma utilização, ao menos parcial da língua materna. E isso foi remediado a partir do conferimento de maiores poderes às Conferências Episcopais, como se diz nos artigos 36 e 54.

Para a situação na Alemanha, onde muitas dioceses conhecem desde data antiga, o chamado Deutsches Amt ("ofício alemão, que constitui-se um privilegio para o território do antigo Reich, desde o indulto romano de 24 de dezembro de 1943), a Constituição significa, substancialmente, um passo ulterior, uma vez que, além das canções, as leituras da missa agora também podem ser feitas em alemão. Estes deverão, na próxima reforma dos livros litúrgicos, virem abundantemente enriquecidos (art. 50). Se forem feitos um reto uso desta liberdade nos cantos - excelentes experimentos estão já em ato - e, se na Oração dos Fiéis forem valorizada de forma nova também a voz do povo (art. 53), poderemos dizer que as portas do santuário não serão mais fechadas aos fiéis.

O reordenamento de todo o rito da missa, graças ao qual a estrutura dela será  tornada mais visível, e seu significado e a conexão lógica das partes individuais se destacarão com mais evidências (art.15), facilitará ulteriormente a participação interior e exterior dos fieis. A delimitação destas particularidades será a função (ou deverá) de uma comissão especial, e se realizará num futuro próximo. A disposição com a qual o santo Padre, à luz da reforma próxima, colocou em vigor já desde algum tempo, algumas inovações que não precisavam de ulterior trabalho, devemos compreende-las como uma garantia que, de modo particular a celebração eucarística dominical da inteira comunidade reunida, representará um ponto culminante da vida cristã e, contemporaneamente, uma nova fonte de energia (cf. art. 10).

Se pode afirmar que a reforma, de cuja Constituição não oferece mais do que um esboço fundamental, constitui uma verdadeira reforma pastoral e que, no campo do serviço divino, ela corresponde àquela finalidade pastoral que os Papa João XXIII e Paulo VI se propuseram.

4. Caráter pastoral da reforma.

Este caráter pastoral da reforma não é um fruto espontâneo, de fato. A última grande reforma da liturgia, empreendida ha 400 anos, não foi, em primeira instancia, de caráter pastoral. Foi uma reforma orientada apologética e historicamente. Através da eliminação de numerosas excrecências e deformações, ela buscava trazer à liturgia aquela forma que havia possuído desde os primeiros séculos. Ela não pretendia vir ao encontro do povo cristão, mas só preservá-lo dos erros. A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II se religa, também ela, às antigas tradições, antes, ainda mais antigas, àquelas tradições, isto é, cuja liturgia era ainda uma expressão viva de toda a comunidade. A este respeito, ela repete a palavra de ordem com a qual Pio V pôs em vigor o novo Missal: a reforma deve agir segundo a norma dos Padres antigos (art. 50). Mas a sua orientação é, hoje, requintadamente pastoral.

Este retorno ao antigo deve realizar-se na medida em que ele é vantajoso e necessário. A reforma dá um grande passo para vir ao encontro do povo cristão. Se trata de uma reforma pastoral. Se as disposições relacionadas à reforma da Missa tocam a todo o povo Cristão, aquela relacionada ao Divinum Oficium (Ofício Divino) toca, de modo particular, a todo o clero.

O lamento geral sobre este aspecto foi que o Ofício Divino, assim como encontrava-se disposto no breviário, com suas oito horas (canônicas) distribuídas num arco de um dia inteiro, não respondia, de fato, a situação em mudança dos sacerdotes empenhados no cuidados das almas, antes, mais de um sacerdote desejoso de cumprir com o dever do seu breviário, desaprendia o que seria a verdadeira oração. Aqui, também é possível reconhecer nas novas disposições a vontade de advertir para o cuidado das almas. O breviário não deve ser um mero dever do qual pode ser liberado. Ele deve ser uma Oração. Não se pretende mais do sacerdote o cumprimento de um Pensum, destinado uma vez a cumprir a carga diária de um monge. Não será mais necessário inserir uma serie de horas durante a manhã, violando a sua natureza mesma, ou recuperá-las até tarde da noite. Ao contrário, a Constituição revela também o esforço de restituir ao Ofício Divino um pouco daquela originária significação, colocando em evidência as duas principais horas, Laudes e Vésperas, para cuja recitação, na sua forma primitiva, solicitava-se também a participação dos fiéis (art. 100).

