sábado, 29 de março de 2025

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA QUARESMA - Lc 15,1-3.11-32:

 


A liturgia do quarto domingo da quaresma apresenta para a meditação o capítulo quinze do evangelho segundo Lucas, o coração de sua catequese. Será ilustrado o agir misericordioso de Deus através de três parábolas: a da ovelha perdida (15,4-7), a moeda perdida (15,8-10) e, para coroar o ensinamento, a parábola do pai misericordioso. No primeiro domingo, no relato das tentações sofridas por Jesus, a Igreja desejava apontar o caminho para que o discípulo pudesse vence-las; no segundo domingo, a comunidade fou chamada a assumir a transfiguração (sinônimo de conversão), como processo da vida humana e da vida de fé; no terceiro, aprimorar a resposta diante do chamado à conversão e fazer a experiência da misericórdia visibilizada pelo vinhateiro que cuida da figueira infértil. Assim, neste domingo, a comunidade cristã é convidada a assimilar e interiorizar na vida concreta a belíssima lição que o Deus e Pai de Nosso Senhor nos mereceu. Do ponto de vista litúrgico, apresentar neste domingo Lc 15 é muito significativo, pois desde o início do sacramento quaresmal, a Igreja chama a preparar o coração para a páscoa do Senhor, expressão da máxima misericórdia de Deus contida no mistério de Paixão, Morte e Ressurreição de Seu amado Filho, isto é, sua Páscoa.

O texto de hoje focaliza a parábola do pai misericordioso. O autor do evangelho, recolhendo o ensinamento de Jesus, põe ênfase no agir de Deus enquanto pai. Além dele, duas personagens não menos importantes emergem na cena: o filho mais novo e o mais velho. Três personagens, portanto. Isso posto, podemos adentrar na leitura do texto.

O evangelista nos dá uma informação inicial: “Os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar” (v.1). Por publicanos entenda-se os cobradores de impostos, os quais eram judeus que trabalhavam para o Império no recebimento dos impostos de sua própria gente para a máquina imperial. Por isso, considerados pecadores e traidores públicos; inimigos do povo. E, também os pecadores, pessoas que se encontravam afastadas do amor e do projeto de Deus. Ambos representam a humanidade sofredora, marcada pelo pecado. Ora, eles escutam a voz do Cristo, e este se lhes faz próximo.

No v.2, Lucas nos mostra os antagonistas. Os chefes religiosos do povo, com atitudes e mentalidades diametralmente opostas às dos publicanos e pecadores: “Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. 'Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”. A atitude dos líderes religiosos é, ao mesmo tempo, o fator chave que faz com que se dê o ensinamento em parábolas acerca da misericórdia, a qual se revelará como antidoto para o comportamento e pensamento daqueles chefes. É interessante que eles nem mencionam o Seu nome. Tratam-no como “este homem” (gr. Οὗτος/outos), como que desdenhando e recusando dele. Mais ainda, criticam a atitude de tomar refeição com este grupo de pessoas. E é muito significativo que o Senhor aceite fazer refeições com eles, pois eram a ocasião propícia naquele tempo para se fazer experiência com a vida de alguém, para se estabelecer relações interpessoais, para se firmar um propósito de comunhão. A decisão de estabelecer contato com esta classe de pessoas se torna uma clara expressão da misericórdia de Deus.

Misericórdia difícil de ser assimilada pelos que agiam pautados pelo legalismo, individualismo e autoritarismo, no caso, os chefes do povo. Aqueles que se acham justos. Eles demonstram resistências diante de Jesus. Tal é o estopim para Ele começar seu ensinamento, dirigindo a eles as parábolas, visando provoca-los, chamar-lhes a atenção e propor uma mudança de mentalidade. Ajuda na compreensão de que os destinatários da parábola são os fariseus e os mestres da lei, a mudança de cenário que o evangelista opera. Ele não diz que o ensinamento de Jesus se deu ao redor da mesa. Se assim, fosse, os destinatários das parábolas seriam os discípulos, os publicanos e os pecadores. Mas o ensinamento não se dá na mesa ou a partir dela, mas fora da casa; fora do ambiente de convivência e de partilha da vida. Os fariseus não querem se sentar naquelas mesas em que Jesus se senta; não querem aquelas companhias com as quais o Senhor estabelece relação. Por isso, as parábolas do capítulo quinze são destinadas à eles não como denúncia diante das atitudes e mentalidades equivocadas que possuíam, mas como convite à conversão.

Na última parábola situa-se o texto de hoje (11-32). Jesus apresenta as personagens: dois filhos e um pai. Porém, o ensinamento parabólico direciona o olhar do leitor-discípulo para a atitude do Pai. É dele que se deve recolher e acolher o ensinamento central da passagem. Dos vv.12-20 Ele descreve a atitude do filho mais jovem, que pede a parte da herança de seu pai: “O filho mais novo disse ao pai: Pai, dá-me a parte da herança que me cabe. E o pai dividiu os bens entre eles” (v.12). A atitude do mais novo é de chamar a atenção de quem ouve ou lê a parábola. De imediato se pensa: “herança só recebe, depois que um dos genitores morre!” O que está acontecendo aqui? Ao pedir a herança ao pai, o jovem está, de verdade, matando-o; desejando-lhe a morte. É a ruptura total com toda a possibilidade de relação. Mesmo assim, o pai cede: o filho mais novo recebe a parte maior, a equivalente à do irmão mais velho. O pai abre mão de toda possibilidade de vida e de sua existência para seu filho. A parábola continua, com Jesus dizendo que, “Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada” (v.13). O rapaz pensava que longe de seu pai poderia ter a vida e a liberdade que não tinha.

