A
leitura do capítulo treze do Evangelho segundo São Mateus foi concluída domingo
passado. A liturgia deste décimo oitavo domingo do tempo comum apresenta o
capítulo catorze para a nossa meditação. Desenvolve-se, a partir de agora, no
horizonte da catequese mateana, uma longa parte narrativa, que culminará no
capítulo dezoito. É da pedagogia de Mateus, que logo após um discurso de Jesus,
siga-se uma parte narrativa, a fim de mostrar a aplicabilidade do
discurso/ensinamento. Os capítulos 14 – 17 descrevem um caminho de fé e de
compreensão dos discípulos e da Igreja diante das palavras de Jesus.
O
contexto imediato do evangelho deste domingo é o martírio de João, o Batista,
pelas mãos de Herodes. Fato que chega ao conhecimento de Jesus, e, como o próprio
evangelista informa, provoca uma mudança de rumo para Jesus. Ele deve deixar a
região da Judeia. Deve ter intuído que sua vida correria perigo. Na intenção de
Mateus, o martírio de João é uma prolepse – antecipação literária e histórica –
da morte de Jesus. Mas ainda não é chegado seu momento, e, por isso, ele deixa
a região, “Quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu e foi de barco
para um lugar deserto e afastado” (v. 13a). Retira-se não por medo, mas por
comoção. Seu estado interior pedia um momento de recolhimento.
O
lugar deserto e afastado seria ideal para isso, para rezar, refletir e, por que
não, chorar também. Sentir as entranhas remexidas! É preciso, ainda, se
acostumar com uma imagem assim de Jesus. Um homem que se deixa comover.
Novamente esta atitude assomará no texto de hoje, quando o evangelista descreverá
sua atitude diante da multidão que o procura, “Encheu-se de compaixão por eles
e curou os que estavam doentes” (v. 14). A compaixão significa um amor
visceral; é um comover-se no mais profundo do ser – as vísceras ou entranhas –
que resulta em ação concreta de libertação. Não se trata de um mero sentimento,
mas de ação libertadora; é nisso que consiste a misericórdia de Deus, cuja
expressão mais concreta é a própria pessoa de Jesus. Mateus, ao falar dos “doentes”
emprega o termo grego aróstos (gr. άρρωστος), que abarca todo o tipo de
enfermidade, não só as físicas, mas o ser humano em toda a sua fragilidade.
São
todas as pessoas destinatárias privilegiadas da misericórdia de Deus: doentes,
aflitas, pobres, abandonadas, exploradas. Como o Evangelho de Jesus é um
programa de vida completo, que contempla a vida em todas as suas dimensões,
todas essas classes de pessoas são as primeiras contempladas. Por isso, a
reação de Jesus ao ver essas pessoas foi encher-se de compaixão (CORNÉLIO,F, Homilia
Dominical, in.porcausadeumcertoreino.blogspot.br).
Isto
posto, podemos adentrar, definitivamente, no horizonte do texto proposto para
hoje, o qual o nos relata a condivisão dos pães e dos peixes. Este episódio é
comum aos quatro evangelhos. Esses dados indicam a importância que o episódio
teve para as primeiras comunidades cristãs e, provavelmente, o cuidado para que
não fosse distorcido e nem fantasiado; por isso, prefere-se chamá-lo de
condivisão, ao invés de multiplicação, podendo acenar para um gesto mágico operado
por Jesus, algo que não lhe agradava, dado que rechaçava toda a mentalidade
triunfalista e nacionalista para seu ministério.
O
v.15 deve ser inquietante para o leitor: “Ao entardecer, os discípulos
aproximaram-se de Jesus e disseram: ‘Este lugar é deserto e a hora já está
adiantada. Despede as multidões, para que possam ir aos povoados comprar
comida!” (v. 15). A noite já vem caindo; muita coisa já deve ter acontecido
entre Jesus e a multidão. Muitos ensinamentos devem já ter sido compartilhado
entre eles. Os discípulos, então se aproximam e pedem que Jesus despeça o povo,
para que possam também comprar comida. Não conseguem captar o sentido da vida e
da missão de Jesus ainda. Não querem, nem conseguem comprometer a vida com a
vida de Jesus.
Jesus
estava ensinando desde muito tempo; corrigia lhes a mentalidade acerca da ideia
de messias que possuíam, embasada no domínio, no poder e na submissão, propondo-lhes
a ótica e a perspectiva do serviço e do amor, que deveriam traduzir-se em cuidados
e em atitudes fraternas para com os outros, gerando vida, promovendo a vida dos
irmãos. De modo mais específico, à gente simples, aos excluídos,
marginalizados. É isso que Jesus quer dizer com a ordem a seguir: “Dai-lhes vós
mesmos de comer” (v. 16). Os discípulos são convidados a comprometer e empenhar
a vida no processo de transformar a vida das pessoas. Dar de comer significa
empoderar as pessoas, torná-las senhores e senhoras da própria vida e da história.
Faz parte deste processo a dinâmica e perspectiva serviçal dos discípulos.
