A primeira parte do evangelho de João
(1,38 – 12,50) preparou o leitor para a hora de Jesus, através dos sinais
realizados por ele, e mediante seus ensinamentos. Eles davam a conhece-lo como
o Enviado pleno do Pai, levando as pessoas a uma opção pró ou contra Jesus. Mas
estes sinais eram, ainda, provisórios. Eles não eram sua Obra definitiva. Em Jo
2,4, assegura que sua hora ainda não havia chegado, de modo que não
confundissem os sinais com a Hora definitiva da manifestação da Glória de Deus.
O leitor-discípulo é convidado, agora,
neste capítulo 13, a tomar parte do Ensinamento Final de Jesus. É convidado a
entrar na dinâmica da sua Glória (a mesma de Deus). Estes últimos ensinamentos
constituem o Testamento de Jesus (Jo 13 – 17), concomitante à revelação da
Glória de Deus, através de sua Hora: o seu enaltecimento na Cruz (Jo 18 – 19).
Se na primeira parte do Evangelho de João
(1,38 – 12,50, o livro dos Sinais), Jesus mostrou, através dos sinais
realizados, as suas credenciais proféticas e sua missão Divina, na segunda
parte (13,1 – 20, no livro da Glória), Ele não mostra mais suas credenciais,
mas revela a própria face de Deus, que é amor, dando sua vida por amor. Do modo
como Jesus age, amando até às últimas consequências, assim é Deus. Agora sim, a
sua Hora chegou. A Hora de levar tudo (e todos) até o Fim, como Jesus declarará
no momento de sua morte, que “tudo está consumado (finalizado)”.
João situa a
narrativa no tempo: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). O autor do Quarto
Evangelho, diferentemente da tradição sinótica (Mc, Mt e Lc), situa a ceia de
Jesus na véspera da solenidade pascal. Então, a ceia pascal seria celebrada no
dia seguinte (coincidentemente no Sábado, aquele ano). Não posso entrar aqui no
porquê desta divergência cronológica. Resta apenas captar a intenção de João, a
de situar a morte de Jesus no dia da solenidade pascal, no exato momento em que
era imolado o cordeiro no templo (trataremos dessa explicação amanhã). A ceia
relatada por João não é de caráter pascal, esta será celebrada um dia mais
tarde, depois da morte de Jesus (cf. 18,28). Aqui se trata de uma ceia de
despedida, quem nem por isso deixa de ter sua importância.
O v.1 inicia a
sessão com uma solenidade ímpar. Anuncia a chegada da hora, que vinha sendo
preparada desde os primeiros sinais realizados por Jesus, e, que, agora, começa
a levar a termo. Esta forma solene aponta para a finalidade da missão de Jesus:
manifestar o amor do Pai até o fim para os seus, que estavam no mundo. A
expressão, “até o fim” pode significar “até à plenitude”, ou “até o último momento”, e está relacionada
à ultima expressão de Jesus na cruz: “Tudo está consumado” (Jo 19,28.30,
literalmente, “está finalizado”). “Amou-os até” indica a plenitude e a
intensidade do gesto de Jesus!
O gesto de Jesus e
seu significado (Jo 13,2-15):
Após João situar o
leitor no tempo e, com isso, introduzi-los na cena, ele narra um evento:
inicia-se um Jantar (note-se a ausência do artigo definido). No entanto, não se
trata de uma refeição qualquer. Trata-se de uma refeição de caráter comunitário
(com em Ex 12, “Que todos comam o cordeiro em família, e se for muito para
aquela, que se convide outra família”).
É importante
compreender o simbolismo das refeições para os povos do oriente, em especial
para os semitas. A refeição era o momento privilegiado para se partilhar a vida
entre os comensais. Uma pessoa ao ser convidado para uma refeição na casa de um
conhecido seu deveria encarar tal convite como sendo uma honra muito grande,
porque era o sinal de que anfitrião nutria muita estima pelos seus convidados
e, fundamentalmente, tinha a intenção de torna-los participantes de sua vida e
de sua alegria. Os discípulos estão reclinados sobre almofadas, apoiados por
sobre o braço esquerdo.