Conforme a parábola, o filho novo gasta tudo, fica na miséria, busca emprego para poder se sustentar, e, depois de cair na mais profunda impureza (tratar de porcos e se tentar se alimentar da mesma comida deles, fato impensável para um judeu, uma vez que o porco é considerado um animal impuro; e Jesus carrega nesta ilustração justamente para mostrar a que nível tinha chegado a situação de indigência e abandono daquele jovem), acaba percebendo que na casa de seu pai as coisas vão bem, inclusive para os empregados. Após um frio cálculo decide-se voltar para casa, submetendo-se à sorte e ao destino de ser tratado como um empregado qualquer: “Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados” (v.19). O pensamento do jovem por muito foi visto na exegese e na interpretação antigas como arrependimento e conversão. O que não é verdade. Tais atitudes não são encontradas na intenção do filho. Ele se revela matemático demais na arquitetação de seu  retorno, visando não o amor de seu Pai, mas a recuperação da sua zona de conforto, mesmo sendo a de um empregado. “Trata-me como a um de seus serventes”; ele ensaia tudo. E se põe a caminho de volta com a mentalidade equivocada acerca de seu pai: concebe-o como um patrão. Não como alguém que lhe fora capaz de dar-lhe a vida e de amá-lo. Esta é mentalidade que o jovem precisa converter. Seria, mesmo, aquele pai um patrão? É o que Jesus responderá a seguir.

Jesus, ao narrar o retorno do jovem, promove a reviravolta da parábola, a qual produz o efeito desejado, o de chamar a atenção dos ouvintes para a atitude do pai. Amparado pela Lei de Dt 21,18-21, o pai poderia entregar este jovem ao tribunal da cidade para ser sentenciado à pena de morte. Sintamos, na literalidade, o peso deste texto legislativo: “Se alguém tiver um filho rebelde, contumaz e indócil, que não aprende a obedecer ao pai e à mãe e não dá ouvidos aos bons conselhos, mesmo quando o corrigem e disciplinam, o pai e a mãe o conduzirão até aos anciãos e líderes de sua comunidade, à porta da cidade, e denunciarão às autoridades da cidade: ‘Este nosso filho é por demais teimoso e rebelde; não nos obedece, é devasso e vive embriagado!’ Então, diante desse depoimento, todos os homens da cidade o apedrejarão até a morte. Assim, portanto, eliminarás o mal do meio do teu povo; todo o Israel ficará sabendo o que ocorreu e ficará temeroso!”. Esta foi a atitude do Pai?

Deixemos Jesus responder: “Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos” (v.20). O evangelista utiliza o verbo splangkhnizomai (gr. σπλαγχνίζομαι), que se traduz por misericórdia. É o coração e as entranhas remexidas diante da condição humilhada e marginalizada em que o outro se encontra. As vísceras condoídas do pai, que o fazem mover-se na direção do filho em caminho, quebram inclusive o raciocínio matemático e esquematizado de ser tratado como empregado. O pai não dá lado para isso. E age, uma vez mais de forma diametralmente oposta ao estabelecido na lei. Dos v.v. 22-24, Jesus narra as atitudes restituidoras de vida que o pai toma. Faz festa, manda matar um novilho cevado, dá roupa, anel e sandálias: devolve-lhe a dignidade e a vida de filho (“Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (v.24)). O filho mais novo é imagem para todos os que vivem afastados do projeto amoroso de Deus.

Mas a família ainda está incompleta. Um irmão ainda precisa ser recuperado. É o mais velho. Sim, ele é imagem para aqueles que pensam estar vivendo o projeto de Deus, e, na verdade, não estão. Claramente, os fariseus e mestres da lei são chamados a se identificar nas atitudes do filho mais velho que, em última análise, recusa conviver com o irmão que errou, “Mas ele ficou com raiva e não queria entrar” (v.28a).

“O pai, saindo, insistia com ele” (v.28b). O pai sai do ambiente da festa para também ir ao encontro do filho. Ou seja, o pai, movido pela mesma compaixão vai recuperar este filho. Ele quer e deseja refazer e ressignificar o horizonte das relações quebradas. Deseja que os filhos vivam novamente como irmãos, e se reconheçam como filhos do mesmo pai. Todavia, o filho mais velho resiste: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado” (v.29). Reina a mentalidade do mérito na cabeça do irmão mais velho. Pior: ele concebe também a seu pai como um patrão, do qual se pode receber coisas, prêmios, vantagens. Para o pai, porém, não é o mérito do dever cumprido que pauta a sua atitude diante dos filhos: é o amor e a misericórdia com ambos. A misericórdia, o perdão e o amor que se obtém do pai não é em virtude do que se fez, nem do que se fará. Mas são eles dons gratuitos e imerecidos da parte deste pai, que é, em última análise, metáfora para o próprio Deus e Pai de Jesus.

Jesus, na parábola, não informa se o filho mais velho aceitou o convite do pai, ao final da parábola. Logo, não temos conhecimento desse fato. Mas o que Ele faz questão de enfatizar é a imagem do pai devolvedor e doador de vida e dignidade à seus filhos, fazendo o pai repetir o que disse aos empregados: “porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado” (v.32). Deixando assim, para cada ouvinte, tomar sua conclusão e sua decisão. Mas o texto questiona também: 1) com qual dos filhos identifica-se o nosso agir? 2) Qual mentalidade está ainda presente em nossa relação com o Pai, a mentalidade do empregado (a que O concebe como um patrão?) ou a mentalidade de verdadeiro filho(a) Seu? 3) O agir do pai está presente em nossas vidas e atitudes? Como agir em conformidade com o pai da parábola hoje?


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP


sábado, 22 de março de 2025

REFLEXÃO PARA O III DOMINGO DA QUARESMA - Lc 13,1-9:

 



A liturgia deste terceiro domingo da quaresma nos apresenta o capítulo treze do evangelho segundo Lucas para a meditação eclesial. Depois ter apresentado os evangelhos das tentações e da transfiguração do Senhor, o sacramento da Quaresma continua a ser verdadeiro sinal de salvação para a Igreja ao prepara-la para a pascoa do Senhor através de dois importantes ensinamentos contidos na narrativa evangélica a ser meditada: a conversão e a misericórdia. Trata-se de um texto importante, e que necessita ser contextualizado para ser bem compreendido, de modo a não deixar margens para equívoco, dado que o relato começa dando a impressão de que pecado, sofrimento e castigo estejam interligados ou sejam correlacionáveis. Esta relação será totalmente desfeita por Jesus. Isto posto, pode se mergulhar na interpretação do texto.