No quadro destas ideias, acenamos também para a nova avaliação daquelas funções e devoções que, sob a responsabilidade dos bispos, foram praticadas em algumas dioceses e contidas nos respectivos livros da piedade cristã (art.13, II parágrafo), de modo especial a "Celebração da Palavra de Deus” (art. 35), no qual vem indicados novos caminhos para o renascimento da genuína piedade cristã.

 5. Limites e compromissos.

De tudo o que dissemos, ressaltamos alguns pontos principais, dos quais podemos ver as grandiosas conquistas que a Constituição assegurará para a liturgia da Igreja. Todavia, ninguém melhor do que aqueles que trabalharam para a preparação da reforma sabem que nem todos os desejos puderam ser satisfeitos. Isso não vale só para aquelas propostas que, desde o dia do anúncio do Concílio, numa visão do futuro, foram apresentadas por consultores competentes ou mesmo, por escrito e por voz; mas também àqueles que na Aula Concilii foram sustentados por vozes autorizadas.

A prescindir do fato que muitos problemas foram deixados suspensos, porque suas soluções podem ser confiadas somente à Comissões especiais que agora deverão se colocar à trabalho, o empenho da reforma pastoral deverá buscar um compromisso com o peso da tradição, e não só da venerável Tradição dos primeiros séculos, mas também aquela mais recente, na qual nós mesmos crescemos.

A linha de tal compromisso deve ser regulada segundo aquelas forças que, por hora atuais, são operantes na Igreja. Eis porque numerosos artigos revelam os caminhos do compromisso. Um exemplo: como, na discussão da segunda sessão, a respeito da pergunta se no conceito de Igreja se deveria colocar em primeiro plano a hierarquia ou povo de Deus, os padres responderam de forma diferente, assim também na preparação do esquema litúrgico se respondeu de forma díspar à pergunta se a Oração litúrgica adquire sua plena validade só se atuada sob a autorização da máxima autoridade hierárquica que legitima tal Oração em nome da Igreja, ou se para tal escopo baste o dado, de fato, de que a comunidade está reunida hinc et nunc sob a autoridade delegada do ministro oficial, sendo já, tal comunidade, Igreja.

Um problema teórico, do qual consequências de grande alcance derivam (conferir, a este respeito os artigos 13, 84, 98). Um outro exemplo de decisões de compromisso é a resposta dada ao problema se o breviário assim como ele nasceu da tradição da Oração coral dos monges e das comunidades dos cônegos, devesse ser substituído por um novo breviário para os sacerdotes seculares. Uma resposta decisivamente afirmativa a tal questão não seria muito audaciosa. E, todavia, foi escolhida uma via intermédia. Para concluir, muitos esperariam uma solução radical do problema concernente à língua da liturgia.

Nesta, e em outras questões semelhantes deve-se recordar que a obra reformadora da Constituição representa tudo aquilo que foi possível reunir no ano de 1963, por parte de uma assembleia de dois mil bispos provenientes de todos os povos do mundo, numa época em que não só no mundo, mas também na Igreja estava em caminho uma evolução. Muitas portas foram abertas e novas perspectivas de possibilidade litúrgicas foram autorizadas. Devemos agradecer a Deus por aquilo que ele nos deu.

(O presente artigo consta na Liturgisches Jahrbuch. Vierteljahreshefte fuer Fragen des Gottesdienstes, herausgegeben vom Liturgischen Institut, Heft 1-2-1964. Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung, Muenster i. W. Tradução de uma versão italiana do referido artigo: Pe. João Paulo Sillio, presbítero da Arquidiocese de Botucatu – SP; bacharel em Teologia pela FAJE)



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