A Igreja celebra a conclusão do tempo
pascal, o grande dia solene que o Senhor fez para o gênero humano e para toda a
criação mediante a Páscoa de seu Cristo. O Pentecoste marca a plenitude do mistério
pascal de Jesus, sua paixão, morte, ressurreição (ascensão). A nova criação (ou
recriação) operada pelo Pai na páscoa do Filho atinge sua plenitude com a manifestação
e doação do Espírito à toda a criação e a cada pessoa de modo que possam viver
da mesma vida e dinamismo de amor de Deus.
A liturgia ilumina este dia solene com a riqueza e profundidade da Palavra de Deus. Como já estamos habituados com a leitura do evangelho de João (20,19-23), o qual, a seu modo, narra com sobriedade e imediatez a doação do Espírito pelo Ressuscitado à sua comunidade, nesta ocasião fazemos a opção de meditar At 2,1-11, o pentecostes lucano, com suas particularidades e simbolismos. Por isso, se faz necessário esclarecer uma notável diferença entre os dois relatos: a distância cronológica do evento.
O Quarto Evangelista, a partir de seu esquema teológico e catequético da superação das instituições do sistema levítico-cultual do judaísmo da época deseja ensinar à sua comunidade que todas as expectativas ou sistemas antigos foram superados pela obra de Jesus. Por isso, o dom do Espírito acontece no mesmo dia pascal. O Evangelista Lucas, por sua vez, motivado por uma teologia da história, que visa coincidir os eventos da história da salvação com a história humana, e seguindo, a seu modo, um estilo de narrar próprios aos autores antigos, prefere uma certa linearidade dos fatos no intuito de também gerar, através do fato narrado, uma superação. O terceiro evangelista faz coincidir o Pentecoste de Jesus – o Dom do Espírito – com o pentecoste judaico para transmitir uma mensagem profunda que veremos a seguir.
O texto começa situando o leitor/ouvinte do texto: “Quando chegou o dia de Pentecostes, os discípulos estavam todos reunidos no mesmo lugar” (v.1). Este primeiro versículo pode ser traduzido também da seguinte maneira: “Quando se completou o dia de Pentecostes”. O evangelista utiliza o verbo symplerousthai (gr. συμπληροῦσθαι) que comunica a ideia de plenitude/conclusão/completude. Deriva do verbo “pleroô” (gr. πληρόω), que é comumente utilizado por ele para dizer que um tempo ou ciclo chegou ao fim e o início de um novo. Lucas deseja assinalar que o pentecostes da antiga lei chegou ao fim, e o Pentecoste do novo povo de Deus tem agora o seu lugar.
O que era o pentecostes do Antigo Testamento? Era uma festa agrícola, dedicada à colheita e oferecimento destes primeiros dons da terra e dos animais à YHWH. Após a libertação de povo de Deus do Egito, ela adquiriu tons pascais. Exatamente cinquenta dias após a páscoa, o povo que caminhava no deserto chega ao Sinai e recebe de Deus, por intermédio de Moisés, as Palavras da Aliança, o decálogo. Portanto, o pentecostes judaico estava relacionado ao dom da Lei de Deus ao povo, através das tábuas de pedra.
Lucas, ao narrar o dom do Espírito feito pelo Senhor, o faz coincidir com os cinquenta dias após a páscoa dos judeus justamente para afirmar a superação e a novidade que acontece através deste evento. Trata-se de um novo, definitivo e pleno Pentecostes: o Espírito do Pai e de Jesus, o Espírito Santo, derramado nos corações humanos e em toda a criação. Ou seja, o dom de Pentecostes não é mais uma lei gravada em pedras. Mas, a partir do dom da vida do Filho, Deus escreve (inscreve) dentro do discípulo o Seu Espírito. O seu dinamismo vital. Seu projeto de amor e de vida. No dom da vida e da existência de Jesus, o Pai inscreve esta mesma vida plena na vida de seus filhos e filhas, seus discípulos e discípulas a fim de que possam viver desta novidade de vida num tempo que é e precisa ser novo.
Sinais deste tempo novo são os que Lucas descreve nos próximos versículos. Ele continua a narrativa servindo-se dos símbolos do patrimônio das escrituras de Israel ao narrar as manifestações divinas (teofanias). “De repente, veio do céu um barulho como se fosse uma forte ventania, que encheu a casa onde eles se encontravam. Então apareceram línguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles” (v.3-4). O vento (a tempestade) e o fogo são elementos puramente simbólicos que já apareceram no primeiro Pentecostes, em Ex 19,26 e em Dt 4,36. O fogo não se relaciona com a destruição. Antes, com a purificação. Com um refazimento ou restauração. Ou seja, o fogo que simboliza a Força divina que vêm do Espirito de Deus é sinal da nova criação inaugurada em Cristo.
