sábado, 1 de agosto de 2020

HOMILIA PARA O XVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 14,13-21:




A leitura do capítulo treze do Evangelho segundo São Mateus foi concluída domingo passado. A liturgia deste décimo oitavo domingo do tempo comum apresenta o capítulo catorze para a nossa meditação. Desenvolve-se, a partir de agora, no horizonte da catequese mateana, uma longa parte narrativa, que culminará no capítulo dezoito. É da pedagogia de Mateus, que logo após um discurso de Jesus, siga-se uma parte narrativa, a fim de mostrar a aplicabilidade do discurso/ensinamento. Os capítulos 14 – 17 descrevem um caminho de fé e de compreensão dos discípulos e da Igreja diante das palavras de Jesus.

O contexto imediato do evangelho deste domingo é o martírio de João, o Batista, pelas mãos de Herodes. Fato que chega ao conhecimento de Jesus, e, como o próprio evangelista informa, provoca uma mudança de rumo para Jesus. Ele deve deixar a região da Judeia. Deve ter intuído que sua vida correria perigo. Na intenção de Mateus, o martírio de João é uma prolepse – antecipação literária e histórica – da morte de Jesus. Mas ainda não é chegado seu momento, e, por isso, ele deixa a região, “Quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu e foi de barco para um lugar deserto e afastado” (v. 13a). Retira-se não por medo, mas por comoção. Seu estado interior pedia um momento de recolhimento.

O lugar deserto e afastado seria ideal para isso, para rezar, refletir e, por que não, chorar também. Sentir as entranhas remexidas! É preciso, ainda, se acostumar com uma imagem assim de Jesus. Um homem que se deixa comover. Novamente esta atitude assomará no texto de hoje, quando o evangelista descreverá sua atitude diante da multidão que o procura, “Encheu-se de compaixão por eles e curou os que estavam doentes” (v. 14). A compaixão significa um amor visceral; é um comover-se no mais profundo do ser – as vísceras ou entranhas – que resulta em ação concreta de libertação. Não se trata de um mero sentimento, mas de ação libertadora; é nisso que consiste a misericórdia de Deus, cuja expressão mais concreta é a própria pessoa de Jesus. Mateus, ao falar dos “doentes” emprega o termo grego aróstos (gr. άρρωστος), que abarca todo o tipo de enfermidade, não só as físicas, mas o ser humano em toda a sua fragilidade.

São todas as pessoas destinatárias privilegiadas da misericórdia de Deus: doentes, aflitas, pobres, abandonadas, exploradas. Como o Evangelho de Jesus é um programa de vida completo, que contempla a vida em todas as suas dimensões, todas essas classes de pessoas são as primeiras contempladas. Por isso, a reação de Jesus ao ver essas pessoas foi encher-se de compaixão (CORNÉLIO,F, Homilia Dominical, in.porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Isto posto, podemos adentrar, definitivamente, no horizonte do texto proposto para hoje, o qual o nos relata a condivisão dos pães e dos peixes. Este episódio é comum aos quatro evangelhos. Esses dados indicam a importância que o episódio teve para as primeiras comunidades cristãs e, provavelmente, o cuidado para que não fosse distorcido e nem fantasiado; por isso, prefere-se chamá-lo de condivisão, ao invés de multiplicação, podendo acenar para um gesto mágico operado por Jesus, algo que não lhe agradava, dado que rechaçava toda a mentalidade triunfalista e nacionalista para seu ministério.

O v.15 deve ser inquietante para o leitor: “Ao entardecer, os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram: ‘Este lugar é deserto e a hora já está adiantada. Despede as multidões, para que possam ir aos povoados comprar comida!” (v. 15). A noite já vem caindo; muita coisa já deve ter acontecido entre Jesus e a multidão. Muitos ensinamentos devem já ter sido compartilhado entre eles. Os discípulos, então se aproximam e pedem que Jesus despeça o povo, para que possam também comprar comida. Não conseguem captar o sentido da vida e da missão de Jesus ainda. Não querem, nem conseguem comprometer a vida com a vida de Jesus.

Jesus estava ensinando desde muito tempo; corrigia lhes a mentalidade acerca da ideia de messias que possuíam, embasada no domínio, no poder e na submissão, propondo-lhes a ótica e a perspectiva do serviço e do amor, que deveriam traduzir-se em cuidados e em atitudes fraternas para com os outros, gerando vida, promovendo a vida dos irmãos. De modo mais específico, à gente simples, aos excluídos, marginalizados. É isso que Jesus quer dizer com a ordem a seguir: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (v. 16). Os discípulos são convidados a comprometer e empenhar a vida no processo de transformar a vida das pessoas. Dar de comer significa empoderar as pessoas, torná-las senhores e senhoras da própria vida e da história. Faz parte deste processo a dinâmica e perspectiva serviçal dos discípulos.