O evangelista
dramaticamente dá o tom para a sua melodia, focalizando internamente a
consciência diabólica de Judas Iscariotes. “o Diabo” o havia seduzido (lit:
“tinha posto no coração de Judas... que entregasse Jesus”). Muito importante
esta focalização feita por João. A consciência diabólica de Judas contrasta com
a Consciência de Jesus: que o Pai “tudo” (semitismo para Todos) havia colocado
nas mãos do Filho (o Pai colocou Tudo e Todos nas mãos do Filho), e de que a
partir daquele momento começava seu retorno para Deus, afim de prestar contas
de sua missão, enquanto seu enviado. O Jesus joanino tem tudo em suas mãos;
tudo sob controle. Não é pego de surpresa, tampouco é vítima da situação. Ao
contrário, voluntaria e livremente, ele se coloca ao lado das vítimas do
Anti-Reino, neste mundo (comentaremos sobre isso, amanhã).
Então, com essa
consciência Jesus levanta-se da mesa. Depõe seu manto. Um gesto simbólico: ao
depor o manto está, na verdade, despojando-se da imagem de mestre. Cinge-se com
uma toalha à cintura (lembrar, aqui, o sentido do “cingir” em 21,18, no diálogo
com Pedro, bem como daquela passagem em Lc 12,37, onde o dono da casa se
levanta para cingir os servos fieis!). Estes símbolos servem para explicar o
gesto de Jesus: como que numa transfiguração as avessas, Jesus depõe a sua
imagem de Senhor, e assume a forma de servo (Fl 2,7). O Jesus joanino não veste
os paramentos sagrados dos sumos sacerdotes, mas os distintivos comuns do
serviço: não as alfaias da casta sacerdotal, mas o avental dos servos (MAGGI, A
loucura de Deus, p.133).
A ação é continua,
em seguida derrama água na bacia e começa a lavar os pés dos discípulos. O
Gesto de Jesus parece estar deslocado, pois ele teria seu lugar antes de que
todos se colocassem à mesa. Na verdade, este se trata de um gesto profético.
Entendamos este gesto. Ele era realizado sempre antes se colocar à mesa, e isso
devido as estradas poeirentas daquele tempo, e para que pudessem sentar à mesa,
deveriam se purificar. Esta purificação, via de regra, era feita por um escravo
(quando não, pelos filhos ou pela esposa, e, numa demonstração de profunda
estima, pelo próprio anfitrião). Todavia, continuava sendo um gesto de muita
humilhação (certos rabinos até orientavam escravos judeus a não realizarem este
gesto para com seus patrões).
Tirar o manto em
público significa renunciar ao próprio prestígio e à dignidade pessoal. Amarrar
um avental na cintura (cingir-se) acena para a atitude do serviço, assumindo a
forma e a condição de um escravo. O que se fazia somente por imposição, Jesus o
faz voluntariamente. Ele quer ensinar que o destino de sua comunidade e de seus
discípulos é o serviço! Esta é a sua real e mais essencial identidade.
Agora desloquemos
o olhar para outro personagem que aparece na narrativa. Pedro. Consciente da
conotação humilhante daquele gesto, protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?”.
Ele, por um lado, vê no gesto de Jesus, humilhação. Este, por outro, vê, porém,
a dedicação da própria vida. Para Pedro, bem como para todos os outros, o gesto
de Jesus é incompreensível. E de fato o é para aqueles que ainda não conheceram
em profundidade, o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma, que, por
hora, eles não sabem o significado daquele gesto (ainda não chegou a hora de
compreender, porque esta só acontecerá à luz do enaltecimento na cruz e
mediante o dom do Espírito de Jesus Ressuscitado).
No v.8, Pedro
ainda não reconhece sua incompreensão. Pensa ser o gesto de Jesus uma
humilhação e, por isso, inaceitável para ele. Evidentemente, porque para
aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar
quando o superior se torna inferior! “Tu não me lavarás os pés, nunca!”,
declara o discípulo. Mas Jesus retruca, dizendo “que não terá parte com ele,
caso não deixe lavar os pés”. O que Pedro não quer aceitar e, demora a
assimilar é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão de que o
mestre e senhor se faça servo e escravo. Acontece que a profundidade do gesto
de Jesus reside no fato de que é um gesto simbólico profético da entrega da própria
vida. O gesto de lavar os pés é um símbolo para o que ele realizará mais
adiante: sua vida consumida na cruz.
“Ter parte” remete
o leitor do Quarto Evangelho ao Antigo Testamento, ao tema da herança da Terra,
e, em última análise, à Salvação. Mas em termos joaninos, não ter parte com
Jesus significa não ter a vida de Jesus, a vida eterna. Ter parte com Jesus,
significaria, por outro lado, ter em si a vida de Jesus, e torna-la existencialmente
vivida de novo, através da vida do discípulo e da comunidade. Não é possível
comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical. Se Pedro
(e qualquer outro discípulo) não aceitar o gesto de Jesus, não participará do
efeito da obra messiânica de Jesus (KONINGS, 2005, p. 259).