“Naquele tempo, vieram algumas pessoas trazendo notícias a Jesus a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue com o dos sacrifícios que ofereciam” (v.1). É importante que se substitua a expressão “Naquele tempo”, com a qual se inicia o texto litúrgico pela “naquele mesmo momento”. Qual seria este momento? Jesus, nos versículos e capítulos anteriores está em debate com os fariseus. Para variar, um conflito. Ele ensinava ao povo e aos seus discípulos a cerca da conduta incoerente dos chefes religiosos; não se deixarem levar por eles, os quais impediam as pessoas de pensarem fora das linhas de seus ensinamentos. Ao contrário, o Senhor insiste para que as pessoas possam atingir a autonomia e pensarem por si diante da Palavra e do projeto de Deus. Isso incomoda as lideranças do judaísmo. São precisamente elas que se dirigem a Jesus trazendo “notícias” dos galileus que o procurador romano ordenou matar. O texto litúrgico dá a entender que seriam outras personagens, mas o contexto próximo deixa claro que são os chefes do povo. Por exemplo, em 11,53, Lucas avisa os leitores que os fariseus e os doutores da lei decidiram por importunar a Jesus violentamente, e a provoca-lo com muitas perguntas, armando ciladas para apanhá-lo em alguma palavra. Por isso é importante contextualizar este pormenor. A dúvida não é do povo e dos discípulos, mas se trata de uma “cilada” para tentar polemizar com o Cristo, a fim de obter dele algum juízo contra as atitudes do procurador romano, de modo a ficar em perigo.

A notícia sobre a morte dos galileus acaba caindo de forma equivocada nos ouvidos do povo e dos discípulos, que começam a polemizar o assunto para além das intenções dos chefes do povo, fazendo emergir a compreensão equivocada de que o sofrimento, a morte e a desgraça estivessem ligados ao pecado. Morreram porque eram pecadores, pensavam eles. Jesus vai desfazer esse mal-entendido e reordenar a discussão.

Dos vv.2-5, Jesus trata de desfazer esse pensamento equivocado. Tanto os galileus mortos pelas mãos de Pilatos como os judeus que, acidentalmente, morreram durante a construção da torre de vigia do quartel de Siloé, não morreram por serem pecadores punidos. Não há ligação para Jesus entre uma coisa e outra. O tema do sofrimento humano na Bíblia não pode ser encarado dessa forma, como se Deus tivesse prazer na morte de alguém. Tal ideia é equivocadíssima. O problema do mal e do sofrimento humano estão relacionados à liberdade humana. São frutos ou consequências das escolhas humanamente feitas em liberdade. Inclusive aquelas que são feitas pelos outros cujas consequências atingem um todo maior. Elas nada tem a ver com o querer de Deus.

Mas o que deve chamar a atenção do ouvinte de Jesus e do leitor do evangelho de Lucas é a constatação que o próprio Senhor faz duas vezes, quase como se fosse um refrão (e isso mostra que esta advertência feita por Ele é importante e deve ser levada à sério): “Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo” (v.3;5). O acento do dito de Jesus deve recair sobre a conversão, e não sobre o fato de morrer. O que o Senhor quer alertar é para o perigo de se encerrar a jornada da vida sem a experiência da conversão. “Morrereis do mesmo modo” significa morrer sem conversão.

O Evangelista usa o verbo grego Metanoêo (gr. μετανοέω) para expressar a urgência e a necessidade da conversão, enquanto mudança de mentalidade, de maneira de pensar, pois a conversão bíblica é a atitude da nova maneira de pensar (pensar diferente; um novo pensar). Esta mudança de mentalidade será a responsável pela mudança na e da atitude (agir). Abandonar a concepção ou convicção equivocada para deixar de lado o agir equivocado. Polêmica encerrada entre os fariseus e Jesus. Todavia, o ensinamento continua.

Se até agora Jesus falou da conversão, associada a esse convite está a misericórdia. Diante da tomada de atitude de conversão, por parte da pessoa, do discípulo e da discípula do Reino, Deus, de sua parte está sempre pronto para agir com misericórdia. É o que o Cristo ensinará através da parábola da figueira. Estejamos atentos, a parábola é um gênero literário próprio da sabedoria de Israel, que recolhe elementos simples e comuns da realidade histórica e concreta do povo e da sociedade para transmitir um ensinamento ou uma mensagem importante. Ela possui três finalidades, a de chamar a atenção do leitor-ouvinte, provoca-lo e a de gerar uma mudança de comportamento nele.

Dos vv.6-9, Jesus conta aos discípulos e a os que estão ao seu redor, a parábola da figueira. Um homem tinha uma figueira plantada no meio da vinha. Importante recolher os elementos simbólicos: a vinha, a figueira, o dono e o vinhateiro. A vinha, simboliza sempre o povo de Israel, no A.T. Este recebeu a missão de ser a vinha do Senhor a produzir fruto. O fruto da vinha é a uva, da qual se produz o vinho, sinal da alegria. Logo, o fruto deveriam ser a justiça, a bondade, a misericórdia, o amor, provenientes da alegria da relação entre Israel (a vinha) e o Senhor. Mas o povo será sempre infiel a esta relação (aliança), e será uma vinha infértil. A figueira também alude ao fato da produção de um fruto: ela produz o figo, doce muito apreciado naquela cultura. Por isso, a este fruto está ligado à docilidade. Na verdade, conforme meditado nos domingos anteriores, os frutos esperados pelo Pai e por Jesus são a alegria e a docilidade. Nesse sentido, ao narrar a parábola, o Senhor deseja dar ênfase ao fato de que aquela vinha não havia produzido nada! Ou Seja, não haveria solução. Recolha-se este elemento! Evidentemente, o dono da vinha é uma imagem equivocada de Deus, que Jesus faz questão de mostrar, e esta, provinda dos chefes religiosos do povo. E o vinhateiro, seria o próprio Jesus, que combate com aquela imagem errada sobre o Pai.  