As línguas de fogo se repartem sobre os discípulos. Imagem bela e interessante. Ou seja, o Espírito não é um dom exclusivo para poucos, mas é doado a todos os que abraçam o projeto de Jesus. Aqui se evidencia um pouco mais do mistério da vida do Senhor a ser continuada pela comunidade dos discípulos: assim como sua vida e existência foi uma intensa e contínua doação e partilha de si, seu Espírito também, para continuar esta forma de vida e missão nos discípulos e na comunidade doa-se e é partilhado a todos. O Espírito não se divide para gerar divisão, mas para gerar amor, unidade, comunhão e vida. A ninguém é dado posse do Espírito, mas a graça de ser possuído, inhabitado, por Ele, a fim de se viver a mesma vida do Filho.
Lucas mostra o efeito desta experiência com o Espírito: “Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os inspirava” (v.4). A língua de que fala o evangelista é muito conhecida pelo discípulo de Jesus: a própria vida do Senhor. Muito se tentou explicar este versículo de At 2,1-11pendendo para hipóteses um pouco forçadas. Uns apelavam para o fenômeno da glossolalia, muito comum nas comunidades entusiásticas do tempo de Paulo, e com as quais o Apóstolo das nações se confrontou, determinado que só se utilizasse este “dom carismático” se, e somente se, na comunidade houvesse algum interprete. Não é o caso. Também houve a tendência de interpretar este versículo a partira da tese da xenoglossia, a capacidade de falar línguas estrangeiras. A língua que os discípulos falavam a partir da experiência com o Espírito Santo consistia num idioma fundamental: a práxis do amor oblativo e incondicional do Senhor, da fraternidade, do serviço mutuo e solidário, da unidade, da comunhão e da paz. As pessoas que tomavam contato com Evangelho pregado pela comunidade dos discípulos viam e presenciavam este estilo de vida.
O v.11 conclui a narrativa com esta
constatação: “todos nós os escutamos anunciarem as maravilhas de Deus na nossa
própria língua!”. Lucas não economiza ao recorrer ao patrimônio das escrituras
para falar do alcance deste novo tempo inaugurado por Jesus através da comunicação
de Seu Espírito. Este, é um tempo e uma vida destinados para todos, após fazer
o elenco das nações existentes naqueles idos dos anos 80 d.C, até mencionar
Roma, a última fronteira que o Evangelho de Cristo deveria chegar e cruzar. O
evangelista o faz para trazer uma vez mais um tema muito querido por ele, a
universalidade da Salvação inaugurada e proposta por Jesus, o qual foi trabalhando
ao longo de sua primeira obra, o evangelho. Este é o tempo novo que a comunidade
dos discípulos deve anunciar e viver diante de todos; é a forma da vida de Filho
que cada pessoa, marcada com o selo do Espírito, e por Ele inundado, precisa
testemunhar. Quando isso acontece, todos e toda a criação podem escutar a Boa Nova
de Deus que é a realização de Suas maravilhas, seu amor fiel e sua vida, na língua de cada um.
O dom do Espírito, neste novo Pentecostes, realiza o oposto de Babel em Gn 11,1-9. Lá, a humanidade foi dispersada e dividida depois da tentativa de construir um imperialismo religioso-político (a torre para se chegar até Deus); agora, é reunida pela força do Espírito que unifica os diferentes grupos humanos ou qualquer diferença, respeitando e promovendo as características culturais, das quais a língua é expressão. Nem a força ou a repressão, nem a planificação econômica ou política podem assegurar a unidade dos povos ou dos grupos humanos, mas sim o poder interior do Espírito de Jesus Ressuscitado, que promove com a liberdade e o amor novas relações e cria espaços alternativos de comunicação.
Temos vivido uma existência segundo o Espírito de Jesus? Quais novas línguas o Espírito nos inspira a falar hoje? A vida e obra do Senhor tem sido o nosso idioma? Nossas comunidades tem falado a linguagem do Espírito de Cristo, amor, fraternidade, serviço, unidade, comunhão e vida para todos?
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Paróquia São Judas Tadeu,
Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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