sábado, 20 de agosto de 2022

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE MARIA - Lc 1,39-56:

 


A Igreja celebra a Solenidade da Assunção de Maria, Mãe do Senhor, aos céus. Um dogma de fé relacionado, numa primeira análise à pessoa de Maria. Todavia, ao lançarmos um olhar para o fundamento do dogma – da verdade de fé proclamada e celebrada, acima de tudo – os dogmas marianos estão radicalmente ligados e fundamentados na fé cristológica. Dito de outra maneira, só se pode dizer alguma coisa a respeito de Maria, porque, antes, e, primeiramente, foi dito sobre a pessoa de Jesus. Aqui urge corrigir a expressão cunhada pela mariologia antiga, “Sobre Maria nunca se poderá falar suficientemente (De Maria Nunquam Satis)”. Diz-se o suficiente a respeito dela e, tão somente o necessário, porque foi afirmado primeira e suficientemente acerca de Jesus.

O dogma mariano da assunção reafirma a índole escatológica da Igreja peregrina, da qual Maria é imagem – ícone. Ou seja, ao declarar e professar que Maria foi acolhida na Glória de Deus, a Igreja confessa sua fé na ressurreição. Ele reafirma e reflete o futuro e fim escatológico que está reservado para todo o crente: a vida definitiva e plena em Deus. Dizer que Maria foi assunta aos céus significa dizer que sua vida e história foram assumidas por Deus, em seu projeto salvador e redentor, em virtude do fato de que ela assumiu para si o projeto de Deus, vivendo como verdadeira discípula do Reino.

No Evangelho de Lucas, ela é o exemplo que deve ser assumido por todos aqueles que querem ser discípulos de Jesus e viver segundo a ética do Reino. O catequista bíblico faz questão de tipificar em Maria as atitudes fundamentais que a pessoa deve possuir para se tornar discípulo e discípula do Reino: ouvir a Palavra de Deus, acolhê-la (confronta-la) e frutifica-la através da vida concreta, em amor e serviço aos outros. Estas características estão bem ilustradas na cena da Anunciação do nascimento do Salvador versículos antes. Na cena anterior (Lc 1,25-38), Maria, ao encarnar em si a Palavra geradora de vida, se assume serva desta mesma Palavra e parte apressadamente para a região montanhosa da Judéia, a fim de assistir a sua parenta, a antes estéril Isabel, de idade avançada, e, agora, grávida. A esterilidade era uma vergonha naquele tempo. Maria decide-se por viver a Palavra de Deus colocando-se ao lado dos envergonhados e humilhados. Assume, portanto, a Palavra libertadora e geradora de vida sendo instrumento de libertação. Isso posto, podemos adentrar no horizonte do texto de hoje. Maria, ao assumir viver pela Palavra, se torna Sua servidora, e é capaz de assumir os irmãos.

Na casa de Zacarias, ocorre o encontro entre as duas mulheres. Elas ocupam o lugar central da narrativa. Maria, por primeiro saúda Isabel provavelmente com o significativo  Shalom. No entanto, prevalece para o narrador e leitor o interesse neste primeiro encontro: as duas mulheres que trazem consigo as duas crianças. É o encontro entre o Fruto do Espírito, Jesus, com o sinal profético do Espírito, João.

Então, Isabel profere uma benção (hbr. Berakah) à Maria. Precisamos compreender que a benção bíblica é sempre, e, em primeiro lugar, uma “bendizência (louvor)” a Deus por aquilo que ele fez. Não se trata de um ato mágico. A fé judaico-cristã não admite qualquer compreensão ou concepção mágica nas mediações religiosas.

Isabel bendiz a Deus pelo acontecido em Maria e com ela mesma. A mãe de João reconhece, pelo Espírito, Aquele que está presente no seio de Maria. O estremecimento de João desde o seio de Isabel, indica que desde o ventre materno ele já profetiza a vinda do Senhor, já O sente, e manifesta Sua presença (v.42).