Jesus diz que a figueira não produzia mais frutos. O dono dá a ordem de arranca-la da terra para não enfraquecer e inutilizar o solo. O número três, na teologia bíblica, indica um período ou tempo completo e definitivo. Provavelmente seja um aceno que o Senhor faz da duração de seu ministério público, e que Lucas faz questão de recordar.

Responde o vinhateiro, em protesto ao dono: “Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás” (v.8-9). O vinhateiro chama o patrão originalmente de Senhor (gr. κύριος / Κύριε), o nome divino. Logo, o leitor já ativará sua consciência de que este diálogo entre o empregado e o patrão, torna-se uma parábola, metáfora para a relação com Deus. Ora, Jesus, através da parábola, está repropondo uma nova imagem acerca do Deus, a quem chama de Pai. Ao invés de um Deus punitivo e vingativo, pregado e ensinado pelos doutores da lei e fariseus, Ele revela o agir misericordioso de Deus, que não corta a arvore e a lança ao fogo porque não produziu, mas dá e oferece sempre uma nova oportunidade. A ação do Deus de Jesus e dele própria é a da mostrar outra face de Deus, uma nova experiência de vida e de relação com Ele, diferente da proposta dos líderes religiosos de seu tempo. E desses tempos atuais também. Para o Senhor, o Pai não toma nem destrói a vida, mas oferece novamente condições de vida e de existência inclusive aos pecadores.

Que o evangelho deste terceiro domingo da quaresma nos desperte para a conversão, e nos faça a abertos para experimentar a misericórdia do Pai que tudo revivifica.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 15 de março de 2025

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA QUARESMA – Lc 9,28b-36:

 


O evangelho que meditaremos hoje encontra-se no capítulo nono da catequese lucana. Para compreende-la bem, se faz necessário conhecer seu contexto. A narrativa da transfiguração situa-se entre três importantes momentos: 1) a confissão de fé de Pedro, suscitada pela pergunta de Jesus acerca de sua identidade (Lc 9,18); 2) o primeiro anúncio da paixão (Lc 9,22); e, 3) as exigências quanto ao discipulado (Lc 9,23-27). Depois da profissão de fé dos discípulos que confessava Jesus como Messias, ele trata de mostrar como será o seu messianismo para coibir e evitar qualquer concepção errônea acerca de si. Diante de uma clara explicação, os discípulos ficam decepcionados e amedrontados. Por isso, o Senhor toma a decisão de leva-los consigo para a experiência na montanha.É nesse contexto que se encontra o relato da transfiguração, o qual somos convidados a meditar. Interessante, que ele antecede, também, o segundo anuncio da paixão, ao mesmo tempo que prepara a viagem de subida para Jerusalém (Lc 9,51).

O Evangelista informa que Jesus levou para a montanha três de seus discípulos: Pedro, Tiago e João (os irmãos trovão). Ao interno do grupo dos Doze, os três eram os mais difíceis de se lidar. Pedro, explosivo, impulsivo e cabeça; Tiago e João possuíam um temperamento inflamado, intolerante, e, muitas vezes ambiciosos. Estar com o Senhor na experiência da montanha não indica privilégio, mas uma necessidade: estes eram os que tinham uma necessidade mais profunda no processo do discipulado. Uma transfiguração autêntica, deixando para trás a mentalidade equivocada acerca da vida e da missão do Mestre.

Lucas diz que Jesus subiu para a montanha a fim de orar. A oração é um traço característico seu no Terceiro Evangelho. Ele ora ao Pai antes de cada atitude ou gesto; antes de decidir-se ou ensinar: na escolha dos Doze (Lc 6,12); antes da pergunta relacionada a sua identidade (Lc 9,18); durante o caminho de subida para Jerusalém (Lc 11,1); e antes de sua paixão (Lc 22,39). A montanha, para a teologia bíblica, é o lugar ideal para se fazer a experiência com Deus, bem como o lugar costumeiro de sua manifestação (as teofanias). Não se trata de um mero lugar geográfico, mas, acima de tudo, teológico. Ora, todo a possibilidade e ocasião de encontro com Deus acaba sendo um “subir a montanha”. É preferível não identificar a montanha com o Tabor. Esta identificação surgiu com Origenes (escritor e teólogo) entre os séculos II e III. Este dado não se sustenta com a leitura da bíblia. É melhor manter a montanha anônima, tomando-a somente como a possibilidade e um encontro com Deus.

Em seguida, Lucas nos informa que, enquanto rezava, as roupas de Jesus ficaram brancas e brilhantes, e sua aparência mudou. As roupas brancas e brilhantes são símbolos da realidade divina, do mundo celeste; daquilo que pertence ao âmbito de Deus. Com esta imagem, o evangelista pretende ensinar para a sua comunidade que o Senhor, mesmo sendo homem, pertence ao âmbito divino; transfigura-se: ou seja, o Seu rosto reflete a glória do Pai. Nesse sentido, a transfiguração não é apenas uma antecipação da ressurreição, mas a revelação acerca da identidade de Jesus. Através da transfiguração, o Pai mostra quem é o Filho, e este introduz na realidade divina os discípulos.

O texto nos informa que, junto a Jesus apareceram Moisés e Elias. Primeiramente, ambos são aquelas figuras associadas ao tempo da vinda do Messias, no fim dos tempos. São, também, a síntese de todo o Antigo Testamento, ou seja, a Lei (Moisés) e a Profecia (Elias). Mas, ao mesmo tempo, representam todas as esperanças e expectativas bíblicas em relação ao Messias. Também eles, segundo Lucas, aparecem revestidos de glória. Indicativo de que já participam da esfera divina.

O conteúdo da conversa é o que importa para Lucas, para a comunidade, e para a geração posterior. “e conversavam sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém” (v.31). Na verdade, o original grego não fala de morte, e sim de Êxodo. Ou seja, o caminho (saída) de Jesus, que se consumará em Jerusalém. Ora, Moisés e Elias haviam cumprido suas missões em meio a grandes sofrimentos, perseguições e tribulações. Assim também acontecerá com Jesus.