Pedro, carregado
pelo seu costumeiro exagero, pede que não lhe seja lavado somente os pés, mas
as mãos e a cabeça. Ele ainda não entendeu nada do gesto de Jesus, ficou parado
na materialidade. Ainda não consegue pensar em termos de serviço. “A frase tem
uma ressonância muito significativa quando situada no contexto da iniciação
cristã: o lava-pés não é um banho como o batismo — do qual os Doze nem
necessitam, pois já estão purificados pela palavra de Jesus que acolheram (cf.
15,3), com exceção do traidor (13,10-11)... Mas o que todos precisam é acolher
o gesto do lava-pés, que não significa a purificação batismal como tal, e sim,
a prática do Servo, em amor até o fim (KONINGS, 2005, p. 259).
O Jesus joanino
volta à mesa, retoma sua condição de mestre e explica-lhes, então o gesto. Ora,
os discípulos reconhecem-no como Mestre e Senhor, explica-lhes Jesus (o que de
fato é verdade!). Mas se ele, enquanto mestre e Senhor lhes lava os pés, eles
devem fazer a mesma coisa: lavar os pés uns dos outros, tornando-se escravos
uns dos outros pela caridade (amor fraterno)! Uma imitação do gesto de Jesus
até cairia bem. Mas em João, são os
doze, ou seja, os chefes (as lideranças da comunidade cristã, que devem fazer
isso!
Entenda-se bem
esta imitação. O gesto de Jesus acaba por tornar-se um indicativo para a
comunidade de seus seguidores e seguidoras, que se torna um imperativo para
Ela. O que se deve fazer está fundado, primeiramente, sobre um gesto realizado
por Jesus, gesto anterior a todas as nossas ações posteriores. Antes da norma
ética vem o Dom de Deus em Jesus. Ele torna-se escravo ao dar a própria vida, e
é necessário que se acolha e se aceite isso de Jesus, para que o discípulo
possa assumir e assimilar o gesto de Jesus através de sua vida.
“É no fato de
segui-lo, ativamente, que mostramos em nossa vida a aceitação de Jesus-Servo,
que dá a própria vida (cf. Is 53; Jo 12,38). Importa “deixar lavar os pés” (=ser
salvo) por Jesus, mas devemos também “lavar os pés uns dos outros” (=serviço
fraterno). Aceitar que Jesus seja o escravo, o “ninguém”, que faz de nós,
“ninguéns”, o centro da atuação de Deus. Em Jesus acontece o “esvaziamento” de
Deus para nós. Só quando tivermos assimilado esse fato seremos capazes de
“lavar os pés” uns aos outros sem nos julgarmos importantes ou impormos nossa “caridade”
ou “filantropia” como mérito nosso. Imitar Jesus é imitar Deus que se esvazia
por nós (KONINGS, 2005, p.260)”.
O lava-pés de
Jesus é um símbolo. Ele não pode ser interpretado unicamente por sua
materialidade. Interpretar o Dom de Jesus, através deste gesto profético,
significa não considerar Jesus como um herói, fácil de se copiar em suas
façanhas, mas deixar transparecer em nosso agir, o esvaziamento de Deus.
O texto suscita
algumas perguntas para nós, as quais nos ajudarão a bem renovar em nossas
vidas, através das solenidades destes dias, o Sacramento Pascal, mediante este
Sagrado Tríduo: 1)
Com qual das peronagens me identifico: Judas, que não mais se identifica com
Senhor, a ponto de tornar-se adversário do projeto de Jesus e de seu Pai, ou
com Pedro, que reluta ainda em assimilar a forma serva de Jesus? 2) Tenho me
deixado lavar os pés por Jesus (e com isso aceitado o Seu Dom-Salvação), para
poder lavar os pés dos irmãos (através do serviço do amor/doação fraterno)? 3)
Tenho crescido na consciência de que ao comungar da Vida do Senhor (através de
seu Corpo e Sangue), devo igualmente comungar (assimilar e realizar) no lava-pés
do Senhor? Não há Eucaristia sem lava-pés!
É com estas
perguntas que somos convidados a sentar-se a mesa com Senhor, tomar parte de
sua vida, assimilá-la, e percorrer o mesmo caminho que se desenrolará amanhã.
Desde o Horto até o Golgota.
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP
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