O evangelista faz aqui um midrash – uma interpretação – do texto de 1Cr 15,28 e 2Cr 5,13, onde o povo aclama a presença de Deus na Arca da Aliança. Também Davi, quando da visita da Arca em sua casa, exclama: “como poderá vir a mim a Arca do Senhor? (cf 2Sm 6,9)”, acolhendo-a, depois, com jubilo e danças. Estes textos servem de pano de fundo para esta narrativa da visita a Isabel para indicar o seguinte: Maria é, agora, a nova Arca que traz a presença salvífica do Senhor, em meio ao povo. Isabel profere, então, uma bem-aventurança à Maria: “bem-aventurada aquela que acreditou”. O acento, aqui, recai sobre o verbo “Acreditar (gr. πιστεύω/pisteûo)”. É mulher feliz (bem-aventurada) porque acreditou na Palavra que Deus lhe dirigiu. 

Então Maria responde à Isabel com um canto de ação de Graças e louvor, composto por muitos versículos dos salmos, e de outros textos do AT. Lembra o cântico de Ana, mãe de Samuel, que também não podia ter filhos. Ela assume em si todos os filhos frutos da promessa da graça de Deus (1Sm 2). Deus levanta os humilhados, porque Maria é uma humilhada, no sentido de que ela é uma menina ainda; não tinha, até aquele momento, um lugar na sociedade. Lembremos que era ela apenas desposada. Se alguém ficasse sabendo de que ela estava grávida, ainda prometida em casamento, isso seria uma grande humilhação e vergonha.

A melhor tradução para esse versículo seria: “Porque olhou para a humilhação (gr. ταπείνωσις / tapeînosis) de sua escrava”. Maria não é humilde naquele sentido de uma virtude piegas e pedante (que no fundo esconde bem os verdadeiros interesses), ou aquele “coitadismo”, mas a humilhada, uma a’nih, ao lado dos a’nawim, os pobres, humilhados e oprimidos, que recorrem a Deus por socorro. Portanto, o Deus de Israel é aquele que levanta da humilhação os humilhados.

O v.50 mostra o tema da misericórdia, o qual é muito precioso para Lucas. Ele se faz presente em todo o contexto do evangelho. No seu cântico, Maria se apropria de toda a história de Israel (v.51), no intuito de mostrar a atuação do Todo-poderoso – El Shaday – que fez grandes coisas: colocar seu coração ao lado dos desfavorecidos da história. Todas estas tradições histórico-salvíficas ressoam no Magnificat de Maria. Com seu hino profético, ela proclama a opção que Deus faz; o lado que o Todo-poderoso assume: o dos pobres. Mas não é só se colocar ao lado dos pobres! Os versículos seguintes colocam em evidência a ação do Deus ao qual Maria serve.

Os v.52-53 são muito importantes pois acenam para a chamada inversão escatológica, a mudança, a reviravolta que Deus opera na história; a subversão dos valores e das categorias conforme a lógica do Reino. “Deus derruba dos tronos os poderosos e eleva os humilhados, enchendo de bens os famintos e despedindo de mãos vazias os ricos”; ou seja, os valores dos poderosos não valem mais no tempo do Espírito. Eles perdem seu poder e os humilhados são exaltados, ou seja, colocados em seu lugar. Maria termina cantando a realização das promessas ao servo Israel (Jacó e todo povo). A serva Maria identifica-se com o servo Israel, ou seja, o povo que está à disposição de Deus. 

Na arca da nova aliança não há tábuas da Lei, não há normas nem preceitos. Existe apenas Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com toda a humanidade. Assumir o projeto amoroso de Deus que é gerar vida, acolhimento, amor, solidariedade e serviço resulta ser por Deus em Jesus assumido para a vida eterna, que já começa a ser vivida nesta história.

 

Pe. João Paulo Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

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