Moisés foi o líder do primeiro êxodo. Elias, em contexto de perseguição defendeu a fé no Deus libertador do Êxodo. O evangelista quer ensinar que Jesus é o novo Moisés, e que com Ele começa um novo êxodo através de sua morte e ressurreição. Nesse sentido, o Senhor supera em tudo as grandes personagens das Escrituras, porque Ele não vai para Jerusalém apenas para morrer, mas para abrir e fazer um caminho e um processo de libertação – que, sim, é perpassado pelo sofrimento e pela morte – coroado com a ressurreição.

Os discípulos que acompanhavam a Jesus caem no sono. Dormem e não participam da conversa entre Jesus e aquelas duas personagens. Na verdade, o evangelista está denunciando duas atitudes incompatíveis com o discipulado:  o sono simboliza a indisponibilidade, a resistência diante da proposta e do projeto de Deus; mas também a falta de perseverança na oração por parte da comunidade, a partir da distração dos discípulos. A resistência, a indisponibilidade e a distração impedem a experiência com Jesus.

Mais ainda, isso mostra que ela não compreendeu o projeto de Jesus, quando Pedro revela a intenção de armar ali três tendas: para Jesus, Moisés e Elias. Construir tendas revela a tentação do comodismo; a manutenção dos esquemas e dos modelos antigos e descomprometidos com a novidade que Jesus apresenta. O desejo de permanecer na montanha – sob o verniz da oração – pode revelar, também, o desejo da fuga da realidade ou mesmo o descomprometimento para com ela. É preciso, sim, subir a montanha para reabastecer-se de Deus, para poder descer à realidade concreta.

Todavia, o mais grave da fala de Pedro revela-se no seguinte: colocar Moisés ao centro, entre Jesus e Elias. Isso revela que Jesus ainda não é o centro da vida deles, muito menos da comunidade dos discípulos. Eles ainda continuam dando preferência e importância a Moisés e para o que ele representa, a lei de Moisés. Onde o Evangelho não é o centro, não há Graça; onde o evangelho de Jesus não ocupa o centro da vida não há salvação; quando Jesus não ocupa a centralidade da vida da pessoa, não há discipulado nem missão, muito menos Igreja.

O Pai, então, intervém, falando de uma nuvem, símbolo da presença divina (assim como no Batismo). Ele dá um testemunho favorável acerca de seu Filho diante das resistências oferecidas pelos discípulos: “Este é o meu filho, o Escolhido (o eleito). Escutai o que Ele diz” (v.35). Lucas modifica a versão de Mt e Mc, quem mantém o adjetivo “amado”. Na concepção da salvação universal, muito apreciada pela obra lucana, a humanidade toda é amada por Deus. Mas o adjetivo “o escolhido” tem maior profundidade: aponta para a unicidade da missão de Jesus, o autorizado pleno da parte do Pai para anunciar a Palavra da salvação, digna de toda a atenção. Por isso, a ordem: “escutai o que Ele diz”. Diante disso já não são necessárias as presenças de Moisés e Elias; eles se retiram porque não tem mais nenhuma novidade a dizer. Agora será somente o Evangelho de Jesus (Ele mesmo) o parâmetro para a vida e o agir da comunidade. Será a este Evangelho que os discípulos deverão escutar para terem suas vidas transfiguradas.

O Evangelho que meditamos cumpre sua finalidade quando propõe à comunidade de todos os tempos “escutar o Filho escolhido”. Nesta perspectiva, algumas perguntas se fazem necessárias: 1) tenho, de fato, me exercitado na escuta da Palavra do Filho Escolhido, Jesus? 2) Ou venho escutando outras vozes e palavras, permitindo-me instalar nos comodismos dos esquemas e projetos já fixos e endurecidos, ou mesmo fazendo destes uma rota de fuga da realidade concreta? 3) O Senhor tem ocupado a centralidade e a referência em minha vida, ou outras coisas, situações, ou pessoas tomaram-lhe o lugar?

Que o evangelho deste II Domingo da Quaresma nos ajude a transfigurarmos através da escuta da Palavra do Filho escolhido e a descer da montanha para transfigurar os irmãos e as realidades ainda enrijecidas pelo comodismo e pelos esquemas de morte.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco de São Judas Tadeu, Avaré; Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 8 de março de 2025

REFLEXÃO PARA O I DOMINGO DA QUARESMA – Lc 4,1-13


 

O evangelho deste primeiro domingo do tempo quaresmal nos narra as tentações de Jesus, ao longo dos quarenta dias que ficou no deserto, após o seu batismo. O termo tentação é correto e não caiu de moda. Mas ainda é preferível o termo “sedução”. Porque a tentação daria a ideia de uma força ou dinâmica que impulsionaria o homem a cometer algo de mal. E veremos, com a narrativa de hoje, que o diabo no deserto não se apresenta como um inimigo propriamente dito, tampouco tenta a Jesus a fazer algo de mal, ou pecar, ou qualquer coisa horrenda que se possa imaginar. Pelo contrário, se apresenta como uma espécie de colaborador (duvidoso, é verdade) que mostra um caminho alternativo ao projeto do Pai, através das seduções que apresenta. Este episódio se encontra  nos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc). O que confirma que a narrativa tem grande importância para as comunidades primitivas. A fonte original deste relato, o Evangelho segundo Marcos, não dá nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das tentações; apenas diz que “Jesus esteve no deserto durante quarenta dias sendo tentado por Satanás” (Mc 1,13). Lucas, a seu modo e interesse comunitário, releu a história que lemos hoje na liturgia e a transmitiu aos seus. Mas para que este texto não seja mal interpretado como sendo uma crônica exata dos fatos, devemos nos ater à simbologia e tipologia teológicas que o relato nos apresenta.