Mas ainda custa-lhes compreender: “Só temos aqui cinco pães e dois peixes” (v. 17). Certamente, foram realistas. Tinham pouca coisa, provavelmente o suficiente para eles, mas quase nada para as multidões. Pão e peixe era comida comum do povo daquela região (Mt 7,9-10). Mateus articula bem a narrativa. O número sete, como resultado de cinco mais dois (5+2=7), significa totalidade. Logo, não se trata de números reais, mas de simbologia. Independentemente da quantidade, é como se os discípulos dissessem a Jesus que tudo o que tinham era insuficiente para o grande número de pessoas que estavam ali. Porém, Jesus não se importa com a quantidade; pede que os discípulos lhe levem tudo o que tem: “Jesus disse: ‘Trazei-os aqui” (v. 18). O problema começa a ser solucionado aqui, quando Jesus pede que os discípulos coloquem a disposição tudo o que têm, apesar de pouco. É isso o que Jesus espera das comunidades de todos os tempos. O pouco que cada um possui deve ser colocado a serviço de todos e, assim, o que é pouco se torna muito. Quando cada um apresenta o seu pouco, é premissa de fartura (CORNÉLIO,F, Homilia Dominical, in.porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

“Jesus mandou que as multidões se sentassem na grama. Então pegou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção. Em seguida, partiu os pães e os deu aos discípulos. Os discípulos os distribuíram às multidões” (v. 19). Este versículo, por si só, é cheio de particularidades. Jesus toma tudo que os discípulos possuíam. Eleva uma benção à Deus. Bendiz à Deus por tudo o que eles têm. E reparte entre eles. Esta atitude deve ser continuada pelos discípulos, absorvida primeiro por eles e realizada em favor da multidão. Esta, assimila e repete os mesmos gestos de Jesus.

São os passos que a comunidade cristã não pode deixar de dar, não apenas como rito semanal (uma vez que a condivisão dos pães funciona como pano de fundo para vivência eucarística das primeiras comunidades, e pode ser uma expressão da práxis litúrgica e sacramental destas), mas como vivência cotidiana, sobretudo onde e quando há pessoas famintas de pão. É interessante perceber que os discípulos recebem a responsabilidade de curar a fome. Ora, a fome é também uma doença, segundo o panorama bíblico, que deve ser curada, conforme ensinou Jesus, ao ordenar aos discípulos que dessem de comer às multidões. Mas tudo deve começar e passar por Jesus. Primeiro, devem apresentar a ele o que se têm; nesse gesto está o reconhecimento de que tudo é dom de Deus e, por isso, deve ser destinado à partilha.

“Todos comeram e ficaram satisfeitos e, dos pedaços que sobraram, recolheram ainda doze cestos cheios” (v. 20). A compaixão misericordiosa de Jesus leva-o não apenas a curar as enfermidades do povo, mas também a saciar lhe a fome. Mais ainda, provoca nos discípulos (símbolos da comunidade) a predisposição de colocar em comum tudo o que tinham, gesto que motiva também outras pessoas, fazendo de tudo uma ação de graças a Deus, até a partilha que deixou todos satisfeitos. A solução emergiu de dentro da comunidade. A quantidade recolhida, doze cestos, significa, portanto, que quando a partilha é praticada, tem alimento para todos. Essa não deve ser um ato isolado, mas uma práxis da comunidade.

Os ensinamentos que Jesus pretende dar ao seus discípulos e que Mateus recolhe para a sua comunidade são: 1) A comunidade, se ela é, de fato, comunidade dos discípulos de Jesus – comunidade do Reino – não pode descomprometer-se de sua missão, que é a de ser servidora e geradora de vida, repartindo. Mesmo quando ela não tem condições. Ela não deve esperar ter as condições necessárias para viver o Reino, mas promover desde dentro as iniciativas para vive-lo; vencendo o egoísmo, a inveja, o orgulho e o desejo de poder. 2) A abundância é gerada quando ninguém considera somente seu o que possui, mas oferece, como dom, às necessidades do próximo. 3) A comunidade dos discípulos e das discípulas do Reino, logo, comunidade cristã, quando ela se abre a todos, sem distinção. É o que Mateus quer dizer com a nota que ele faz, que a multidão era grande, cerca de cinco mil pessoas, sem contar mulheres e crianças. Estas duas categorias não eram consideradas no tempo de Jesus e da comunidade, e são símbolos para aqueles que se encontravam marginalizados. Com essa informação, o evangelista quer indicar para a sua comunidade que, se ela pretende ser continuadora dos gestos de Jesus, deve ser também sinal de inclusão. Serviço, partilha e inclusão. Estes são os distintivos da comunidade que assimilou os gestos e a vida de Jesus.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

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