A liturgia do quarto domingo da quaresma apresenta
para a meditação o capítulo quinze do evangelho segundo Lucas, o coração de sua
catequese. Será ilustrado o agir misericordioso de Deus através de três parábolas:
a da ovelha perdida (15,4-7), a moeda perdida (15,8-10) e, para coroar o
ensinamento, a parábola do pai misericordioso. No primeiro domingo, no relato
das tentações sofridas por Jesus, a Igreja desejava apontar o caminho para que o
discípulo pudesse vence-las; no segundo domingo, a comunidade fou chamada a
assumir a transfiguração (sinônimo de conversão), como processo da vida humana
e da vida de fé; no terceiro, aprimorar a resposta diante do chamado à conversão
e fazer a experiência da misericórdia visibilizada pelo vinhateiro que cuida da
figueira infértil. Assim, neste domingo, a comunidade cristã é convidada a
assimilar e interiorizar na vida concreta a belíssima lição que o Deus e Pai de
Nosso Senhor nos mereceu. Do ponto de vista litúrgico, apresentar neste domingo
Lc 15 é muito significativo, pois desde o início do sacramento quaresmal, a Igreja
chama a preparar o coração para a páscoa do Senhor, expressão da máxima misericórdia
de Deus contida no mistério de Paixão, Morte e Ressurreição de Seu amado Filho,
isto é, sua Páscoa.
O texto de hoje focaliza a parábola do pai misericordioso. O autor do evangelho, recolhendo o ensinamento de Jesus, põe ênfase no agir de Deus enquanto pai. Além dele, duas personagens não menos importantes emergem na cena: o filho mais novo e o mais velho. Três personagens, portanto. Isso posto, podemos adentrar na leitura do texto.
O evangelista nos dá uma informação inicial: “Os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar” (v.1). Por publicanos entenda-se os cobradores de impostos, os quais eram judeus que trabalhavam para o Império no recebimento dos impostos de sua própria gente para a máquina imperial. Por isso, considerados pecadores e traidores públicos; inimigos do povo. E, também os pecadores, pessoas que se encontravam afastadas do amor e do projeto de Deus. Ambos representam a humanidade sofredora, marcada pelo pecado. Ora, eles escutam a voz do Cristo, e este se lhes faz próximo.
No v.2, Lucas nos mostra os antagonistas. Os chefes religiosos do povo, com atitudes e mentalidades diametralmente opostas às dos publicanos e pecadores: “Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. 'Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”. A atitude dos líderes religiosos é, ao mesmo tempo, o fator chave que faz com que se dê o ensinamento em parábolas acerca da misericórdia, a qual se revelará como antidoto para o comportamento e pensamento daqueles chefes. É interessante que eles nem mencionam o Seu nome. Tratam-no como “este homem” (gr. Οὗτος/outos), como que desdenhando e recusando dele. Mais ainda, criticam a atitude de tomar refeição com este grupo de pessoas. E é muito significativo que o Senhor aceite fazer refeições com eles, pois eram a ocasião propícia naquele tempo para se fazer experiência com a vida de alguém, para se estabelecer relações interpessoais, para se firmar um propósito de comunhão. A decisão de estabelecer contato com esta classe de pessoas se torna uma clara expressão da misericórdia de Deus.
Misericórdia difícil de ser assimilada pelos que agiam pautados pelo legalismo, individualismo e autoritarismo, no caso, os chefes do povo. Aqueles que se acham justos. Eles demonstram resistências diante de Jesus. Tal é o estopim para Ele começar seu ensinamento, dirigindo a eles as parábolas, visando provoca-los, chamar-lhes a atenção e propor uma mudança de mentalidade. Ajuda na compreensão de que os destinatários da parábola são os fariseus e os mestres da lei, a mudança de cenário que o evangelista opera. Ele não diz que o ensinamento de Jesus se deu ao redor da mesa. Se assim, fosse, os destinatários das parábolas seriam os discípulos, os publicanos e os pecadores. Mas o ensinamento não se dá na mesa ou a partir dela, mas fora da casa; fora do ambiente de convivência e de partilha da vida. Os fariseus não querem se sentar naquelas mesas em que Jesus se senta; não querem aquelas companhias com as quais o Senhor estabelece relação. Por isso, as parábolas do capítulo quinze são destinadas à eles não como denúncia diante das atitudes e mentalidades equivocadas que possuíam, mas como convite à conversão.
Na última parábola situa-se o texto de hoje (11-32). Jesus apresenta as personagens: dois filhos e um pai. Porém, o ensinamento parabólico direciona o olhar do leitor-discípulo para a atitude do Pai. É dele que se deve recolher e acolher o ensinamento central da passagem. Dos vv.12-20 Ele descreve a atitude do filho mais jovem, que pede a parte da herança de seu pai: “O filho mais novo disse ao pai: Pai, dá-me a parte da herança que me cabe. E o pai dividiu os bens entre eles” (v.12). A atitude do mais novo é de chamar a atenção de quem ouve ou lê a parábola. De imediato se pensa: “herança só recebe, depois que um dos genitores morre!” O que está acontecendo aqui? Ao pedir a herança ao pai, o jovem está, de verdade, matando-o; desejando-lhe a morte. É a ruptura total com toda a possibilidade de relação. Mesmo assim, o pai cede: o filho mais novo recebe a parte maior, a equivalente à do irmão mais velho. O pai abre mão de toda possibilidade de vida e de sua existência para seu filho. A parábola continua, com Jesus dizendo que, “Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada” (v.13). O rapaz pensava que longe de seu pai poderia ter a vida e a liberdade que não tinha.