 

As seduções aqui apresentadas pelo evangelista acenam para as convicções e as aspirações do povo em relação ao messias: 1) o messias popular (do pão); 2) o messias do poder (do reino e da riqueza); 3) o messias religioso (a imagem do templo). Mas Jesus recusa estas interpretações durante toda sua vida e ministério públicos. O modo pelo qual ele se decide por viver baseia-se na dinâmica do servo sofredor de YHWH, com uma conotação toda sapiencial e profética.

 

O texto começa dizendo que “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (v.1). A narrativa situa-se após o batismo de Jesus, onde, no Jordão, ele fora reconhecido como Filho Amado pelo Pai e investido com o Espírito (de Deus) para a missão de proclamar o Reino. O evangelista pretende mostrar para a sua comunidade como Jesus viverá esta dinâmica de ser o filho amado de Deus. Com efeito, é interessante que Lucas explicite o fato de Jesus ter ido para o deserto com a força do Espírito. Do início ao fim, a vida e a missão de Jesus serão marcadas pela presença do Espírito Santo.

 

Uma primeira constatação sobre a ida ao deserto. Jesus toma o caminho contrário: das margens do Jordão, ele retrocede para o deserto. Faz, pois, o caminho do povo de Israel, que para tomar posse da terra prometida passou pelo deserto e cruzara o Jordão para adentrar e conquistar aquela promissão de Deus. Lucas pretende ensinar para sua comunidade que o Senhor é a imagem e símbolo do povo de Israel, e enquanto tal, assume e refaz a história de seu povo. Todavia, Ele supera seu povo, porque foi fiel a Deus durante as seduções do diabo, coisa que os israelitas não foram. Uma segunda compreensão acerca do “deserto”. Ele não é somente uma localização geográfica e espacial. Antes, é um lugar teológico. É um lugar de provação, mas também de refazimento da Aliança com Deus; um bom lugar para se relacionar com Ele.

 

Mas no deserto, Jesus recebe a proposta de outro caminho. O texto informa que ele fora tentado/seduzido pelo Diabo durante “quarenta dias”. É um tempo simbólico. O número 40 na teologia bíblica indica a existência de um período necessário. É o tempo da duração de uma geração, ou seja, uma vida inteira tinha a expectativa de durar quarenta anos. Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova. Esta é uma das finalidade do texto bíblico de hoje, mostrar que as tentação não foram um episódio isolado em sua vida, mas que elas o acompanharam no decorrer de sua missão, sempre propondo tomar um caminho alternativo ao do amor, do serviço aos irmãos, e da fidelidade ao Pai e ao Reino. O relato também representa um aviso para a comunidade cristã, para que ela não caia na ilusão de que, tendo assimilado e assumido o projeto de Jesus, estar imune às seduções do anti-reino.

 

No v.3, o diabo (lit, divisor e opositor) empreende sua primeira sedução/tentação. “Se tu és Filho de Deus...” Como está traduzido aqui, dá-se a entender que o tentador duvida da identidade e Jesus. Isso é falso. O texto grego é melhor traduzido quando se coloca a frase no afirmativo “Já que és o Filho de Deus”. O diabo quer propor a Jesus que, uma vez sendo Filho do Altíssimo, use todas as suas capacidades e prerrogativas em benefício próprio! Esta primeira tentação/sedução que se apresenta sob a imagem da necessidade e da fome física, diz respeito a maneira de relacionar-se com as coisas. Ela tenta mostrar o perigo de se conceber a missão de Jesus (e da comunidade) a partir da lógica do messias milagreiro, ao que ele se opõe radicalmente, porque não veio ao mundo para resolver os problemas de maneira fácil e, ao mesmo tempo, conforme à lógica do mundo: apoiar-se e reconhecer-se seguro nos bens deste mundo. A vida pede muito mais que pão. Transformar a pedra em pão é uma sedução que revela a mentalidade utilitarista e descartável para com as coisas. Usar as coisas como meio para se atingir uma finalidade. Por isso, a Palavra de Deus será ponto de referência e critério de discernimento para Jesus viver sua missão. Estará ele totalmente alicerçado na Palavra do Pai e a ela será fiel.

 

No v.5, o diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo, e lhe disse: ‘Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser. Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo será teu’. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (v. 5-8). Uma constatação importante: o evangelista não quer descrever o diabo como dono do mundo; mas está denunciando que o poder é diabólico quando exercido na exploração, quando promotor de injustiça e opressão. Lógica esta a qual o Evangelho e o Reino de Deus se contrapõem pelo amor, pelo serviço, a justiça e a fraternidade. Jesus, de sua parte rejeita o poder. Aquele que detém e retém poder e riqueza é porque o recebeu do diabo. Deus não dá poder a ninguém; dá seu Amor, que se faz serviço. Por isso, nesta sedução, o Cristo é tentado em sua relação com o próximo, isto é, como criar e estabelecer relações com os irmãos. Será pela relação de serviço que Jesus pautará sua vida no trato com os irmãos. Nunca pelo poder.

 

A terceira tentação/sedução acontece em Jerusalém. No v.9, o diabo leva Jesus até o alto do templo. Havia uma tradição popular que o messias, desconhecido de todos, subitamente apareceria no alto do Templo de Jerusalém. O evangelista usa o termo Jerusalém para identificar toda o judaísmo – a instituição religiosa – do tempo de Jesus. Nessa perspectiva, a terceira tentação/sedução de Jesus se dá na ordem de sua relação com Deus: tomar o lugar do Pai, utilizando também das estruturas religiosas que legitimam uma falsa imagem acerca de Deus. “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!' E mais ainda: 'Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra” (v.9-11). Esta tentação/sedução entende-se na ordem do “faça o que o povo quer ver”, ou, “dê o que eles querem”. “Faça um gesto espetacular ou qualquer coisa de extraordinária”. “Já que és Filho de Deus, você não precisa dele. Podes fazer o que bem entender”. Mas Jesus não irá ao encontro das expectativas das pessoas, mas as tornará livres destas. Por isso, a sua resposta desarticula o tentador: “Jesus, porém, respondeu: "A Escritura diz: 'Não tentarás o Senhor teu Deus” (v.12). O senhor possui uma grande fidelidade ao Deus que chama de pai, sem qualquer necessidade de requerer para si ou exigir Dele gestos extraordinários. É, também, uma forma muito clara de se mostrar que Ele rompe com qualquer tipo de inconsequência em relação à condição de homem verdadeiro e de Filho de Deus em sua missão. Este princípio vale igualmente para o discípulo do Reino: este, na missão, não poderá ser um inconsequente, porque a obra não é sua, mas de Deus. Há que se saber tirar e medir as consequências da missão, do agir e do querer de Deus em Jesus. Para Jesus e para seus discípulos não vale a lógica do “Deus nos acuda”.