Mas
ainda custa-lhes compreender: “Só temos aqui cinco pães e dois peixes” (v. 17).
Certamente, foram realistas. Tinham pouca coisa, provavelmente o suficiente
para eles, mas quase nada para as multidões. Pão e peixe era comida comum do
povo daquela região (Mt 7,9-10). Mateus articula bem a narrativa. O número
sete, como resultado de cinco mais dois (5+2=7), significa totalidade. Logo,
não se trata de números reais, mas de simbologia. Independentemente da
quantidade, é como se os discípulos dissessem a Jesus que tudo o que tinham era
insuficiente para o grande número de pessoas que estavam ali. Porém, Jesus não
se importa com a quantidade; pede que os discípulos lhe levem tudo o que tem:
“Jesus disse: ‘Trazei-os aqui” (v. 18). O problema começa a ser solucionado
aqui, quando Jesus pede que os discípulos coloquem a disposição tudo o que têm,
apesar de pouco. É isso o que Jesus espera das comunidades de todos os tempos.
O pouco que cada um possui deve ser colocado a serviço de todos e, assim, o que
é pouco se torna muito. Quando cada um apresenta o seu pouco, é premissa de
fartura (CORNÉLIO,F, Homilia Dominical, in.porcausadeumcertoreino.blogspot.br).
“Jesus
mandou que as multidões se sentassem na grama. Então pegou os cinco pães e os
dois peixes, ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção. Em seguida,
partiu os pães e os deu aos discípulos. Os discípulos os distribuíram às
multidões” (v. 19). Este versículo, por si só, é cheio de particularidades. Jesus
toma tudo que os discípulos possuíam. Eleva uma benção à Deus. Bendiz à Deus
por tudo o que eles têm. E reparte entre eles. Esta atitude deve ser continuada
pelos discípulos, absorvida primeiro por eles e realizada em favor da multidão.
Esta, assimila e repete os mesmos gestos de Jesus.
São
os passos que a comunidade cristã não pode deixar de dar, não apenas como rito
semanal (uma vez que a condivisão dos pães funciona como pano de fundo para vivência
eucarística das primeiras comunidades, e pode ser uma expressão da práxis litúrgica
e sacramental destas), mas como vivência cotidiana, sobretudo onde e quando há
pessoas famintas de pão. É interessante perceber que os discípulos recebem a
responsabilidade de curar a fome. Ora, a fome é também uma doença, segundo o
panorama bíblico, que deve ser curada, conforme ensinou Jesus, ao ordenar aos
discípulos que dessem de comer às multidões. Mas tudo deve começar e passar por
Jesus. Primeiro, devem apresentar a ele o que se têm; nesse gesto está o
reconhecimento de que tudo é dom de Deus e, por isso, deve ser destinado à
partilha.
“Todos
comeram e ficaram satisfeitos e, dos pedaços que sobraram, recolheram ainda
doze cestos cheios” (v. 20). A compaixão misericordiosa de Jesus leva-o não
apenas a curar as enfermidades do povo, mas também a saciar lhe a fome. Mais
ainda, provoca nos discípulos (símbolos da comunidade) a predisposição de
colocar em comum tudo o que tinham, gesto que motiva também outras pessoas,
fazendo de tudo uma ação de graças a Deus, até a partilha que deixou todos
satisfeitos. A solução emergiu de dentro da comunidade. A quantidade recolhida,
doze cestos, significa, portanto, que quando a partilha é praticada, tem
alimento para todos. Essa não deve ser um ato isolado, mas uma práxis da
comunidade.
Os
ensinamentos que Jesus pretende dar ao seus discípulos e que Mateus recolhe
para a sua comunidade são: 1) A comunidade, se ela é, de fato, comunidade
dos discípulos de Jesus – comunidade do Reino – não pode descomprometer-se de
sua missão, que é a de ser servidora e geradora de vida, repartindo. Mesmo
quando ela não tem condições. Ela não deve esperar ter as condições necessárias
para viver o Reino, mas promover desde dentro as iniciativas para vive-lo; vencendo
o egoísmo, a inveja, o orgulho e o desejo de poder. 2) A abundância é gerada
quando ninguém considera somente seu o que possui, mas oferece, como dom, às
necessidades do próximo. 3) A comunidade dos discípulos e das discípulas do
Reino, logo, comunidade cristã, quando ela se abre a todos, sem distinção. É o
que Mateus quer dizer com a nota que ele faz, que a multidão era grande, cerca
de cinco mil pessoas, sem contar mulheres e crianças. Estas duas categorias não
eram consideradas no tempo de Jesus e da comunidade, e são símbolos para aqueles
que se encontravam marginalizados. Com essa informação, o evangelista quer
indicar para a sua comunidade que, se ela pretende ser continuadora dos gestos
de Jesus, deve ser também sinal de inclusão. Serviço, partilha e inclusão.
Estes são os distintivos da comunidade que assimilou os gestos e a vida de
Jesus.
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese de
Botucatu – SP.
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