Conforme a parábola, o filho novo gasta tudo, fica na miséria, busca emprego para poder se sustentar, e, depois de cair na mais profunda impureza (tratar de porcos e se tentar se alimentar da mesma comida deles, fato impensável para um judeu, uma vez que o porco é considerado um animal impuro; e Jesus carrega nesta ilustração justamente para mostrar a que nível tinha chegado a situação de indigência e abandono daquele jovem), acaba percebendo que na casa de seu pai as coisas vão bem, inclusive para os empregados. Após um frio cálculo decide-se voltar para casa, submetendo-se à sorte e ao destino de ser tratado como um empregado qualquer: “Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados” (v.19). O pensamento do jovem por muito foi visto na exegese e na interpretação antigas como arrependimento e conversão. O que não é verdade. Tais atitudes não são encontradas na intenção do filho. Ele se revela matemático demais na arquitetação de seu retorno, visando não o amor de seu Pai, mas a recuperação da sua zona de conforto, mesmo sendo a de um empregado. “Trata-me como a um de seus serventes”; ele ensaia tudo. E se põe a caminho de volta com a mentalidade equivocada acerca de seu pai: concebe-o como um patrão. Não como alguém que lhe fora capaz de dar-lhe a vida e de amá-lo. Esta é mentalidade que o jovem precisa converter. Seria, mesmo, aquele pai um patrão? É o que Jesus responderá a seguir.
Jesus, ao narrar o retorno do jovem, promove a reviravolta da parábola, a qual produz o efeito desejado, o de chamar a atenção dos ouvintes para a atitude do pai. Amparado pela Lei de Dt 21,18-21, o pai poderia entregar este jovem ao tribunal da cidade para ser sentenciado à pena de morte. Sintamos, na literalidade, o peso deste texto legislativo: “Se alguém tiver um filho rebelde, contumaz e indócil, que não aprende a obedecer ao pai e à mãe e não dá ouvidos aos bons conselhos, mesmo quando o corrigem e disciplinam, o pai e a mãe o conduzirão até aos anciãos e líderes de sua comunidade, à porta da cidade, e denunciarão às autoridades da cidade: ‘Este nosso filho é por demais teimoso e rebelde; não nos obedece, é devasso e vive embriagado!’ Então, diante desse depoimento, todos os homens da cidade o apedrejarão até a morte. Assim, portanto, eliminarás o mal do meio do teu povo; todo o Israel ficará sabendo o que ocorreu e ficará temeroso!”. Esta foi a atitude do Pai?
Deixemos Jesus responder: “Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos” (v.20). O evangelista utiliza o verbo splangkhnizomai (gr. σπλαγχνίζομαι), que se traduz por misericórdia. É o coração e as entranhas remexidas diante da condição humilhada e marginalizada em que o outro se encontra. As vísceras condoídas do pai, que o fazem mover-se na direção do filho em caminho, quebram inclusive o raciocínio matemático e esquematizado de ser tratado como empregado. O pai não dá lado para isso. E age, uma vez mais de forma diametralmente oposta ao estabelecido na lei. Dos v.v. 22-24, Jesus narra as atitudes restituidoras de vida que o pai toma. Faz festa, manda matar um novilho cevado, dá roupa, anel e sandálias: devolve-lhe a dignidade e a vida de filho (“Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (v.24)). O filho mais novo é imagem para todos os que vivem afastados do projeto amoroso de Deus.
Mas a família ainda está incompleta. Um irmão ainda precisa ser recuperado. É o mais velho. Sim, ele é imagem para aqueles que pensam estar vivendo o projeto de Deus, e, na verdade, não estão. Claramente, os fariseus e mestres da lei são chamados a se identificar nas atitudes do filho mais velho que, em última análise, recusa conviver com o irmão que errou, “Mas ele ficou com raiva e não queria entrar” (v.28a).
“O pai, saindo, insistia com ele” (v.28b). O pai sai do ambiente da festa para também ir ao encontro do filho. Ou seja, o pai, movido pela mesma compaixão vai recuperar este filho. Ele quer e deseja refazer e ressignificar o horizonte das relações quebradas. Deseja que os filhos vivam novamente como irmãos, e se reconheçam como filhos do mesmo pai. Todavia, o filho mais velho resiste: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado” (v.29). Reina a mentalidade do mérito na cabeça do irmão mais velho. Pior: ele concebe também a seu pai como um patrão, do qual se pode receber coisas, prêmios, vantagens. Para o pai, porém, não é o mérito do dever cumprido que pauta a sua atitude diante dos filhos: é o amor e a misericórdia com ambos. A misericórdia, o perdão e o amor que se obtém do pai não é em virtude do que se fez, nem do que se fará. Mas são eles dons gratuitos e imerecidos da parte deste pai, que é, em última análise, metáfora para o próprio Deus e Pai de Jesus.
Jesus, na parábola, não informa se o filho mais velho aceitou o convite do pai, ao final da parábola. Logo, não temos conhecimento desse fato. Mas o que Ele faz questão de enfatizar é a imagem do pai devolvedor e doador de vida e dignidade à seus filhos, fazendo o pai repetir o que disse aos empregados: “porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado” (v.32). Deixando assim, para cada ouvinte, tomar sua conclusão e sua decisão. Mas o texto questiona também: 1) com qual dos filhos identifica-se o nosso agir? 2) Qual mentalidade está ainda presente em nossa relação com o Pai, a mentalidade do empregado (a que O concebe como um patrão?) ou a mentalidade de verdadeiro filho(a) Seu? 3) O agir do pai está presente em nossas vidas e atitudes? Como agir em conformidade com o pai da parábola hoje?
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré /
Arquidiocese de Botucatu-SP