 

As seduções acabam com uma afirmação enigmática de Lucas: “Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (v.13). O momento oportuno é aquele momento em que Ele estará suspenso na cruz. Ali, as tentações/seduções voltam novamente através da multidão e dos lideres religiosos, dos soldados e do malfeitor, que, insultando a Jesus crucificado provocam-no a agir em benefício próprio (“Já que sois o Cristo, salva-te; desça da cruz (Lc 23)”. Na cruz, última tentação de sua missão recusará uma vez mais as seduções e mostrará a sua fidelidade ao projeto de seu Pai e do Reino que anunciou.

 

Que estejamos dispostos a percorrer com Jesus as dinâmicas e caminhos percorridos por Ele. Como Ele, também nós não nos encontramos imunes. Como Ele, também somos convidados a deixar-nos conduzir pelo Espírito de Deus, a Força, condição e dinâmica de Amor servidor. A partir dele, somos chamados a reorientar nossas relações com as coisas, com os outros (também na ordem do bem comum), e a nossa relação com Deus.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco de São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


quarta-feira, 5 de março de 2025

QUARTA-FEIRA DE CINZAS - Mt 6,1-6.16-18

 


A Igreja inicia com a quarta-feira de cinzas a Quaresma, tempo de graça, reconciliação e preparação para o ápice da vida cristã que é a celebração da Páscoa do Senhor. Com este período litúrgico favorável, a comunidade dos fieis é chamada a viver em plenitude este tempo necessário de conversão, de mudança de mentalidade e de atitude. Eis o sentido do simbolismo do qual é revestido o número quarenta. Na tradição do Antigo Testamento este número já aparece com força metafórica: alude ao tempo da duração de uma geração, ou seja, de uma vida. As vezes pensamos que os números que aparecem nas Sagradas Escrituras são sinônimos de verdade cronológica. É importante, porém, acolher a dinamicidade simbólica que eles trazem consigo: ao dizer que a quaresma, assumindo a dinâmica da duração de uma vida, a Igreja deseja enfatizar que a quaresma assume os contornos da vida humana. A vida humana e histórica é uma quaresma preparatória para a nossa páscoa definitiva. É um constante chamado para que o ser humano possa vestir-se da conversão constante, mirando a sua estatura da Graça que é a estatura de Cristo, o Ressuscitado.

 

A quaresma não pode ser vista e compreendida como tortura ou “autoflagelo” do coração e da alma. Ela é, sim, sinal de mortificação para aquilo que é morte em nós e nos tira a condição de filhos de Deus. As cinzas que são colocadas sobre nossas cabeças possuem um duplo significado: morte e vida. Morte no sentido de recordar a condição finita do ser humano como pó. Mas de vida também. Na vida rural, em tempos antigos, as cinzas eram utilizadas como fertilizante durante o inverno para ajudar a manter o solo rico, a fim de que a plantação pudesse florecer. Assim, ao receber as cinzas sobre a cabeça, o fiel se abre ao convite para bem preparar a sua caminhada, recordando que é do pó da terra, da adamah performada por Deus; como também  é um solo a ser cultivado para que nele floresça a força da vida nova através da Páscoa da Ressurreição do Senhor. Para bem iniciar esta quaresma, a liturgia nos propõe constantemente um apelo contido em Mt 6,1-6.16-18. Texto que propõe um caminho seguro para conduzir a vida neste exercício quaresmal, a fim de frutifica-la em vida plena: a relação com Deus (oração), com outro (caridade), e, por fim, consigo mesmo (jejum).

 

O texto de Mt 6,1-6.16-18 situa-se no sermão da montanha – discurso inaugural de Jesus na catequese mateana. Neste primeiro discurso/catequese, o evangelista mostra o Cristo como verdadeiro interprete da Palavra de Deus, qual novo Moisés, e, portanto, Messias através da Palavra. Neste bloco, que se estende até o capítulo sétimo, o Senhor ressignificará todas as tradições religiosas de Israel e transmitirá uma interpretação autêntica da Palavra de YHWH. As três práticas da piedade judaica – oração, caridade, jejum – também serão dadas um sentido verdadeiro através do ensinamento do Mestre. Feita uma breve contextualização, já se pode mergulhar no horizonte do texto.

 

“Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles. Caso contrário, não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus” (v.1). Este versículo funciona como uma lente através da qual se pode ver corretamente o significado das orientações feitas por Jesus nos versículos seguintes no que tange as práticas da piedade judaica. Ele adverte os discípulos e a multidão a serem atentos em não praticar a justiça diante dos outros. O que seria esta justiça? Não é aquela do tribunal, pertencente ao sistema jurídico. Por justiça, ao interno do panorama bíblico, se entende como sendo o agir de Deus. O Senhor está chamando a atenção do discípulo – e de todos aqueles que escutam ou leem seu evangelho) para que suas ações, seu agir, sejam conformes ao agir de Deus, para poder ter em si a vida mesma do Pai. O agir deles não pode ser pautado pela recompensa dos homens, ou seja, ser visto e elogiado por eles. Se assim o fizer, não receberão a recompensa do Pai do céu. Entenda-se muito bem o que Jesus quer dizer com o termo recompensa. Na verdade, ele aparece de duas maneiras: pagamento (gr, μισθός/mistos) e restituição (gr. ἀποδίδωμι/apodidomi). Aplicado aos discípulos, para se falar de recompensa o evangelista utiliza o termo apodidomi, ou seja, restituição. A restituição é a devolução. Jesus está ensinado aos discípulo que se o agir deles (justiça) for semelhante ao do Pai, Este restituirá/devolverá à pessoa a sua condição de filho de Deus. Aquele que agir como o Pai age, será sempre restituído à sua condição original: filho de Deus. Esta primeira orientação servirá de fio condutor para as outras três a seguir.

 

No v.2, Jesus chamou a atenção dos discípulos e da multidão para o cuidado com a prática da esmola. Um dos pilares da espiritualidade judaica. Não realizar esta prática como fazem os hipócritas, só para serem notados ou elogiados publicamente na sinagoga. Ele está se referindo a uma prática muito constante de seu tempo. Sempre alguém, dentro ou fora do ambiente de culto cumprisse este gesto era chamado pelo rabino diante de toda a assembleia, elogiado pela sua atitude publicamente e convidado a se sentar num dos lugares de honra e destaque. Recebendo, assim, seu salário, o seu “mistos”. Com muita frequência o Cristo deve ter visto uma cena como esta. Mas para Ele, esta prática não pode assumir uma imagem teatral ou de aparência. Deve ser uma prática constante de empenho pelo bem do outro que necessita. E não uma ação isolada. Por isso ele orienta: “Ao contrário, quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita, de modo que a tua esmola fique oculta. E o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa” (v.3-4). A esmola/caridade deve ficar no segredo. A mão esquerda, que é aquela que não faz o bem, não pode saber o que a direita, responsável pela ação boa está fazendo. A prática da caridade/esmola é a ação que possibilita sair de si para colocar-se em relação com o outro, com suas necessidades. Sem alarde. Porque este é o agir do Pai celeste: ele é o primeiro a sair de si, em direção da humanidade. É ele o primeiro a doar-se, sem esperar recompensas. Quando o discípulo age da mesma forma que Deus, ele é restituído em sua condição de filho de Deus. “E o teu Pai, que vê o que está oculto, te restituirá a Sua imagem”.

 

“Ao contrário, quando tu orares, entra no teu quarto, fecha a porta, e reza ao teu Pai que está oculto. E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa” (v.6). Depois de Jesus chamar a atenção sobre um segundo pilar da piedade judaica, a oração, que não deve ser feita como mero teatro, como os hipócritas (atores da fé) fazem, ele orienta a, literalmente, entrar na despensa (gr. ταμεῖον). A despensa das casas do tempo de Jesus eram lugares fechados, escuros, sem janelas, e, portanto, silenciosos. É um sinônimo para um lugar tranquilo, sem distrações. Sem oportunidades de ser visto. Mas, ao mesmo tempo, representa um lugar da simplicidade do lar ou da vida. É possível entrar em oração no metrô, no carro, na praça inclusive, desde que se silencie tudo aquilo que possa perturbar, e, numa atitude de interiorização estabelecer relação com o Pai e com Jesus. O que Ele não quer é que esta relação chamada oração seja ocasião de espetáculo, de exibição pública.

 

A oração precisa ser muito bem compreendida. Muitas vezes se pensa ou se cresce com uma mentalidade equivocada acerca desta prática. Por exemplo, a mais comum, a de pensar que ela pode, por conta da insistência “perseverante”, mudar a vontade de Deus. A partir das muitas palavras que se usa, da atitude as vezes arrogante, ou mesmo com a mentalidade da troca – faço isso para receber aquilo – tentar comprar ou dobrar a Deus, a fim de que ele realize nossos caprichos. Não é assim. A verdadeira oração é, acima de tudo, uma atitude de verdadeira relação pessoal com o Pai e com Jesus. O tempo ou momento do cultivo da relação com ele. Podendo, sim, apresentar a vida, a história, a angustia, os problemas. Mas sem pensar que Ele os resolverá num passe de mágica ou sem nossa cooperação. A oração é apresentar a nossa vida e história diante do Seu olhar, contemplando o olhar Dele e percebendo para onde este olhar está apontando, de modo que consigamos direcionar a vida para onde ele aponta! A eficácia da nossa oração consiste em olhar para a direção em que está o olhar de Deus e discernir para qual direção ele aponta em relação à nossa vida. Quando o discípulo olha para a mesma direção em que o Pai olha, através da oração que se dá no silêncio, ele é restituído em sua condição de filho de Deus. “E o teu Pai, que vê o que está oculto, te restituirá a Sua imagem”.

 

“Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não vejam que tu estás jejuando, mas somente teu Pai, que está oculto. E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa” (v.18). Jesus encerra sua interpretação tocando na prática do Jejum. Para ele, não há razão de se fazer esta prática com espírito e atitudes fúnebres, pois o noivo (que é ele mesmo) está no meio da festa. O que se precisa é mudar a mentalidade. O jejum que o Senhor deseja propor é aquele que socorre o irmão. Quando se vai ao encontro da necessidade do outro, tendo a autonomia e a liberdade de se abrir mão ou renunciar mesmo àquilo que lhe pertence em favor daquele, então o jejum não será causa de tristeza, e sim de alegria, porque foi gerado vida naquele que não a possuía. É a capacidade de saber ler em si os sinais de que tal coisa (alimento, vestimenta, recurso, oportunidade) não fará falta e poder renunciar aquilo para que o outro tenha. Não é o que está sobrando, mas é o que não fará falta, e que pode estar fazendo falta para o outro, por isso, posso abrir mão. Equilibrar-se, através do Jejum, para poder nutrir ao outro naquilo que lhe falta e, que, portanto, está a gerar desequilíbrio na vida dele. Assim age o Pai do Céu com seus filhos. Quando o discípulo age da mesma forma que Deus, ele é restituído em sua condição de filho de Deus. “E o teu Pai, que vê o que está oculto, te restituirá a Sua imagem”.

 

Para viver um pleno itinerário quaresmal se faz necessário assimilar o agir do Pai celeste. Só assim será possível florecer em ressurreição e vida.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco de São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.